Autor

Severina

 

Data

26 de Maio de 2002

 

Secção

Policiário [567]

 

Competição

Campeonato Nacional e Taça de Portugal – 2001/2002

Prova nº 11

 

Publicação

Público

 

 

O ENIGMA DO TROFÉU DOURADO

Severina

 

No início do Inverno, num domingo em que a capital amanheceu sob espesso nevoeiro, a polícia foi chamada a uma vivenda à Avenida do México, onde acabara de ser encontrado morto, no seu escritório, o Dr. Eugénio de Sousa – o elemento mais idoso da família. Tinha sido Gonçalo, o sobrinho neto, ao regressar do Algarve com Patrícia, sua mãe, que, percebendo a luz acesa na janela – parte do escritório do tio-avô (à direita da moradia) –, correndo ao seu encontro rodou o fecho e deu com ele morto, a cabeça num mar de sangue. Eram 13 horas.

Patrícia ainda comentava com Júlia (a governanta da casa que entrava consigo) o impulso amigável do filho, enquanto abria a porta principal (a meio da frontaria), quando Gonçalo surgiu a gritar, assustado, agarrando-se à mãe a chorar. Preocupada, Júlia, ao espreitar e vendo o estado do doutor, falou para a polícia.

Estava ainda ao telefone, no átrio da casa, quando Miguel de Sousa descia, estremunhado, desperto do alarido; seriam 13h20, chegava D. Simone Lemos de Sousa (sogra de Patrícia e cunhada do Dr. Eugénio) perguntando, com interesse, o que acontecera. Entrou com ar friorento e mãos nuas nos bolsos. Vendo o estado do neto, pegou-lhe ao colo e subiu a escada, limpando-lhe os olhos com um fino lencinho que tirou do bolso do agasalho escuro.

O Dr. Artur Monteiro, advogado e amigo do Dr. Eugénio, entrou poucos minutos depois de D. Simone subir. Posto ao corrente do tipo de morte do doutor, aconselhou calma e que ninguém tocasse em nada. Finalmente, veio Rui de Sousa, pai de Gonçalo e marido de Patrícia que, ao saber do susto do filho e qual a sua causa, subiu com a mulher ao encontro do Gonçalo, a conselho do Dr. Monteiro.

O agente Prazeres, acompanhado de um colega, apareceu na vivenda para tomar conta do caso, sendo recebido pelo Dr. Monteiro. Ao verificar que a porta do escritório para o vestíbulo estava fechada por dentro (costume antigo da vítima) e o cadáver fora descoberto nessa divisão por quem entrou pela janela-porta (que, ao contrário do habitual, só estava no trinco), o agente chamou a equipa do laboratório, para o seu trabalho, a começar pela única saída possível.

Durante o impasse, Prazeres foi até à cozinha ouvir Júlia, enquanto a governante preparava uma refeição ligeira. Esta começou por contar que o Dr. Eugénio nunca casara – a sua grande paixão eram os livros. Muito ligado ao seu único irmão, Rafael de Sousa, diplomata de carreira, após a morte deste ficara tutor dos sobrinhos, passando a administrar os bens da família. Rui de Sousa, sobrinho mais velho (30 anos), piloto da aviação civil, nascera na Alemanha, onde os pais viveram durante três anos. Regressaram a Portugal em 1969, após o nascimento do filho. Patrícia, sua mulher, ensinava línguas num colégio particular. Sobre D. Simone, viúva de Rafael, funcionária pública em fim de carreira, nada havia de especial, além de ser mãe de Rui e Miguel de Sousa. Este último, pouco tempo passava em casa por ser aluno da Academia Militar. D. Simone levantava-se sempre muito cedo – talvez tivesse falado com o cunhado. Quanto ao Dr. Monteiro, não pertencia à família, nem morava ali – era amigo do Dr. Eugénio desde os tempos do liceu.

Os Sousa eram uma família de bom nível, educada. Tudo pessoas activas e cada qual com a sua vida, coabitando sem atritos.

Logo que foi possível, o agente Prazeres abriu a porta do escritório para o vestíbulo com a própria chave, deixada na fechadura por dentro, verificando não existir outra ligação à casa, para além desta. À direita da porta, ao entrar, sentado à secretária, permanecia o corpo do Dr. Eugénio de Sousa – caído para diante, o braço direito estendido para esse lado – talvez na direcção da pequena bandeja caída no chão perto do copo sujo de leite. Apresentava a cabeça maltratada, tombada no mesmo ângulo – mas voltada para a esquerda. O braço esquerdo, encolhido, pousado a meio da secretária, parecia ter sido erguido em jeito de defesa instintiva – o que não evitou a extrema violência da agressão, desferida de frente e pelo lado esquerdo dele, danificando o relógio de pulso, parado nas 9h35.

Havia muito sangue, já a escurecer, que fora impedido de alastrar mais pela presença do telemóvel no seu estojo, do suporte de artigos de escrita e da lupa de cabo. Abandonada ao lado do braço encolhido estava uma estatueta de metal dourado, escurecida pelo tempo, com a base de alabastro manchada de sangue. Peça a que, viria a saber-se, a família chamava “troféu”.

