Autor

Rigor Mortis

 

Data

10 e 20 de Outubro de 2022

 

Secção

O Desafio dos Enigmas [149-150]

 

Competição

Torneio "Solução à Vista!" – 2022

Prova nº 3

 

Publicação

Audiência GP Grande Porto

 

 

A NOITE DA MORTE DE TÚLIO LAVANDAS

Rigor Mortis

 

Noite sem Lua, escura, quente, húmida, desagradável.

Márcia seguia pelo passeio, embrenhada nos seus pensamentos. Estava farta, e furiosa, das constantes infidelidades do marido, ainda por cima agravadas pelas suas bravatas junto dos amigos, e pela sua sistemática recusa em conceder o divórcio. Nessa noite estava decidida a pôr um ponto final em tudo aquilo. Poderia ser um passo extremo, mas estava desesperada e decidida a tudo. Enquanto entrava no moderno prédio de 6 andares, todo ele ocupado pela empresa de que Túlio era coproprietário e presidente executivo, acariciou a pequena pistola que levava no bolso do casaco leve, cor-de-rosa, e olhou de relance para o relógio por cima do balcão da receção – era meia-noite e um quarto. Fez um aceno de cabeça ao segurança, que a saudou atenciosamente. Não era comum Márcia ir à sede da empresa do marido, mas já o tinha feito algumas vezes, mesmo à noite, quando Túlio ali ficava a trabalhar no seu escritório no último andar.

Silvino abriu mais um botão da sua camisa, incomodado com o calor que se fazia sentir naquela noite. A agitação que o dominava tornava-o ainda mais sensível à temperatura. As ameaças que o agiota a quem devia uma enorme maquia lhe tinha feito nessa tarde tinham-no posto a suar durante horas. Ia exigir, de uma vez por todas, que o irmão lhe desse a sua parte da herança dos pais, mais do que suficiente para pagar as suas dívidas. Sabia que não seria fácil, até porque Túlio, bem conhecedor do seu carácter volátil e gastador, nunca se tinha mostrado disposto a isso. E os dez anos a menos do Silvino tinham sido sempre suficientes para que o Túlio levasse a sua avante. Mas naquele dia isso tinha que acabar. O agiota ameaçara dar cabo dele se não pagasse e Silvino estava disposto a tudo para levar o irmão a dar-lhe o dinheiro. A arma que levava no bolso das calças seria o seu argumento final, se necessário. Ao passar pelo balcão da receção da empresa do irmão cumprimentou pelo nome o segurança que lá estava, que conhecia bem das muitas vezes que lá fora para tentar convencer o irmão. O relógio mostrava meia-noite e trinta e cinco.

Luís Miguel Sanches entrou pela porta do edifício sede da empresa de que era sócio e coproprietário com o Túlio Lavandas. Cumprimentou secamente o segurança, que o saudou efusivamente. Ainda que a sua quota fosse pouco menor que a do Túlio, este tinha sempre reservado para si mesmo o papel determinante na empresa, de presidente e diretor-executivo, remetendo-o ostensivamente às funções de responsável pela logística e segurança. Estava mais do que farto das sucessivas, sistemáticas e deliberadas desconsiderações de que era alvo pelo Túlio, quando, ao fim e ao cabo, a empresa nem teria começado se não fosse o dinheiro que lá tinha posto e a sua determinação no seu sucesso. Mas a partir daquele dia tudo iria mudar e ele tomaria o lugar do Túlio. O relógio por cima do balcão da receção mostrava uma hora e cinco minutos.

 

O inspetor João Velhote estava de mau humor. Não tinha ficado nada satisfeito ao ser chamado pela central, por causa da morte de um empresário muito conhecido, já bem depois da uma da manhã. À entrada do edifício sede da VarEstra, Importações e Exportações, estava o subchefe da segurança da empresa, que o conduziu imediatamente ao último andar, ao gabinete do presidente da VarEstra. Para além de dois agentes da Polícia, na sala estavam ainda o médico-legista e outro homem, de compleição atlética.

O morto era Túlio Lavandas, sócio maioritário e presidente executivo da empresa. Estava sentado no cadeirão junto à sua secretária, com o tronco deitado sobre o seu tampo, numa poça de sangue. Junto à sua mão direita estava uma pistola de pequeno calibre. Na fronte direita, virada para cima, era visível o orifício causado pela bala, a pele em redor queimada pela pólvora, evidência de um disparo à queima-roupa. Junto ao queixo, do lado direito da face, exibia um forte hematoma azulado.

O médico-legista, já no local bem antes do inspetor, informou-o de que a morte teria ocorrido entre a meia-noite e a uma hora da madrugada.

– Reparou neste hematoma, no queixo e face direita, certo? – perguntou-lhe João Velhote. – Poderá ter sido resultante do embate da cabeça no tampo da secretária após o disparo?

– Decerto que não. Esse embate nunca poderia ter provocado um hematoma tão severo. Diria que alguém o socou com violência, ou lhe bateu com algum objeto no lado direito do queixo. Pelo aspeto, neste mesmo dia.

João Velhote refletiu, mordiscando o lábio superior e expondo os incisivos inferiores por baixo do bigode grisalho: “Nem pensar em suicídio… Empresário de relevo, fisicamente forte e bem parecido, orgulhoso de si próprio, rico, reconhecidamente bem-sucedido junto do elemento feminino, não teria razões para se matar…”

– Quem esteve aqui esta noite? – perguntou ao subchefe da segurança.

– O doutor Lavandas foi visitado esta noite pela esposa, D. Márcia Lavandas, e pelo irmão, Silvino Lavandas. A senhora entrou às 00h15 e o irmão às 00h35, como anotado pelo segurança de serviço na porta e conforme já tive oportunidade de verificar nas imagens do circuito de vídeo vigilância. Qualquer deles esteve na empresa menos de dez minutos. Aqui o doutor Luís Miguel Sanches, vice-presidente da VarEstra e diretor do departamento de Logística e Segurança, chegou à 01h05. Foi ele que encontrou o corpo do doutor Lavandas e me chamou, bem como telefonou à Polícia.

Humpff… – resmungou João Velhote. E virando-se para o outro homem presente, Luís Miguel Sanches:

– Diga lá de sua justiça…

– Como disse o senhor Marques, subchefe da Segurança da empresa, cheguei aqui por volta da uma hora da madrugada. Precisava de falar urgentemente com o doutor Lavandas, e como sabia que ele estava aqui a trabalhar num processo de exportação de fruta para os Estados Unidos, que nos tem estado a dar muitos problemas, vim até cá. Quando entrei no gabinete encontrei-o como pode ver, já morto. Não toquei em nada e chamei imediatamente o senhor Marques. E telefonei para a Polícia, claro, informando-vos do facto.

Humpff… – resmungou novamente João Velhote.

Só por volta das cinco e meia da manhã é que os agentes da Polícia puderam trazer até à VarEstra a mulher e o irmão de Túlio Lavandas. O corpo já tinha sido levado para a morgue, onde seria autopsiado, mas João Velhote continuava lá, aproveitando a oportunidade para longos interrogatórios ao Luís Miguel e ao subchefe da segurança da VarEstra.

Pelo primeiro ficou a conhecer a excelente situação financeira da VarEstra, mas também pormenores sobre a tumultuosa relação conjugal do seu presidente executivo. Interrogou o subchefe da segurança da empresa sobre o circuito de vídeo vigilância. Era muito sofisticado, mas, como qualquer sistema do género, tinha deficiências resultantes da configuração do próprio edifício – colunas, esquinas apertadas e escadas interiores estreitas eram sempre um problema complicado. As múltiplas entradas nos armazéns, nas traseiras do edifício, eram outro problema difícil de resolver. O andar da administração da empresa, último piso do edifício, não tinha qualquer câmara. Nada que João Velhote não tivesse visto em muitos outros locais.

Velhote dirigiu-lhes as primeiras perguntas:

– A senhora é, suponho, a esposa do doutor Túlio Lavandas. Ao que julgo saber, teria sobejas razões para estar desencantada com o seu marido… Por que não se divorciou?

Márcia Lavandas, fisicamente frágil, mas atraente e elegante, mostrava-se muito cansada e angustiada. As rugas vincavam-lhe a testa, os lábios estavam apertados, os cantos da boca puxados para baixo.

– Muita gente sabe que o tentei várias vezes, mas o Túlio nunca se mostrou disposto a tal. – A sua voz, ainda que bem modulada, era rouca e as palavras pareciam sair com dificuldade.

– Esteve aqui esta noite, não foi?

– Sim… Pouco depois da meia-noite. Ao jantar, numa festa de aniversário de um amigo, soube pelo Luís Miguel, que também lá estava, que o Túlio estava a trabalhar na empresa e resolvi vir para o tentar convencer, se possível definitivamente, a aceitar o divórcio. Quando entrei no gabinete… – a voz embargou-se – encontrei-o ali… – apontou para a secretária – morto… Fiquei sem saber o que fazer… Acabei por me ir logo embora… E ir a pé para casa…

– E você é o único irmão do Túlio Lavandas, não é? – A pergunta foi dirigida a Silvino Lavandas, alto, musculado e seco de carnes, com as vestes algo desalinhadas. – Dez anos mais novo, amigo da farra e jogador inveterado, certo? Também aqui esteve esta noite, não foi? A que propósito?

– Sim… – Silvino hesitou um par de segundos antes de responder. – Vim de facto aqui à VarEstra, para falar mais uma vez ao Túlio e para o convencer a dar-me a minha parte da herança dos nossos pais. Preciso desse dinheiro…

– Entrei pouco depois da meia-noite e meia. E encontrei aqui o Túlio morto, sobre a secretária, com um tiro na cabeça. Obviamente, dei meia-volta e tornei a sair. Fui até um bar e por lá fiquei um par de horas, até voltar para casa. Não fui eu que matou o Túlio! – A última frase foi pronunciada num jato, eivado de raiva, ainda que se pudesse notar um leve tom de satisfação.

 

Caro leitor, qual é a sua ideia? Será que João Velhote está enganado e que se tratou de facto de um suicídio? Se foi um assassinato, quem foi o assassino? Alinhe as suas deduções e descreva o que poderá ter ocorrido na noite da morte de Túlio Lavandas.

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO