Autor Data 22 de Dezembro de 2021 Secção Policiário [103] Publicação Sábado [921] |
A RABANADA DE VENTO Sete de Espadas Corria muito
bem a vida na empresa Lopes e Costa. Apesar da crise, a belíssima carteira de
clientes da firma de representações e vendas a retalho dava para ir escapando
às aflições globais. A noite de Natal
da minha santa terrinha é igual à noite de Natal de milhentas outras terras.
Não temos neve (no Ribatejo, lá para os lados da Ponte da Chamusca, não neva
assim com facilidade), mas temos uma geada muito fria, umas vezes branca,
outras, cinzenta, em palhetas finas ou grandes manchas de bordos rugosos… De
manhã ela rebenta e faz-se em estilhaços cristalizados, debaixo das nossas
grossas botas ferradas, e forma crosta coriácea nos poços de água da “calçada
à portuguesa” ou do macadame esburacado e até no bebedouro das galinhas ou
nas regadeiras das hortas… Dá gosto sair
de casa, manhã muito cedo, de barrete bem enterrado na cabeça a tapar as
orelhas, quando o galo canta, embrulhados na manta, o pescoço e o peito bem
tapados ou de capa com gola de raposa, safões e botas cardadas e ouvir o “crrraque crrraque” dos cristais
de gelo a estalarem e a esmigalharem-se debaixo das botifarras… Na noite de
Natal na santa terrinha do Outeiro da Senhora do Pranto ao de São Pedro, do
Vale à Ermida do Senhor do Bonfim, da Lagarteira ao Nicho, rico ou pobre,
todos têm as suas “filhoses” ou “velhoses”, fritos
de uma massa onde abunda a abóbora, a chila e a farinha de trigo. E temos
também coscorões, massa muito estendida cortada à medida do fundo da
frigideira, com vários golpes, que depois é frita em muito azeite e fica
muito tostadinha e estala na boca, para logo ser acompanhada de uma ótima
aguardente vínica… Para uma noite ou manhã fria, não há melhor mata-bicho… E há ainda o
célebre bacalhau com grelos – quem não tiver ou não puder arranjar brócolos…
– que se come antes da meia-noite, porque todo o mundo vai à Missa do Galo! E nós, o nosso
já célebre grupo, lá estávamos sempre caídos. Estávamos, quase todos, de
férias… Recordo-me do Xico Romão, do Zé Petisca, da Lizette,
Xico Ferreira, do Xico Malaquias, do Carlos do Banjo, do Zé Nabo, e de
tantos, tantos outros que também não faltavam à Missa do Galo… Era parte
integrante da festa da família e nós sempre fomos uma grande família… Os mais
pequenos da família, esses, ainda com pouco mais de palmo e meio, ficavam em
casa, no quentinho que as chamas irradiavam ao queimarem na ampla lareira o
“velho madeiro” guardado propositadamente para a altura – quase sempre uma
forte e velha, e ressequida raiz de pinheiro, para quem não tinha eucalipto,
raro naquela época, que se ia consumindo lentamente e esparralhando pelas
tijoleiras… A iluminação,
ao tempo, era ainda, na maioria das casas a velha iluminação a “pitrol”… Quando,
naquela noite grande regressámos a casa, sob uma ventania fria e cortante, já
muito depois da 1h, toda a casa estava em “polvorosa”… Uma rabanada de vento
mais forte tinha aberto de supetão portas e janelas, apagando candeeiros e
espalhando o pânico entre os rapazes mais pequenos e as duas criadas que com
eles tinham ficado: a velha Aninhas, já muito velhinha e a Arminda, a moça
mais admirada das redondezas… O pior, foi o
que depois se verificou… Do esplêndido bolo de mel, receita da madrinha
Carmelina, tinha voado uma boa talhada… E é que
ninguém tinha sido, nem visto… O Jorgito tinha ido “lá dentro”" e… “lá
dentro” ficara… O Carlos aventou a hipótese de ter sido o galo… O Tonito
dizia que podia muito bem ter sido o Vicente… (Vicente era o nosso corvo,
amigo inseparável das velhas tropelias…) e a Carminho não tinha estado ali… E
ninguém adiantava mais… A Aninhas, por
sua vez, explicou que: – Estávamos na
cozinha, aquando da rabanada de vento. As portas e janelas abriram-se de
repente e parecia que andava o diabo à solta… Alguns dos miúdos gritavam com
a falta de luz. Disse então à Arminda: – ‘Vai ver o que se passa e leva a
caixa de fósforos… Procura um castiçal!’ – E eu fui –
explicou a Arminda. Estava bastante escuro, mas como sei onde estão os
móveis, atravessei o corredor e apalpando aqui e ali, entrei no salão e
percebi logo que faltava uma boa talhada do bolo de mel… Acendi o candeeiro
de dois braços, chamei os meninos acalmando-os aos poucos, e depois de lhes
falar, todos me disseram que ali não tinham mexido… O pior é que logo
calculei que a senhora não ia acreditar nisso. – Ah, pois
não! – Corta a voz do Zé Nabo, atrás de mim, que até ali se tinha mantido
muito silencioso a chupar um dos seus “20-20-20”… Então V., Arminda, deixa
que aconteça uma coisa destas? Parece impossível! Todos nos
olhámos em silêncio. Há muito que o Zé Nabo não tinha uma das suas saídas,
agora, ali estava… O Zé Nabo sempre tinha cada uma… Pois caros
colegas e gentis amiguinhas, isto aconteceu numa noite de Natal… Pergunta-se:
Porque entende que o Zé Nabo fez tais afirmações? |
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© DANIEL FALCÃO |
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