Autor Data 6 de Agosto de 2017 Secção Policiário [1357] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2017 Prova nº 7 (Parte I) Publicação Público |
MORTE NAS TRASEIRAS Verbatim Marisa
Figueira, sentada sob o chapéu-de-sol, perguntou as horas ao filho mais
velho. Vinte para o meio-dia, respondeu o jovem. O teu pai, retorquiu ela, já
cá devia estar há mais de uma hora e sabe que daqui a nada temos de ir ao
homem dos sanitários, por isso, pega na mota e vai ver o que se passa. O
rapaz obedeceu, algo contrariado, e partiu com um amigo no sentido da zona
onde residiam, a vinte quilómetros da praia. Os
dois moços encontraram Eusébio Figueira estendido de costas no quintal, com o
corpo quase paralelo às traseiras da vivenda, com a cabeça para o lado
direito e as pernas para o lado esquerdo de quem saía da casa, com uma órbita
esfacelada, encontrando-se o cão de guarda, também aparentemente morto, junto
de uma poça de sangue, aos pés do dono. Ainda mal recompostos desta terrível
surpresa, um deles foi chamar a GNR ao posto mais próximo e outro ficou em
casa ao telefone, a pedir socorro médico, pois Eusébio Figueira podia ainda
estar vivo. Moravam
num bairro de vivendas arrumado de forma regular, que terá começado por ser
clandestino, com amplos terrenos nas traseiras, onde a generalidade dos
habitantes, gente com algum dinheiro, tinha troços ajardinados, pequenas
hortas, árvores de fruto ou capoeiras. O quintal dos Figueira estava rodeado
por cinco outros terrenos de área semelhante. No conjunto tinha-se um
rectângulo de três por dois. Só a vedação do quintal que estava em frente das
traseiras da vivenda dos Figueiras, o dos Ferreira, apresentava, nas suas
três contiguidades, uma vedação difícil de ultrapassar e impeditiva de
olhares bisbilhoteiros. Eusébio
Figueira levou um tiro que o matou. O projéctil homicida entrou na órbita
esquerda e saiu um pouco abaixo do occipital da vítima, tendo caído no
canteiro junto ao pequeno muro de separação entre os terrenos dos Figueira e
dos Lopes, depois de bater nesse muro. Outra bala perfurara e matara o cão,
alojando-se no meio de duas pedras de revestimento do chão, logo atrás do
corpo do animal, entre este e o muro onde embatera a outra bala.
Verificou-se, depois, que os dois projécteis provinham da mesma arma. O
quintal dos Silva, situado à direita de quem saía pelas traseiras da vivenda
dos Figueira, tinha uma parreira que, apanhando fumo de um grelhador
instalado pelos Figueira, fora motivo de zanga entre aquelas duas famílias
vizinhas. Sabia-se, no entanto, e a polícia confirmou-o, que a verdadeira
razão dos azedumes residira em desentendimentos havidos num negócio de
importação e exportação. Contrabando, segundo alguns. Mas já tinham feito as
pazes há uns quatro anos, pouco depois do 25 de Abril de 1974. Por outro
lado, com os Lopes a tensão era agora elevada. Na origem disso estavam
dívidas de Alberto Lopes a Eusébio Figueira, reclamadas por este mas, ao que
parecia, sem provas legais. A chefe do clã Silva, Josefa da Silva, de cerca
de 42 anos mas ainda muito vistosa, não se cansava de dizer que o Eusébio
tinha toda a razão. Em
frente das traseiras da vivenda dos Lopes situava-se o quintal dos Simões e
em frente das traseiras da vivenda dos Silva estava o terreno dos Costa.
Estes dois quintais, dos Simões e dos Costa, tocavam apenas em vértices do
quintal dos Figueira, cada um no seu. Todavia, qualquer deles tinha vista,
embora muito atrapalhada pelas plantas, para o terreno dos Figueira e
vice-versa. As relações dos Figueira com os Simões eram amistosas, sendo
praticamente nulas com os Ferreira e os Costa. Os
Simões e os Ferreira provaram não ter estado nas respectivas vivendas naquela
manhã quente e clara de Agosto. Silvino da Costa disse ter ficado toda a
manhã sozinho em casa a redigir um relatório complicado, enquanto a família
fora para a praia. Informou também só ter dado por alguma coisa quando, ao
chegar ao seu quintal para arejar, cerca da uma e meia, avistou mais pessoas
do que o costume no terreno dos Figueira. Josefa da Silva provou ter estado
na praia com os filhos, mas sem o marido, António da Silva, que ficou em
casa. Este jurou ter falado com o Eusébio pelas dez horas, enquanto
verificava os cachos da parreira, tendo apenas voltado a vê-lo, perto do
meio-dia e meia, então estendido no quintal, como quem tivesse levado um
balázio pela frente. Acrescentou que na altura em que tocava à porta de
entrada da casa do Eusébio, para alertar quem lá estivesse para a necessidade
de o socorrer, viu chegar dois militares da GNR e percebeu que, entretanto,
alguém já concluíra que o vizinho tinha sido morto a tiro. Alberto Lopes
afirmou e provou ter ido à praia com a família e ter regressado a casa
sozinho, ainda não eram duas da tarde, depois de haver comido no “Travessas”,
e que, logo na rua, lhe disseram que alguma coisa de grave acontecera ao
Eusébio. Afirmou que estava muito chateado com ele mas que desejava a sua
recuperação. A
polícia descobriu armas nas vivendas dos Lopes, dos Figueira, dos Silva e dos
Costa, só uma devidamente legalizada, em nome de António da Silva, mas
nenhuma idêntica àquela de onde terão saído os projécteis que atingiram a
vítima e o seu cão. No quintal dos Lopes apareceu um silenciador atrás de uns
tufos de Alecrim, com sinais de uso recente mas sem impressões digitais.
Havia sangue do bicho misturado com sangue do dono, conforme informação
posterior do laboratório da polícia, e algum sangue de Eusébio Figueira em
escassas pingas caídas entre a porta para o quintal e o sítio onde se
encontrava o seu corpo, bem como na sua face esquerda, no ferimento de saída
da bala e no chão sob a cabeça, aí também em pequena quantidade. Outros materiais
orgânicos recolhidos estavam ainda a ser examinados. Segundo o médico
legista, a morte de Eusébio Figueira terá ocorrido entre as 9:30 e as 11:00
daquela manhã. O
Inspector encarregado do caso afirmou que já era possível saber, quase de
certeza, o que teria acontecido com Eusébio Figueira. O que lhe parece, caro
leitor? Diga de sua justiça. |
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© DANIEL FALCÃO |
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