Autor Data 8 de Outubro de 2000 Secção Policiário [482] Competição Prova nº 13 Publicação Público |
A MORTA DO CHAFARIZ DE EL-REI Severina Numa noite de segunda para
terça-feira, o 112 recebeu o pedido de auxílio para um corpo caído junto ao
Chafariz de El-Rei – o chafariz mais antigo de Lisboa, com tradição medieval,
na velha Alfama. Eram 5h30. Estava-se no
Outono e a trovoada da lua nova tornara o tempo chuvoso, com aguaceiros intermitentes.
Pouco antes, caíra uma chuvada torrencial, que dificultou as diligências para
retirar o corpo, devido à inundação local. Era uma mulher muito nova,
franzina, e fora assassinada com o próprio lenço de seda, fortemente apertado
no pescoço, desfigurando-a; o corpo, de vestuário ensopado, tomara uma
posição torcida e pouco natural, à frente do velho chafariz, no espaço abaixo
da via pública. Depressa a mulher foi identificada.
Cristina, empregada num café da zona ribeirinha (populosa durante o dia e
deserta a partir de certa hora), era bem conhecida pela clientela. Mas no
local de trabalho nada sabiam quando, às 8h30 da mesma terça-feira, a polícia
se apresentou no café. Estavam admirados. Sempre pontual, nunca faltava sem
avisar, mesmo se calhava o turno de terça-feira (o dia a seguir à sua folga)
se iniciar às 8h00. David, o empregado mais novo, já fora saber da demora, e
voltara sem novidades. Cristina morava no primeiro andar do prédio vizinho ao
café, mas não respondera. Dada a gravidade da notícia, o sr. Lopes, empregado
de muitos anos, braço-direito do gerente, acompanhou um guarda à morgue e
reconheceu a colega. O agente Morgado,
encarregado do inquérito, enquanto não se conhecia o resultado da autópsia,
quis visitar o quarto que a vítima habitava na casa de D. Mariana, uma
senhora viúva, a quem pediu a chave. O prédio, muito antigo, esquecido pelo
senhorio nos arranjos elementares, era de dois andares de um só lado; sem
porteira e com precária segurança, habitados por inquilinos idosos. A escada
e o patamar do primeiro andar, de madeira lavada, conseguiam estar enlameadas
dado que o piso na rua não tinha tido tempo de secar. De luzes acesas,
Morgado procurou as marcas dos pés desde o patim inferior, rente à porta
principal, e ainda as que passavam e subiam após o primeiro andar, vendo que
existiam dois tipos de pegadas de mocassins, uns de sola mais larga e outros
ligeiramente mais estreita, de desenhos fora do comum – que se ficavam pelo
primeiro andar. Mas sem possibilidade de as isolar, a fim de serem medidas,
ou moldadas: os contornos eram de uma camada extremamente leve e não
completavam o desenho total. Para isso contribuiu também a ida de David ao
local, de manhã, com as suas botas de ténis Bufallo, de sola alta, à moda. O patamar
ficou patinhado por todo o lado. Só junto à linha da porta do quarto de
Cristina se via, em destaque, a parte traseira de uma pegada de mocassim,
como se tivesse ficado metade fora e a outra parte dentro. Sem que, apenas
pelo salto, se pudesse afirmar se seria do pé mais largo, ou do mais estreito… Sem a equipa de colheita de
dados, o agente Morgado descalçou-se antes de entrar. O quarto, alcatifado,
estava em ordem. Apenas um pequeno saco de viagem (roupas e revistas, um
álbum miniatura com fotos de criança) sobre uma cadeira e, em cima da mesa, a
mala de mão (telemóvel, carteira de documentos, artigos de higiene e beleza,
porta-moedas e esferográfica) – humedecidos e com traços de lama. A luz
eléctrica, indirecta, estava acesa e a persiana descida. Via-se a área, na
alcatifa, onde ficara a outra parte da pegada, agora desfeita, de halo
irregular. Saiu como entrou, mexeu em tudo com protecção, guardou a chave.
Havia de ser precisa e não vira chaveiro na mala de mão de Cristina. A autópsia confirmou o estrangulamento
como causa de morte da vítima Era saudável, não fora violada, nem havia
ferimentos no corpo. Apenas apresentava ligeiras equimoses no lado direito do
torso, o lado para que estava voltada, junto ao chafariz. A hora provável da
morte tinha sido entre as 23h00 as 3h00. Cristina tinha 22 anos, era mãe
solteira, e o fi-lo vivia com os avós. A mãe ia vê-lo de 15 em 15 dias, na
sua folga. Ia na véspera à noite e voltava a Lisboa na última camioneta de
carreira. Depois de chegar à capital, na segunda-feira à noite, hora tardia, ninguém
disse que a viu chegar ou lhe falou. Ainda chocado, o sr. Lopes,
sexagenário desempenado, lembrou que notara certa impaciência nos modos de
Cristina, nos últimos tempos. Sem qualquer indício, pensou se João Fernandes,
o gerente, a teria assediado, pois sabia que tinha um fraco por ela. Enganara-se,
porque na segunda-feira, quase à hora de fechar, às 21h00, uma mulher
telefonara a pedir informações da empregada, e a sua morada. Cristina queria
era arranjar outro emprego – pensava, nessa noite, o sr. Lopes quando seguia
para casa, em Belas. D. Rosa, a cozinheira (no
café serviam almoços), dava-se bem com Cristina. Era ainda nova. Aconselhara-a
a ser firme e não querer homem apenas para ter um lar. Isto por lhe ter
ouvido ditos ocasionais. No entanto, as duas não eram amigas, apenas duas mulheres
de gerações diferentes. À hora em que as coisas aconteciam, dormia. Morava no
Forte da Casa e, à terça-feira, tinha o turno das 8h00. João Fernandes, viúvo
há uns meses, gerente do estabelecimento, morava no andar por cima do café; adoeceu
com certa gravidade durante a noite e foi assistido no hospital – um
princípio de enfarte. O taxista que o levou às urgências assistira à
inscrição e esperara até ele entrar. Ia a passar no Terreiro do Trigo. Vira-o
sair do seu carro e fazer-lhe sinal – enganara-se no caminho, estava longe de
sua casa; não tinha condições de conduzir. Devia ser 1h00, ou pouco mais. O gerente
só voltou a casa de uma irmã, perto das oito horas da manhã. D. Mariana, dona da casa,
que alugara o quarto a Cristina, conhecia a moça desde criança e era amiga da
família. A moça tivera azar com Adriano e com a sua melhor amiga – que lhe
invejava o namorado e o convenceu que o filho da amiga não era dele. De tal
modo que o induziu a partirem para a Venezuela, onde arranjaram trabalho.
