Autor

Verbatim

 

Data

7 de Julho de 2013

 

Secção

Policiário [1144]

 

Competição

Campeonato Nacional e Taça de Portugal – 2013

Prova nº 6 (Parte I)

 

Publicação

Público

 

 

OUVINDO O FLECHA DE PRATA PASSAR…

Verbatim

 

Este é um caso antigo que, por razões familiares, tive de analisar. Sigo as notas do meu tio-avô, José Gaio, mas modifico alguns nomes para evitar melindres.

Ele era ao tempo regedor da freguesia de Outeiro do Bailador, situada perto da linha de caminho-de-ferro do Norte, entre Pombal e Entroncamento. Ali, o traçado da via dupla, segundo a direção Norte-Sul, permitia ao comboio rápido Flecha de Prata atingir uma muito gabada velocidade de 100 km/h.

Alguns minutos depois do sol-posto de um desanuviado dia de Junho de 1945, foi encontrado morto, na sua loja de comércio, o Sr. António Rijo. A mulher fora à procura dele, seguindo pelo quintal e entrando pelas arrecadações. Estranhando as luzes apagadas e já de coração apertado, acendeu um candeeiro de petróleo cuja localização conhecia. Deu com o marido caído atrás do balcão, inanimado e com sangue junto da orelha direita. Saiu a gritar, dizendo que lhe tinham morto o marido com uma pancada na cabeça. Uma criada, que a seguira, já nem chegou a entrar na zona do balcão. O meu tio-avô, avisado de imediato, verificou a morte, concluiu que ninguém mais se aproximara do cadáver até à sua chegada e impediu o acesso à loja de quem não fosse agente da autoridade. Mas não pôde obstar à rápida difusão da notícia da morte do Rijo com uma pancada na cabeça.

A vítima apresentava um ferimento na têmpora direita, característico de projétil disparado entre um e meio metro de distância. Ao lado do corpo estava um revólver, propriedade do lojista, com sinais de uso recente, no qual faltava uma bala e onde não se detetaram impressões digitais diferentes das do dono. António Rijo tinha calçadas umas luvas de couro, fortes, que costumava usar para manusear materiais grosseiros ou cortantes. As portadas das duas janelas altas de iluminação estavam abertas e a porta da rua encontrava-se destrancada. Não havia sinais de roubo.

A venda situava-se a leste da linha, em frente do apeadeiro, muito próxima da passagem de nível onde a estrada de macadame atravessava a via-férrea.

Não se conheciam inimigos de António Rijo. Alguns apodavam-no de candongueiro, talvez por despeito, porque ele não aceitava manobras com as senhas de racionamento. Muito invejada era a sua viçosa fazenda à beira da Ribeira da Laje.

Naquela noite, foi possível detetar as quatro últimas pessoas que terão contactado com a vítima, as quais foram formalmente ouvidas no dia seguinte.

Aníbal Ruivo, que morava a dois minutos da loja, por um único e mau caminho, disse: “Estava no quintal e tinha começado a reparar a rede do galinheiro, quando ouvi o apito agudo do Flecha de Prata para Lisboa. Era esse, porque o outro, para o Porto, tinha passado um bocado antes. Foi então que me lembrei que tinha de ir buscar sulfato. Saí a correr. Sabia que o Rijo costumava ficar na loja, embora com a porta fechada. E, se não estivesse lá, estaria em casa. Comprei o sulfato e não dei por nada de anormal. Não sei quem o poderia querer matar.”

Zeferino Carreira prestou declarações em sua casa, no Casal da Ferradura, um quilómetro a norte da loja. No momento ouviu-se o apito arrastado do Flecha da manhã para Lisboa. (Conquanto os comboios rápidos nem sempre fossem pontuais, funcionavam no Outeiro do Bailador como relógio, dado apitarem sempre que se aproximavam da passagem de nível. No dia anterior, o segundo e último Flecha para Lisboa passara às 21h15, quase à tabela). Carreira contou o seguinte: “Fui à venda do Rijo já depois da porta fechada, porque me demorei na Espinheira a tratar de assuntos relacionados com uma possível eletrificação da freguesia. Levei a carroça até à loja para poder trazer arame farpado e mais algumas coisas para a patroa. Cheguei a casa pouco depois das oito da tarde.”

Brás Laranjeira, advogado e proprietário rural, declarou: “Não fixei a hora a que estive na venda, mas lembro-me que ainda era de dia. Procurei o António Rijo para falar da divisão da água da Ribeira da Laje. Nada de especial. Ele, no fim da conversa, até aproveitou para arrumar um resto de arame farpado. Espero que não julguem que seja minha a arma com que o Rijo se suicidou. Tenho um revólver parecido, mas muito bem guardado e sem uso há uns bons meses.”

Maria Perpétua do Souto, sexagenária, disse: “Fui de propósito ter com o Tóino Rijo para lhe pagar onze mil reis. Deviam ser umas oito horas. Ele tinha a porta entreaberta. Mas eu era lá capaz de lhe dar uma sacholada na cabeça! Credo!”

Haverá incongruências nas declarações, ou entre elas, que nos levem a suspeitar de alguém? O que terá acontecido? Explique tudo e diga de sua justiça, caro leitor.

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO