Autores Data 30 de Junho de 1995 Secção O Detective
- Zona A-Team [241] Competição Problema nº 5 | Laranjeiro Publicação Jornal de Almada |
O MISTÉRIO DA MORTE DE MR. MORLEY
(“PASTICHE”) Severina De
início, Sherlock Holmes não foi favorável à
publicação deste episódio. Durante muito tempo pareceu esquecê-lo, sem o
citar no decorrer doutros casos, como fazia a propósito daqueles que lhe
agradava recordar. Certa vez, porém, num dia de chuva constante, dos que
enchem de humidade tudo em que se toca, o meu amigo perguntou-me, saindo da
meditação em que mergulhara. –
Lembra-se, meu caro Watson, do dia em que veio convidar-me para a récita de Mr. Ashley e em que acabamos
por ir ao encontro do mistério da morte de Mr. Morley? –
Perfeitamente. Não
tinha dado conhecimento a Holmes, no entanto, havia
tomado minucioso apontamento desse caso notável, embora o meu amigo não o
considerasse assim. De tal modo que apenas acedeu à sua publicação sob a
condição de ser apresentado como problema. Acontecera
quando Holmes atravessava um daqueles períodos de
necessidade de isolamento, havia uma semana, mergulhado na leitura dos seus
livros predilectos, embrenhando-se em meditações
profundas, ou deliciando-se com os acordes suaves do seu Stradivarius.
Por meu lado, afazeres profissionais levaram-me a deslocar, nessa manhã
intensamente chuvosa, a casa de dois clientes. Por puro acaso, ao regressar a
casa, a carruagem passou por Baker Street.
Felicitei-me pela coincidência feliz. Mr. Ashley, um dos meus clientes que visitara nessa manhã,
convidara-nos a assistir ao concerto de violino que se realizaria nessa noite
na sua faustosa residência. Evitava, assim, voltar a Baker
Street depois do almoço para avisar o meu amigo. Fui
encontrá-lo sentado no seu cadeirão favorito, envolto numa nuvem de fumo que
saía em baforadas do seu cachimbo. Através da janela, olhava o céu cinzento,
de sobrancelhas franzidas, absorto nos seus pensamentos. Pareceu nem ter dado
pela minha presença, facultada pela sua governanta que ia a sair. Mas, de
repente, falou: –
Nada me dará maior prazer, meu caro Watson! –
Não compreendo – respondi. –
É simples, meu amigo. Vejo que tem as botas bastante molhadas, mas o seu
abafo nem por isso, apesar de ter chovido toda a manhã. Esse facto indica-me
que andou fora de casa e de carruagem. Coo-mo sei que visita cedo os seus
clientes e que aproveita para fazer várias visitas ao mesmo tempo, concluo
que hoje andou a ver uns e outros. Também tive conhecimento, pelos jornais,
da récita que Mr. Ashley
organizou para esta noite. Ora sabendo que Mr. Ashley faz parte da sua clientela, facilmente deduzi –
também pelo seu ar de satisfação que você se avistou com ele e recebeu
convites para a nossa comparência a essa récita. Holmes surpreende-me
sempre, de tal maneira que fiquei sem voz. –
Não vejo motivos para espantos – terminou Holmes
sorrindo. – Vamos, vamos – continuou, esfregando as mãos – conte-me depressa
se não é verdade. Bem sabe que o meu cérebro é uma máquina que precisa de se
aplicar constantemente. –
Tem razão, sim – disse eu surpreendido. – Tencionava aparecer depois do
almoço. Por
sorte, a minha carruagem passou por aqui e pensei que seria melhor avisá-lo
já. –
Óptimo! – respondeu. – Mrs, Turnes ausenta-se até à
tarde e não me apetece ficar mais tempo inactivo.
Faço-lhe companhia e convido-o a almoçar no clube. Eram
precisamente 11.15 quando a nossa carruagem fez uma paragem afim de deixar passar outra em sentido contrário.
Estávamos numa rua onde se reparavam canalizações do gás. Os buracos abertos
na rua e os montes de terra transformada em lama pela chuva, não me
agradaram. Ia invectivar o cocheiro quando a nossa
atenção foi despertada por vozes alteradas, vindas da porta mesmo à nossa
frente. Holmes fez-me sinal e
ordenei ao cocheiro para não seguir. “– O que quer que lhe
faça, senhor, se Mr. Morley
não lhe abre a porta?” – dizia abespinhada uma
mulher trajando modestamente mas com asseio. Estava na porta da sua habitação
de porteira, ao fundo do hall de entrada, ao início
da escada de caracol que se via da rua. – “Durante toda a manhã, não o vi
passar; mas desde que saí, como quer que saiba?” “– A senhora deve
saber os seus hábitos, se quer que lho diga! – retorquiu-lhe
um indivíduo alto e robusto, de boa presença, de certo modo ofuscada pelo
deplorável aspecto das botas cheias de lama e pelo
capote encharcado. Mesmo assim, desprendia-se dos seus modos certo à vontade
de maneiras, um quê de agradável afectação. Poderia
dizer-se que vestia apropriadamente, se o tom das suas luvas, aliás em bom
estado, novas e secas, não fosse dum tom diferente daquele que seria
perfeito. – “Mr. Morley
costuma sair antes do almoço?” “– Não, senhor. Já
que mo pergunta, nunca vi Mr. Morley
sair pela manhã. É um inquilino sossegado e nunca me deu um só
aborrecimento!" – respondeu a porteira com
intenção. “– Não pretendo
aborrecê-la creia. Vim para falar com Mr. Morley às 11.00 horas. O assunto é de tal importância que
me recuso a afastar-me sem me avistar com ele!” “– Nada posso fazer,
senhor. Não me atrevo a arrombar a porta.” Holmes não esperou mais.
Saiu da carruagem e entrou sem hesitar na porta, não se importando com a lama
viscosa que teria de pisar. Na verdade, também a minha curiosidada
foi mais forte que o desejo da integridade das minhas botas, acabando por as
sujar. Apenas
me animou constatar que pareciam limpas ao lado do outro indivíduo que falava
com a porteira. –
Não sei se posso ser útil – disse Sherlock Holmes
apresentando-se. – Segundo creio, tudo gira à volta da porta fechada de Mr. Morley… Começaram
ambos a falar ao mesmo tempo, tentando explicar-se. Foi então que outro
personagem chegou. Era um vulgar moço de recados, de aspecto
rude. Para nosso espanto, trazia uma carta para Mr.
Morley. Declarou que já ali estivera para fazer a
entrega em mão própria. Subira ao 1º andar e batera, às 10.55. Não obtendo
resposta, considerou natural, pois ainda não eram 11.00 horas, como lhe tinha
sido recomendado. Voltou à rua, pretendendo ter-se desempenhado doutra
incumbência ali perto (pelo hálito que exalava, percebia-se qual fora…). No entanto,
frisou, parara para falar à porteira, não a vendo. –
Saí – disse a porteira, a senhora Morrison. – Logo
que a chuva parou, aproveitei para ir num pulo a casa dum irmão, que mora
perto e se encontra doente. –
Não sabe então se saiu? – perguntou Holmes. –
Enquanto aqui estive, não! Mr, Morley
trata dos seus negócios no clube, onde almoça com regularidade. Todavia,
ocasionalmente, recebe os seus clientes e amigos antes do meio-dia, hora a
que sai para almoçar. –
E tem a certeza que Mr. Morley
dormiu esta noite nos seus aposentos? –
Oh, sim! Mr. Morley
raramente se ausenta e avisa-me quando tal acontece. De resto, ouvi
perfeitamente a água correr para o seu banho, como habitualmente, pouco
depois das 9.30. –
A que horas chegou, Mr… – indagou o meu amigo do
indivíduo. –
Cugat, Alfred Cugat – apresentou-se o sujeito. - Mr.
