Autor Data 24 de Setembro de 2000 Secção Policiário [480] Competição Prova nº 11 Publicação Público |
MISTÉRIO NUMA NOITE DE VERÃO Rip Kirby Liberto Alfredo Martins Fana
de Menezes, possuidor de título nobiliárquico, embora o não usasse, vivia
numa moradia em tudo digna dos seus pergaminhos e da sua fortuna. A casa, situada no alto de
uma pequena colina, era rodeada por um imenso parque limitado em todo o seu
perímetro por um muro com cerca de meio metro de altura que servia de base a
um gradeamento em ferro forjado que lhe acrescentava dois metros e onde as
roseiras, em grande abundância, se engavinhavam em toda a sua extensão e
altura. No interior, a cerca de dois metros do muro e paralela a este, uma
fila de altos cedros, plantados muito perto uns dos outros, tornava inútil
qualquer tentativa para ver o que existia para além deles. A única passagem para o
interior da propriedade era fechada por um portão trabalhado de forma
idêntica ao gradeamento. Um pequeno arco, também aproveitado pelas roseiras
para se segurarem, ligava entre si as duas partes do gradeamento no ponto
onde era interrompido pelo portão e limitava a altura deste. Tudo isto fora
atentamente observado pelo inspector, que, antes de
se dirigir para a entrada, mandara o motorista circundar lentamente a
propriedade. Agora, enquanto aguardava que lhe abrissem o portão, admirava os
dois formidáveis cães que dormitavam, um de cada lado da área que conduzia à
casa, mas que, ao pressentirem um estranho junto do portão, se lançaram na
sua direcção, quedando-se, presos por fortes
correntes, a pouco mais de meio metro, ladrando furiosamente ao intruso. A
presença do inspector Eduardo Trindade ali àquela
hora da manhã, 8h30, nos fins de um mês de Julho que corria abrasador, devia-se a um telefonema recebido minutos antes
comunicando a estranha morte do dono da casa. Aberto o portão, o carro do
inspector rapidamente alcançou a moradia, indo
estacionar frente à entrada principal, onde foi recebido por uma senhora de
alta estatura e farta cabeleira loura que fumava nervosamente. Pelo seu aspecto o inspector pensou que
ela fosse estrangeira e que se tratava da dona da casa, mas logo que esta se
apresentou ficou a saber que apenas acertara em metade da sua suposição. De facto, a senhora,
segundo afirmou, era de nacionalidade francesa, chamava-se Marguerite de Menezes e era viúva de Albano de Menezes,
irmão mais novo do dono da casa. Nunca tinha visitado Portugal antes, apenas
aqui se encontrava havia uma semana. No entanto, apesar disso, falava
fluentemente o português. Viera a convite do cunhado. – Esta manhã a empregada da
limpeza, ao entrar na biblioteca, foi encontrar o meu cunhado morto. Quando ela me disse, eu nem
quis acreditar e fui ver, mas tive que me render à evidência – o Liberto
estava morto com um tiro na cabeça. Perante este facto, telefonei de imediato
para a polícia. Após ter prestado estas
informações ao inspector sem que este lhas pedisse,
conduziu-o ao aposento do 1º andar, onde tinha ocorrido a tragédia. Eduardo Trindade penetrou
no aposento, fechando a porta atrás de si e encostado a esta estudou durante
alguns momentos a sala em que acabava de entrar. Era um compartimento amplo
de forma rectangular. Ao fundo, frente à porta,
situava-se uma enorme secretária e, por detrás desta, um pouco desviado para
a esquerda, um cofre cuja porta se encontrava aberta. Ladeando o cofre, duas
janelas adivinhavam-se escondidas por pesados reposteiros. Na parede da esquerda,
com espaços de dois metros entre si, havia cinco janelas, ou antes quatro,
porque a do meio era uma porta que dava para a varanda que rodeava todo o
edifício. Na parede da direita, na do topo de entrada na sala ladeando a
porta e nos espaços entre as janelas, havia estantes até ao tecto repletas de livros. No canto formado pelas paredes
do fundo e da direita existia uma lareira e junto desta os respectivos apetrechos. Eduardo Trindade, depois de
observar toda a sala, aproximou-se da secretária, pois era aí que se
encontrava o motivo que o levara à aristocrática moradia. Liberto de Menezes
encontrava-se sentado com o corpo debruçado sobre a secretária e a cabeça
virada para a direita, o que permitia ver o orifício que uma bala provocara
no parietal desse lado. O braço direito pendia entre as pernas e,
curiosamente, da ponta do dedo indicador, presa precariamente pelo
guarda-mato, pendia uma pequena pistola tendo o cano virado para a frente. O
antebraço esquerdo estava apoiado sobre a secretária e junto da mão uma
caneta de boa marca, mas que, apesar disso, mostrava uma pequena fuga de
tinta, um pouco acima do aparo. Sob a mão esquerda estava uma folha de papel
onde fora iniciada uma carta de carácter comercial. Pela aparência do ferimento
o inspector deduziu que o tiro havia sido disparado
com o cano da arma a não mais de 10cm da cabeça. Na lareira encontrou uma
bola de papel semiqueimada. Usando dos cuidados
adequados desfez a bola e, embora não fosse compreensível o que aí estava
escrito, era fácil concluir que se tratava de um
testamento. De seguida, deu uma vista
de olhos pelo cofre, cujo conteúdo mostrava todas as evidências de que havia
sido remexido; contudo, não podia determinar com segurança se ali faltava
alguma coisa. Voltou para junto do cadáver
que fitou distraidamente. Notou que no lado direito do dedo médio da mão
esquerda, junto à unha, havia um pequeno endurecimento da pele que
apresentava um ligeiro tom azulado, bem como as polpas dos dedos indicador e
polegar da mesma mão. Engraçado, pensou ele. Posto isto o inspector deu por concluído o seu trabalho ali e
dirigia-se para a saída quando, após ligeiras pancadas na porta, esta se
abriu e no seu limiar surgiu a figura avantajada do ajudante de Eduardo
Trindade. – Entre, Silveira! Então
que novidades tem? – Senhor inspector, falei com todos os
ocupantes da casa e tenho aqui um rascunho do que me disseram. – Então leia isso, homem,
leia, que estou curioso. O sargento iniciou a
leitura: – Marguerite
de Menezes: nada sabia sobre o cunhado, encontrava-se ali havia apenas uma
semana e ainda mal tivera tempo para com ele contactar, pois andava sempre
muito ocupado. Só no dia anterior é que o Liberto tivera alguma
disponibilidade de tempo e passaram o dia na praia, com toda a família. Foi aí
que, aproveitando um momento em que estiveram sós, o cunhado lhe disse que a
sua herdeira seria a afilhada, o que ela não achava justo, pois o filho dela
tinha muito mais direitos. À noite, após o jantar, cerca das 20h30, o cunhado
foi para a biblioteca dizendo que ia trabalhar e ela subiu com ele, indo para
o seu quarto, pois estava com uma ligeira dor de cabeça, não voltando a ver o
Liberto. – Ernesto de Menezes:
oficial do exército na reserva, irmão gémeo do falecido. Não estava a par dos
negócios do irmão. Na noite anterior, depois de todos se levantarem da mesa,
ainda ficara algum tempo a ler o jornal e a fumar o seu cachimbo. Normalmente
só fazia isto depois do Liberto se levantar da mesa, pois ele detestava o
fumo do tabaco. Em seguida fora para a varanda do rés-do-chão, onde se
entretivera na conversa com os empregados. Cerca das 23h45 subira para o seu
quarto e durante a noite não ouviu nada de estranho, o que nem era de
admirar, pois tinha um sono muito pesado. – Carminha
Larguito: governanta e cozinheira, encontrava-se na
casa desde muito jovem. No dia anterior, aproveitando a ausência dos patrões
durante quase todo o dia, fizera uma limpeza à casa com a ajuda do restante
pessoal. Após o jantar e depois de ter arrumado a cozinha foi para a varanda
conversar com o senhor coronel. Não ouviu nada, nem sabia que o senhor conde
tivesse algum problema. – Ofélia Campos: criada,
tinha a seu cargo a arrumação diária dos quartos e da biblioteca e ajudava na
cozinha à hora de confeccionar as refeições e lavar
a loiça. No dia anterior fora a ela que coubera a limpeza da biblioteca que
deixara num brinco. Não é que isso lhe tivesse dado um grande trabalho, pois
fazia-o todos os dias. Não ouviu nada de estranho; apenas aí pelas 23h ficara
com a impressão de ter ouvido ladrar os cães, junto ao portão, mas, tirando o
João, parece que mais ninguém dera por isso. – João Fonseca: jardineiro,
guarda-portão e por vezes motorista, vive numa pequena casinha a poucos
metros do portão. Ontem, como não tinha nada que fazer no jardim, já o tinha
regado logo pela manhã, fui dar uma ajuda na limpeza que a Carminha decidiu fazer. “À tarde, quando os patrões
chegaram da praia, lavei o carro e guardei-o na garagem. Depois fui à cozinha
para jantar, após o que fiquei algum tempo na conversa com o restante
pessoal, até que o sr. coronel
se juntou a nós e falámos sobre a guerra, pois ele foi meu comandante de
esquadrão em Angola, já lá vão 30 anos. Seriam talvez 23h quando ouvi os cães
ladrar e fui ver porquê, mas não vi ninguém. Pensei que tivessem ladrado por
causa do telefone que estava a tocar. Era a menina, a afilhada do patrão, que
não tinha jantado em casa, a dizer que não esperasse por ela. Verifiquei o
portão, que continuava fechado, soltei os cães e fui deitar-me. Não dei por
nada, nem sei que o senhor conde tivesse algum problema que o levasse ao
suicídio.” – Octávio de Menezes:
sobrinho do falecido e fi-lo de Marguerite de
Menezes, tenente do exército, havia acabado de chegar. “Não sei de nada,
acabo de chegar, e aquilo que sei foi o que o João me contou. Ontem estive de
oficial de dia e só esta manhã saí de serviço. Não me encontrava a par dos
negócios do meu tio. Por isso, nenhuma ajuda posso dar sobre o conteúdo do
cofre. O advogado dele encontra-se muito melhor habilitado do que eu para
isso.” – E pronto é tudo o que
consegui! – exclamou o agente Silveira, quando
terminou a leitura dos seus apontamentos. – Muito bem, temos portanto
que ouvir ainda esse advogado. Vamos chamá-lo aqui – respondeu Eduardo Trindade
–, mas antes quero fazer mais uma pergunta ou duas à criada Ofélia. Vá
buscá-la, por favor. Pouco depois o inspector tinha diante de si a atemorizada criadita. – Não esteja assustada,
minha filha, que ninguém lhe faz mal – disse-lhe Eduardo Trindade, tentando
tranquilizá-la. Eu só quero que me diga uma coisa. Você disse aqui ao
Silveira que ontem deixou a biblioteca num brinco. Sendo assim, quem teria
deixado aqui estas pontas de cigarro? E indicou-lhe um cinzeiro que se
encontrava sobre uma pequena mesa junto a uma das janelas. – Como vou eu saber? O sr. coronel não foi, que só fuma
cachimbo, a menina Helena, se fuma, nunca o fez cá em casa e, além disso, não
esteve cá. O sr. Octávio também não esteve em casa
e mesmo que estivesse não fumaria ao pé do tio como todos e que eu saiba
ontem não esteve cá nenhuma visita. – Obrigado, minha filha,
pode retirar-se. E, dizendo isto, Eduardo Trindade foi encaminhando a jovem
para a porta. Logo que esta saiu, virou-se para o ajudante e disse: – Vamos agora saber o que o
advogado nos pode adiantar. O advogado entrou e foi
levado até junto do cofre, que examinou demoradamente, após o que, virando-se
para Eduardo Trindade, disse: – Está tudo, não falta
nada. – Tudo? Admirou-se o inspector. Então e o testamento queimado? – acrescentou, mostrando o papel semiqueimado
retirado da lareira. – O testamento encontra-se
no cofre do meu escritório, isso não passa de uma cópia que nem sequer estava
assinada. Dois dias depois, lendo
alguns dos relatórios que lhe foram enviados, tomou conhecimento de que o número
da arma encontrada na mão do morto não constava dos registos portugueses e
que a morte deveria ter ocorrido entre as 21h30 e as 23h30, nem antes nem
depois. O inspector
ficou arreliado, pois estava de partida para férias e aquele caso vinha em má
ocasião, já que tudo isso não o deixava raciocinar convenientemente. Quem se decide a dar uma
pequena ajuda a Eduardo Trindade para ele poder ir para férias na data
prevista? Foi crime ou suicídio?
Justifique convenientemente as suas opções. |
|
© DANIEL FALCÃO |
||
|
|