Aconteceu que, na segunda-feira, tinha sido o aniversário do neto; ficou até
mais tarde em casa do filho, que a trouxe à porta, no carro. Antes de entrar
na porta, que alguém deixara aberta, viu luz no quarto da hóspede, através da
persiana. Depois distraiu-se, nas despedidas, e não pensou mais no assunto. Na segunda-feira, ainda
antes do almoço, Adriano entrou no café – queria falar com Cristina. Impressionado,
ao ser informado da morte da moça, contou que vivia na Venezuela. Reconhecia
que fizera mal em sair do país, mas viera disposto a fazer os testes
necessários, para cuidar do futuro da criança. Voltara a Portugal para o
funeral do pai de Isabel, sua mulher. Fazia tenção de que esta fosse para Alcochete,
entregue ao seu luto, ficando ele na capital para tratar com Cristina o que
houvesse a tratar. Afinal, a mulher recusara-se ir logo para a terra dos pais
e quisera ficar ao lado dele, para lhe dar força. O casal esteve na
segunda-feira no café, ao princípio da noite, falando com o gerente – que se
não abrira com ele, fingindo não perceber o que perguntava. Já era tarde
quando a mulher fora para Alcochete num carro alugado, ficando ele a andar um
bocado à beira-rio; só às 11 horas voltaria ao hotel (que não era muito afastado)
à espera da chamada de Isabel, quando chegasse ao destino – por não terem
telemóvel. Para seu espanto Isabel já telefonara – tivera uma avaria nas luzes
do carro e estava de volta, antes de ir mais longe. Como a mulher lhe tinha
falado na morada de Cristina, lembrou-se de lhe passar à porta, debaixo da
sua janela – não havia ninguém no sítio; mas não devia estar, apesar de se
ver luz através da persiana. Isabel chegou ao hotel (passava da meia-noite) e
partira logo que amanheceu, para assistir ao funeral. E agora, por
infelicidade, nunca iria falar com Cristina… Com João Fernandes, só foi
possível falar depois. Na segunda-feira, já tarde, começara a sentir-se mal.
Vivendo sozinho, depois de fechar o café ainda ficou a pôr uns documentos em
ordem, no escritório do estabelecimento; depois da meia-noite e até quando
subiu ao seu andar. Sempre pior, desceu e tirou o carro, com esforço tentando
conduzir. Não foi capaz, para ali ficou. Logo que viu um táxi, saiu do carro
e chamou-o, para o levar ao hospital. Pouco mais se lembrava, a não ser do alívio
de ter sido assistido. “Na segunda-feira apareceu
aí um tal Adriano, com a mulher, queriam falar a Cristina sobre o futuro do
miúdo. Eu sabia bem que o garoto está com os avós, mas não disse nada.
Cristina não escondeu que era mãe solteira. Vendo aquele par, ambos altos,
mas ela mais forte, não pude ter simpatia pelo homem que deixa uma frágil
moça grávida e vai com outra para a América do Sul. Deu-me para pensar que
podiam desgostar Cristina, levando-lhe o filho…”, declarou. Faltava o depoimento de
Isabel, interessada em dar força no desfecho de um assunto de que fora a principal
causadora. O agente Morgado foi ouvi-la ao hotel, aconselhando o casal – como
todas as outras testemunhas – a não se ausentarem da capital. Isabel lamentou
a morte de Cristina; em tempos tinham sido amigas – não lhe queria mal…
Tinham vindo a Portugal devido à morte do seu pai; mas Adriano não quis
assistir às cerimónias, apenas interessado na verdade da sua paternidade. Se
era isso que ele mais queria, porque não ajudá-lo? – questionava a mulher.
Que tal como Adriano, calçava mocassins escuros. E, talvez por ser um tempo
chuvoso, João Fernandes usava o mesmo tipo de calçado… Não se conhecia, ainda, o
resultado da colheita levada a efeito no quarto e no patamar da residência de
Cristina. Mas o agente Morgado, pelo seu próprio raciocínio, julgou ter
achado a solução do caso, às voltas com as questões que pomos a cada amador
policiarista, consoante o que julgue: – Qual o verdadeiro móbil
do crime? – Na sua opinião, como se
deu o homicídio? – Acha que o corpo foi
afastado do local do crime? – Que valor atribui ao
facto de a luz ter ficado acesa? – Quem praticou o crime? |
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© DANIEL FALCÃO |
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