Morley assentou receber-me às 11.00 horas, afim de lhe fazer entrega de dinheiro. Uma dívida de jogo,
se me entende. Lamentavelmente, pela dificuldade de me arranjarem carruagem
devido à chuva, só pude chegar cerca das 11.05, cinco minutos depois da hora
que acertamos ontem no Clube. –
Bateu à porta do 1º andar? –
Repetidas vezes, creia. E com força… –
Ainda batia quando voltei, há momentos, de tal maneira que se aqui em baixo –
reforçou a Sra. Morrison, em tom de censura. –
Devem chamar a polícia. É indispensável arrombar a porta, e só a autoridade o
pode fazer. A
senhora Morrison chamou um garoto vizinho que foi
sem demora chamar o polícia. A essa altura já a atenção de Holmes se voltara para a escada que levava ao 1º andar.
Os degraus de madeira eram largos e estavam sujos de pegadas do lama. –
Há três ordens de pegadas, tanto a subir como descer – afirmou Holmes quando me aproximei dele, momentos depois. – Estas
primeiras, quase cobertas pelas seguintes, que são estas aqui – disse
mostrando-me umas marcas largas. – As últimas, que se distinguem bem, são de Mr. Cugat. É pena que as
primeiras estejam tão sumidas e encobertas, debaixo das do moço de recados… Fui
forçado a concordar com lógica do meu amigo, mas ele nada adiantou.
Dedicava-se ainda a medições, quando o polícia apareceu. Foi imediatamente
posto ao corrente do que se passava. Sherlock Holmes
deixou que cada qual apresentasse o seu parecer, ouvindo atentamente. O
1º andar tinha dois inquilinos – os únicos moradores do prédio, além da
porteira. O lado esquerdo pertencia a Mr. Morley, o direito só era habitado no verão por um casal
estrangeiro. Chegados
ao patamar – o polícia, Holmes, a porteira e eu,
tendo o cuidado de passar do lado das pegadas, a pedido do meu amigo – apenas
o guarda se aproximou da porta, batendo com gravidade. Não
houve resposta. Experimentou, então, a porta com uma chave que separou dum
molho que trazia. Inútil.
A chave, ao penetrar no canhão da fechadura, esbarrava com outra, enfiada no
lado de dentro, em posição horizontal, impedindo-lhe a entrada e ficando
firme, sem cair. Foi preciso arrombar a porta. Logo
que esta abriu, pudemos ver Mr. Morley
– um homem de meia idade, estatura regular, e seco
de carnes – estendido no chão, num mar de sangue. Do peito, sobressaía-lhe o
cabo duma faca que estava espetada sobre o coração. O corpo encontrava-se
perto da janela fronteira à porta. Tudo indicava que a morte fora imediata. –
Sou de opinião que se deve chamar Mr. Lestrage, da Scotland Yard –
disse Holmes ao polícia - Trata-se de homicídio. Dê
ordem para ninguém entrar no apartamento de Mr. Morley. –
Homicídio? – estranhei, enquanto o polícia e a
porteira desciam a escada, dando a notícia aos outros. Sherlock
Holmes não me ouviu. Toda a sua atenção se
concentrou numa pegada esbatida, completa, junto à guarda da escada, só agora
visível por a porta estar aberta, já que a claridade da clarabóia
não era suficiente. –
Veja, Watson, como esta pegada, dum pé direito, mostra que foi deixada por
quem se apoiou nele afim de se debruçar no varandim
e espiar o que se passava em baixo. –
Acha que mais alguém esteve aqui? Holmes só daí a momentos
falou. –
Mais ninguém, meu caro. Esta pegada foi feita pela pessoa que subiu ao 1º
andar em primeiro lugar, alguém que veio da rua e que não sabemos quem é.
Repare, ainda, como os traços deixados pelas suas botas, meu caro Watson, nos
fazem ver o estado dessas que pisaram primeiro a escada: molhadas e com leve
camada de lama, apesar das suas serem mais pequenas e estreitas. Pelo
contrário, as pegadas do moço de recados, do mesmo modo que as de Mr. Cugat, trazem uma camada de
lama mais sólida, como se tivessem andado mais tempo sobre a lama. Todavia, é
interessante como a medida de duas das pegadas se assemelham. Curioso, muito
curioso… Pelo
brilho dos olhos de Sherlock Holmes, percebi que a
luz começava a nascer no seu espírito. Entregou-se por completo ao exame dos
rastos. Terminava com um ah! de satisfação, quando Mr. Lestrage chegou: vivaz e
furão, como sempre, tomando conta da situação. Sherlock Holmes
cumprimentou-o com amabilidade e acompanhou-o na visita aos aposentos de Mr. Morley, constituídos por
quarto, casa do banho e pequena cozinha, além do escritório, à entrada.
Acharam tudo em perfeita ordem, com excepção da
casa de banho e do quarto, ainda não arrumados (segundo esclarecimento da
porteira, uma empregada de limpeza ia cuidar da casa, todos os dias, depois
do Mr. Morley sair), e
duma cadeira derrubada pelo peso do corpo ao cair. Os
guardas revistaram tudo, não vendo quaisquer indícios de alguém ter entrado
no escritório, nesse dia. Todas as janelas estavam fechadas por dentro e só
havia aquela porta. Mr. Morley tivera morte imediata. Morrera recentemente, pois
o corpo ainda não estava rígido. Holmes dedicara-se
a um exame cuidadoso, ponto por ponto, a todas as divisões, e por fim, à sala
de entrada. Aproximei-me do meu amigo quando o vi estudar a fechadura da
porta. –
Sabe, Watson, que a porta não estava fechada à chave? A chave, por dentro,
impedia que pudesse ser aberta por fora, mas estava só no trinco. –
Que morte estranha – desabafei. – As janelas fechadas por dentro, a porta sem
se poder abrir por fora… O chão limpo, dando a impressão que ninguém pós os
pés nesta sala… No entanto, o pobre homem foi morto! Holmes desviara já a
atenção para uma pequena mancha escura, que me pareceu sangue, situada a
cerca de 50 cm. da porta, dentro do escritório.
Retirou um pequeno frasco do bolso e, com auxílio dum canivete, removeu-a do
chão, guardando-a no frasco, que arrolhou. Pela
tensão contida que vi claramente em Holmes,
compreendi que a hipótese ganhava força e que a certeza não tardaria.
Aguardei pacientemente o momento em que seria inteirado de tudo, respeitando
por agora a contínua efervescência daquele cérebro, sem o perturbar. Lestrage, sem saber o que
pensar, não deixava escapar nada. Resolveu abrir a carta que viera para Mr. Morley. Era
dum tal Mr. Contmann,
amigo e cliente da vítima. Adoecera subitamente e apressara-se a prevenir o
amigo da impossibilidade da sua presença à entrevista marcada para as 11.00
horas desse dia, sabendo como Mr. Morley se mostrava particularmente exigente sobre
pontualidade, já que tinha o cuidado de apenas receber uma pessoa de cada
vez. Lestrage viera mostrar a
carta a Sherlock Holmes, que a leu sem emoção
limitando-se a dizer em tom casual: – É um erro considerar um crime
impossível só porque as circunstâncias parecem mostrá-lo impraticável. Não
creio em crimes perfeitos… Neste caso, o criminoso enganou-se: julgava-se
seguro e espalhou indícios que o desmascararam! A
reconstituição fez-se e o culpado não tardou a confessara. Fomos finalmente
almoçar depois de mais este mistério desvendado e Lestrage
haver efectuado a prisão do culpado. Mas Holmes não estava tão satisfeito consigo como lhe era
habitual. Demora demais, dizia, não se perdoava. Fiz
tudo para o demover. Eu ficara maravilhado, como sempre, e não me furtei a
manifestá-lo, com o meu aplauso. Holmes
sensibilizou-se, por fim, com a minha admiração, envaidecendo-se dela. Mas
não deixou de recomendar: Quando examinar alguém, meu caro
Watson, não deixe de dar atenção ao modo como se apresenta. Qualquer nota
discordante ou injustificável, é da maior importância! |
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© DANIEL FALCÃO |
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