Ouvindo directamente a cunhada da vítima, o agente Prazeres tomou nota de que esta senhora falou com o doutor, por se terem encontrado, pela manhã, quando saíam dos respectivos quartos (como os dos outros familiares, sitos no primeiro andar), deviam ser 8h30. D. Simone atrasara-se – não contara com um nevoeiro tão carregado de humidade tão fria e precisou de escolher outro agasalho, que lhe deixava só o rosto a descoberto. Mas admirou-se de ver o doutor ainda em casa, de roupão, quando era suposto que a essa hora já estivesse a tomar o pequeno-almoço numa pastelaria da Avenida de Roma, para de seguida ir assistir à missa dominical na Igreja de S. João de Brito, a que nunca faltava.

Ao descerem, o cunhado contou-lhe que não sairia de manhã por se ter resfriado. Já dentro do escritório, tendo acendido a luz e ligado o aquecimento, foi-lhe dizendo que esperava o Dr. Artur Monteiro, seu advogado. Simone saiu. Estava muito frio e o nevoeiro cerrara ainda mais. Combinara tomar o pequeno-almoço na companhia de uma amiga, na pastelaria da Praça de Londres – onde chegou pelas 9h15. Depois de ouvir a sua missa (antes de voltar para casa), visitara um centro comercial, na Avenida de Roma. Não lhe interessou comprar nada.

Não eram mais de 8h15, quando o Dr. Eugénio de Sousa contactou Artur Monteiro. Estava resfriado, disse-lhe. Não se atrevia a sair com a temperatura que estava, para falarem sem serem ouvidos. Por ter urgência em lhe falar, devido ao testamento, pedia-lhe que o visitasse depois das 10h00. Não acontecera nada de grave, apenas um segredo bem guardado, que descobrira por acaso. Artur Monteiro não se fez rogado – era visita da casa há muito. Sem pressa, eram 10h30 quando passou a cancela. Vislumbrou luz no escritório; calculando que Eugénio o aguardaria ali, bateu na vidraça várias vezes e desistiu. Podia lá ser o Eugénio perder a sua missa… Não foi à primeira, devia ter ido a outra, esquecendo-se da luz acesa – dali à igreja não tinha de andar mais de cento e cinquenta metros… Com o carro já estacionado, comprou o jornal e foi até um café beber a bica.

Rui antecipara o regresso do Algarve devido ao seu serviço e passou a noite em casa dos sogros, noutro bairro da capital. Ao ter conhecimento do cancelamento do seu voo, por causa do nevoeiro intenso, falou com Patrícia que já vinha a caminho. Foi até à vivenda, seriam nove menos vinte. Ao ver luz na janela, estranhou o tio estar no escritório a um domingo de manhã, pois tomava sempre o pequeno-almoço antes da missa e, a essa hora, já andava na rua. Deu umas pancadas na janela para saber se havia novidade, mas ele não atendeu. Forçou o puxador, rodou-o para tentar abrir, mas a porta estava fechada. Já não entrou em casa, foi direito à pastelaria onde o doutor costumava ir, talvez lá estivesse. Não estava – ficou por lá, na esperança que aparecesse, até serem horas de a mulher e o filho chegarem.

Miguel de Sousa, convidado para uma despedida de solteiro, no sábado, nem dera por chegar a casa, o que deve ter acontecido levado pelos amigos… Acordara com o choro de Gonçalo, cheio de dores de cabeça e mal disposto.

Pela autópsia calculou-se a morte entre as oito horas e o meio-dia, sem muito rigor devido ao aquecimento. No estômago, vestígios de leite mal digerido. A causa da morte era evidente, provavelmente com a base de alabastro da estatueta – onde ficaram cabelos da vítima. As impressões digitais no copo caído eram do doutor, além de as haver nos objectos ao seu alcance; mas nas outras superfícies eram da empregada de limpeza que andara a limpar o escritório no sábado. Tudo fora cuidadosamente limpo, a bandeja ou as chaves das portas deixadas nas fechaduras (por dentro). Não foi achada qualquer dedada das pessoas chamadas a este caso. Na gaveta esquerda da secretária, uma pasta de papel limpo; e, debaixo desta, umas folhas avulso. Não se viam quaisquer notas sobre o testamento, ou rascunho de alterações. Quanto ao “troféu” – figura feminina e airosa, com faixa alegórica a descer do ombro e a cruzar-se na anca oposta – era peça antiga na casa. De estilo império, em metal dourado escurecido, fora oferecida a Rafael e Simone por Johannes Kluck, alemão amigo do casal durante os três anos vividos na Alemanha ocidental, aquando da despedida e após o nascimento de Rui.

Foi um desespero. O agente Prazeres julgava saber quem fora o criminoso, mas na falta do conhecimento do verdadeiro móbil do crime não tinha mais que provas circunstanciais, com sérias lacunas.

Até que, entre os papéis avulsos, lhe chamou a atenção uma folha A4 a que não dera valor, mas que agora apartou, interessado. Tratava-se da tentativa de decifração de letras pouco visíveis inseridas na faixa do “troféu”, entre nomes em maiúsculas de RAFAEL e JOHANNES, um a cada extremo. Letras que, após copiar uma a uma, pelo seu punho, depois de breve raciocínio, conseguiu decifrar – e lhe deu a chave precisa.

O grupo de letras era o seguinte, sem outros indícios a acrescentar:

N-H-O-S-N-I-E-M-T-S-I-I-U-R.

 

– Como foi praticado o crime?

– Qual foi o móbil do crime?

– Quem o praticou?

– Explique e justifique todas as conclusões a que chegar.

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO