Autor Data 5 de Junho de 2005 Secção Policiário [725] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2004/2005 Prova nº 9 Publicação Público |
ASSÉDIO, BOMBONS E CRIME Severina Na penúltima quinta-feira,
antes do Ano Novo, António Ruas, ex-oficial da Marinha Mercante, estava morto
no seu escritório. Após uns dias de folga,
Palmira, empregada na casa, voltava ao local de trabalho, a meio da manhã,
quando encontrou a rua e o passeio todo molhado. No dia anterior, na via
pública rebentara um colector que alagara todo o
passeio do lado da vivenda. Palmira entrou pela passagem lateral do edifício,
à esquerda, usando a porta de serviço. Esta porta estava encostada. O que nunca acontecera… Já na vivenda, notou a luz
acesa na sala de estar, esbatida pela claridade do dia, através das vidraças
com os reposteiros abertos. De regresso a casa, chegava João António –
afilhado de António Ruas – pela porta principal, limpando os pés. Assim, o
afilhado e a empregada deparam com o dono da casa morto. João António, depois
de observar o padrinho, chamou a polícia, fechou o aquecimento e recomendou à
empregada que não tocasse em nada. Alguém matara o Comandante; não se podia fazer
mais nada. Comovida, Palmira recordou
a patroa morta, dez anos antes… João António, afilhado do casal Ruas,
recebido e educado em casa do comandante desde que perdera os pais, em
criança, não deixou de lembrar a madrinha. Fora sempre tratado como filho
pelos padrinhos! A velha, mas bem conservada
vivenda do comandante Ruas, construída pelos seus pais, é uma residência
confortável, inteiramente alcatifada. Situa-se num bairro antigo da capital,
numa rua estreita e sinuosa que desce desde o alto da colina. O agente
Prazeres e o seu parceiro, enviados para investigar o caso, apareceram à
porta da vivenda a meio da tarde. Entraram com a máxima cautela, por notarem
no piso do átrio uma leve camada de lama ressequida, à entrada da porta.
Deixada por calçado húmido. Da única porta da divisão,
onde estava o corpo, que a ligava ao interior da residência – divisão misto
de escritório e sala de estar –, os agentes viram a posição do corpo,
abarcaram o ambiente; tendo em frente as duas janelas francesas, bem fechadas,
viradas ao pequeno jardim nas traseiras, protegido por um alto muro. A ampla
sala continha um contador indo-português e outros pequenos móveis também de
estilo. Entre as janelas, banhada pela claridade, uma sólida escrivaninha e a
cadeira com rodízios. Havia o bar, com garrafas e copos sobre o balcão, e
pires de aperitivos próprios sobre mesinhas. Um leve enfeite natalício, perto
do jogo de maples, lembrava o Natal. O cadáver
estava no sofá. Quando a equipa de recolha
de dados e os fotógrafos saíram, Prazeres inteirou-se do que fora achado.
Pôde ver de perto o orifício por onde entrara a bala; e, por onde saíra, o
sangue que ensopara na alcatifa. O corpo do comandante – deitado sobre o
espaldar do sofá, de costas para a janela, ficara com uma fotografia na mão
direita; o braço esquerdo, descontraído, caía à vontade por sobre este lado
do corpo, com a mão abandonada sobre a perna. Viu a marca de giz, no chão,
onde estivera o revólver (que parecia lhe ter caído da mão), e perto a
indicação onde se achara uma cápsula de bala de calibre 22 mm. Sobre a
escrivaninha, os apetrechos costumados a um uso continuado, num local de
escrita, com um telefone à direita. A cadeira giratória fora afastada e a
segunda gaveta estava mal fechada. À volta, o desarrumo próprio de uma
reunião de homens. À primeira vista, o médico
calculou a hora da morte entre as 15h00 e as 21h00 do dia anterior. Sem muita
certeza devido ao aquecimento da divisão. O resto, só depois da autópsia. O
corpo havia muito que entrara em rigor mortis… Prazeres quis ouvir as
primeiras declarações da empregada e pormenores da morte de D. Julieta Ruas.
Depois ouviria João António. Palmira fora numa viagem,
ao sul de Espanha, no fim-de-semana anterior. E ficara até quinta-feira de
manhã, em casa de familiares. Assustara-se com a porta encostada, por nunca
ter acontecido e se estar no período entre “desde o penúltimo fim-de-semana do
ano até à véspera do Natal”, em que a vivenda ficava uma semana fechada.
Nestes dias, ainda do tempo de D. Julieta, o senhor comandante ia para um
hotel da Linha de Cascais, onde festejava o seu aniversário natalício – no
dia mais pequeno do ano –, na companhia de hóspedes e amigos. Às vezes, o
patrão vinha a Lisboa, até dormia uma noite. Mas as portas ficavam fechadas… Quando da morte da senhora,
por esta altura, o patrão andava em viagem: voltaria pouco depois. Já
instalada no hotel, a senhora foi a uma festa de despedida de alguém que ia
para fora do país. Festa onde perdera uma pulseira dada pelo marido em data
especial. Inesperadamente, chegou à vivenda, já tarde, quando Palmira
ultimava o serviço para entrar na sua folga habitual, de fim do ano. Não vinha
bem. Dizia-se levemente tonta, queixou-se de mau gosto na boca deixado por
uma bebida. Ela nunca bebia… Trazia uma caixa de bombons com licor, oferecida
para tirar o mau gosto, mas não teve efeito. Aceitou uma chávena de chá, deu
dois bombons à empregada e foi para o quarto. “Depois de dormir, fico boa!” –
garantiu. Poucos bombons ficaram na caixa, iguais
aos que a empregada comeu, que não tinham nada de mal. Preocupada, Palmira,
deixou-a a dormir e voltou na manhã seguinte. Estava morta; morrera durante a
noite. Deu com ela sem vida, como deu agora com o patrão… João António, aluno da
Escola Náutica, em férias escolares, foi até à Serra da Estrela. Terça-feira,
ainda estava na Torre; depois do almoço falou com o padrinho. Este, animado,
disse-lhe que comprara outra peça antiga. Ia recebê-la a Lisboa, antes de
acabar a estada no hotel. Convidara o Moreira e o Amaro, para irem; talvez
fosse mais alguém… Quis saber da fotografia da dedicatória galante: “à doce
‘Julieta’ do seu ‘Romeu’“; que por acaso foi achada junto de uma foto da
madrinha, num quadro com o retrato dela que caiu da parede. A João António não agradou que o padrinho voltasse a falar
nesse caso infeliz, que tanto o desgostara. O retrato estava junto ao Colt de 32 mm, numa das gavetas da escrivaninha, ao lado
das chaves do contador onde guardava os tesouros trazidos das suas viagens –
que gostava de mostrar; gaveta em que só mexia de longe em
longe. Findas as declarações, João António quis mostrar o retrato ao
agente. Mas o retrato já não estava onde estivera durante anos. E o Colt desaparecera! Os visitantes do comandante
prestaram-se a ser inquiridos: embora nem todos tivessem estado juntos até ao
fim… Falou Júlio Moreira, que conhecera D. Julieta, e vinha a casa do Ruas
sempre que tinha convite. Depois Fernando Amaro, que fizera grandes viagens
com António Ruas, mas não lhe conhecera a esposa. Tinha sido uma curta
reunião, mas muito agradável. Outro dos visitantes foi
Graciano Pinheiro, antiquário. Viajava muito. A sua convivência com Ruas começara
por um negócio bem sucedido. Só recentemente passara
a frequentar o grupo. Também estivera presente
Alcides Bernardo, fazendeiro português radicado no Brasil. Aproveitara a sua
anual visita de negócios, a Espanha, e esteve durante o Verão em Portugal –
devido ao ambiente de euforia que se vivia no país. Agora, tendo os seus
assuntos tratados, de regresso ao Brasil estava neste hotel porque o
conhecera antes de sair de Portugal. Aceitara o convite do comandante por
curiosidade. Júlio Moreira disse da simplicidade
da reunião. Logo no início, após se juntarem na sala, Graciano viera apenas
para cumprir a entrega de um objecto antigo. Saiu
logo, devido a um compromisso. Ruas, cercado dos restantes três convidados,
abriu o pacote e mostrou um pequeno porta-moedas, de 8,8 por 5,5 centímetros,
tendo dois compartimentos dentro. Peça bem feminina, revestida no verso e
reverso por marfim – numa face tinha esculpido um raminho de flores, em
relevo, dentro duma graciosa moldura oval. Ao recolher a peça, enquanto conversava,
retirou, da parte de trás da gaveta da escrivaninha, a chave do contador, que
abriu de seguida para mostrar a valiosa jóia que
ele conseguira recuperar. A mesma que a esposa tinha perdido antes de
falecer. Queria muito achá-la, e comprou-a logo que a viu à venda no catálogo
de um comerciante. Foi só questão de preço… Mostrou o retrato de D. Julieta,
a quem não a conhecia, e contou os seus últimos momentos. Não ia esquecer que
o seu fim não fora por acidente ou suicídio!... Nessa altura, Alcides Bernardo, sentira-se mal. “Foi o drink!“, disse.
Ainda foi à casa de banho, mas foi o segundo convidado a sair. Os outros dois
ainda ficaram, acompanhando o amigo, até lhes parecer que este gostaria de
ficar com as recordações. Saíram juntos quando a tarde caía, cada um para o
seu transporte. Graciano Pinheiro e Alcides Bernardo, contactados pelo agente
Prazeres, confirmaram as declarações de Júlio Moreira: não estavam presentes! A autópsia confirmou a
morte imediata do Comandante – que fazia o resto da digestão da última
refeição sólida e tomara uma bebida alcoólica – causada por um tiro de
pistola, disparada quase à queima-roupa, que atravessou o crânio. O revólver
caído no chão estava oleado e carregado, tinha as impressões digitais de
António Ruas, mas não foi disparado. Na mão do cadáver não se acharam
resíduos de pólvora. A cápsula encontrada perto do revólver era do mesmo
calibre da bala assassina. Não ficaram dedadas na cápsula nem se encontrou
essa arma. Os relevos possíveis
fotografados no piso do átrio, revelaram entradas e
saídas, estas sobrepondo a outras, deixadas devido ao passeio alagado.
Concluiu-se que a última pessoa a entrar na moradia foi João António:
reconhecido pelo quase esbatido desenho, da sola de borracha do calçado, que
ainda usava quinta-feira à tarde. No sentido da saída, havia outra pegada,
difícil de moldar, cujo rasto estava logo abaixo da pegada de João António –
com o pé maior que este. Molde, no entanto, que assentou perfeitamente na
marca de uma pegada – conseguida, já na alcatifa, no interior da porta de
serviço – em que a orla de um sapato de sola de borracha, lisa e humedecida,
ficou delineada no sentido de quem entra. Leve vestígio que, por sorte, ficou
fora das passadas de Palmira…
As impressões digitais
recolhidas no escritório, são do comandante e dos
seus convidados, como é natural; resumindo-se, por enquanto, a isso. Na tarde fria, da véspera,
sem outro interesse na rua, foi possível saber que uma senhora doente,
moradora no prédio em frente à vivenda, bem agasalhada, na tarde desse dia se
pôs à janela – aborrecida por estar em casa. Viu, por acaso, um homem sair
apressadamente da porta da vivenda e afastar-se num carro. Uma meia hora
depois saiu outro, que se afastou noutra direcção.
Mais tarde, dois homens sensivelmente da mesma altura, de gabardina e chapéu
de pano, saíram da vivenda do vizinho da frente e
afastaram-se separadamente. A senhora ainda deu por
outro personagem em frente da vivenda. Viu que usava luvas quando accionou a campainha da porta; ouviu-o quase gritar, pelo
intercomunicador, que tinha esquecido os óculos; e mais não viu… Porque foi,
justamente, quando os raios de sol, no poente, sem nuvens de premeio, banharam
em cheio as vidraças da vivenda, reflectindo a
claridade na casa em frente, incomodando a visão da senhora. Encadeada, a
vizinha saiu da janela e fechou-a. Não sabe se mais alguém entrou. Ou saiu. Findo o inquérito, de posse
de todas as conclusões possíveis, o agente Prazeres tinha a certeza de saber
como as coisas tinham acontecido. A dificuldade estava em redigir um
circunstanciado relatório. Será que uns bons
samaritanos, entre os policiaristas amadores, lhe
poderão dar uma ajuda? |
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© DANIEL FALCÃO |
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