Autor Data 25 de Junho de 2019 Secção Competição Torneio
"Solução à Vista!" – 2019 Prova nº 2 Publicação Audiência GP Grande Porto |
WHISKY MORTAL Rigor Mortis Tomás Cerqueira era um velho
azedo e sorumbático, incapaz de um gesto simpático. Mas tinha tido sempre um
agudo sentido para os negócios, nem sempre limpos. Tal engenho, aliado à sua
crueldade intrínseca, tinham-lhe permitido ir-se apropriando de uma
apreciável fortuna. De pouco lhe valia essa fortuna. Vivendo só, sem
familiares conhecidos, desprezava luxos e pouco uso fazia do dinheiro. Uma
moradia grande, mas velha, com muitos móveis antigos, mas estragados com o
tempo e o uso, eram os seus sinais aparentes de riqueza. Raramente saía de
casa. Aí vivia também o único empregado, José Machado, que em muitos anos de
serviço se tinha habituado aos humores do patrão. Visitas, apenas duas. O seu
secretário, o Santos, vinha todos os dias úteis e aos sábados de manhã.
Tratava da contabilidade, do correio e de alguma carta que o patrão quisesse
escrever. A outra era um amigo de antigamente, o Norberto Ávila. A amizade
entre os dois já não era nada que parecesse com a desses tempos, mas o
Norberto continuava a visitá-lo de quando em vez. Tomás tinha um hábito
arreigado. Sábado ao fim da manhã, quando o Santos e o Machado começavam a
folga de fim-de-semana, fechava-se à chave na parte da casa onde estava o seu
escritório, o quarto e uma casa de banho. Duas garrafas de whisky, uma dúzia
de garrafas de água Perrier e uns iogurtes guardados num pequeno frigorífico
que estava no escritório, era tudo o que precisava durante o fim-de-semana.
Quando o Norberto o visitava, um domingo ou outro à tarde, encontrava-o
sempre bem bebido, mas nunca ébrio. Naquele domingo, pelas
cinco horas, Norberto Ávila bateu à porta, mas ninguém lha abriu. Depois de
várias insistências, perante a estranheza do facto, ocorreu-lhe que o Tomás
poderia ter tido algum problema de saúde. À falta de melhor, resolveu ligar
ao 112. Minutos depois chegou ao
local um carro da polícia. Norberto explicou a situação. Os agentes deram uma
volta à casa, espreitando pelas janelas fechadas. Ao olhar pela do escritório
do Tomás, viram um homem sentado num sofá de orelhas, que o Norberto identificou
como sendo o Tomás Cerqueira. Resolveram forçar a porta de entrada. Entraram
em casa e encontraram a porta do escritório fechada à chave, por dentro.
Arrombaram a porta. Tomás estava sentado, cara
contorcida, vestígios de espuma e saliva nos cantos da boca retorcida, mãos
enclavinhadas nos braços do seu sofá preferido. Morto, seguramente
envenenado. Na mesinha ao lado, um telefone, uma garrafa fechada de whisky e
outra aberta, ainda com um dedo de álcool, uma colher e um copo, menos de
meio com um líquido claro, aparentemente mistura de whisky e gelo derretido.
Do outro lado do sofá, em cima do pequeno frigorifico, uma dúzia de garrafas
de água Perrier e duas cuvetes de gelo de plástico branco, umas e outras
vazias. O inspetor João Velhote
entrou na moradia e dirigiu-se ao escritório. Certificando-se da morte do
Tomás Cerqueira, mandou os agentes fazer uma busca pela casa e interrogou o
Norberto: – Amigo do falecido? Qual
era o nome dele? E o seu? Costumava visitá-lo com frequência? – Chamo-me Norberto Ávila.
Sim, sou amigo do Tomás Cerqueira desde há muitos anos. Costumo visitá-lo aos
domingos à tarde, uma ou duas vezes por mês, não mais. Sei que ele costuma
passar o fim-de-semana sozinho em casa, sempre lhe fazia um pouco de
companhia. Regressando a casa, José
Machado entrou nessa altura no escritório. – E você, quem é? – José Machado, empregado
do senhor Cerqueira. Acabo de gozar a minha folga de fim-de-semana. O que
aconteceu? – O seu patrão morreu
envenenado, parece que com o whisky que esteve a beber. – Não pode ser! – exclamou o Machado – As duas garrafas estavam seladas de
fábrica quando as trouxe ontem ao fim da manhã! Como sempre, era uma
exigência do senhor Cerqueira! Bem como as garrafas de Perrier! – Perrier no whisky?... – perguntou o Velhote. – Não exatamente. O senhor
Cerqueira apenas põe gelo no whisky, mas esse gelo é feito com água Perrier,
aqui mesmo, naquele frigorífico. Trago-lhe as garrafas seladas de whisky e de
água e é ele mesmo que enche – enchia, desculpe – as cuvetes e as punha no
frigorífico. Era também ele que lavava sempre as cuvetes e o copo… – Ele costumava beber todos
os dias? – Bebia só no
fim-de-semana, mas aí eram sempre duas garrafas de whisky… O inspetor espreitou dentro
do frigorífico: seis iogurtes intocados, no congelador
quatro cuvetes de gelo, uma delas meio vazia. – Quando é que deixou o
falecido, este fim-de-semana? – Saí por volta das onze e
meia da manhã. Trouxe-lhe os iogurtes e as garrafas de whisky e de Perrier,
que deixei aqui, despedi-me e saí. O senhor Cerqueira ficou ainda com o
senhor Santos, que deve ter saído pouco depois, como de costume. Mandado buscar a casa, o
Santos chegou uma meia hora depois. Entretanto, os agentes terminaram a busca,
sem encontrarem nada de relevante. Informado da morte do Tomás Cerqueira, o
Santos foi também submetido ao interrogatório do inspetor João Velhote. – A que horas deixou ontem
o senhor Cerqueira? – Minutos depois do
Machado. O senhor Cerqueira tinha ido lavar as cuvetes à casa de banho e veio
pô-las em cima do frigorífico. Informei-o de que na próxima semana tínhamos
de tratar do IMI, despedi-me e saí, enquanto ele foi novamente à casa de
banho lavar o copo e a colher. Quando estava a vestir o casaco, no vestíbulo,
ouvi-o a fechar a porta do escritório à chave, como sempre fazia. – Gostava do seu patrão? – Bem… A verdade é que
ninguém gostava dele… João Velhote mordiscou o
lábio superior, expondo os incisivos inferiores por baixo do bigode grisalho,
como sempre fazia quando mentalmente resolvia algum caso. – Isto foi tudo bem
imaginado, sem dúvida! Mas não o suficiente… Leve este senhor detido para a
esquadra! DESAFIO AO LEITOR: Quem mandou o inspetor João
Velhote deter? Como foi executado o homicídio do Tomás Cerqueira? Que provas
poderá o inspetor apresentar para consolidar a acusação? |
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© DANIEL FALCÃO |
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