Autor

Xavier Benigno

 

Data

11 de Outubro de 1979

 

Secção

Mistério... Policiário [238]

 

Competição

Torneio “Detective Misterioso"

Problema nº 13

 

Publicação

Mundo de Aventuras [314]

 

 

MORRE!... QUERO VIVER!

Xavier Benigno

 

Extracto do «Diário» do jornalista e poeta Acácio da Silva Lemos, falecido a 29 de Maio de 1976:

 

…1973…

4 de Agosto, 22 horas e 40 minutos.

Tal como Edgar Allan Poe sentia a viva necessidade de transmitir ao papel as suas angústias, transformadas em histórias de mistério e imaginação, assim me encontro, hoje, a desflorar esta brancura, «única virgindade que resta a quem escreve».

Faz precisamente três anos que ando silenciando um pesadelo, motivo de muitas noites de insónia.

«Nada aconteceu» – isto registei nesse dia… Julguei ter enterrado nestas palavras o somatório das emoções então experimentadas. Iludi-me.

A recente notícia da morte do meu amigo, relacionado com certo objecto do meu conhecimento, tornou-o vítima aparente de um desastre, o que veio acicatar terror dificilmente exteriorizado, ressurgido com impetuosidade ímpar, e a fazer-me crer, ser tudo afinal cenário bem montado de falso suicídio. Se quisesse pôr termo à vida, teria sido muito mais fácil servir-se da sua «Magnum», que andava sempre com ele devidamente legalizada.

Tenho gravado no meu espírito a sua figura esguia e seca, metida num elegante «blaiser», calça aprumada, quando apareceu à saída do aeroporto do Portela, transportando a inseparável pasta, tipo James Bond, e uma mala de viagem, tamanho médio. O sorriso quase permanente que se esboçava nos lábios finos fazia-o irresistivelmente simpático.

A esposa, D. Zulmira, quisera também vir, apesar de paralítica, acompanhada por Lúcia, vinte anos escaldantes de energia, que se diluíam em disfarçados ou furtivos arroubos pelo sobrinho daquela, um «estoira-vergas», que dava conta da caixa de velocidades do «BMW-2002». José António abeirou-se do tio, batendo-lhe amigavelmente nas costas com a palma da mão nervosa.

Viriato Quelhas depôs um reconhecido beijo na fronte da esposa, e logo após, cumprimentou-me efusivamente. Com o polegar e o médio deu uma ligeira sacudidela ao queixo de Lúcia.

Acomodados, partimos em direcção a Leiria. A conversa, rotineira.

Eram cinco horas de uma tarde abafante.

O meu amigo Viriato Quelhas, professor-médico, acabara do regressar de Cambridge, em cuja Universidade proferira uma série de palestras. Visitara o Laboratório da Polícia Científica em Londres, ou não fora ele um apaixonado por Medicina Legal. A minha presença junto do marido de D. Zulmira justificava-se não só pelo convite que esta tivera a gentileza de me proporcionar, como também pela ideia de aproveitar os meus dias de férias para entrevistar a ilustre individualidade sobre as suas últimas investigações no campo da Química Médica.

À passagem por Santarém, e como consequência natural de um diálogo, com base em apontamentos gastronómicos, lembrou-se a aquisição de provisões. O jantar dessa noite iria ser confeccionado por Lúcia, já que a empregada pedira uns dias para se deslocar à terra.

O limite da zona urbana fora ultrapassado. Apeámo-nos na Rua Tenente Valadim. Os amarelos ressaltavam na alvura da porta de um rés-do-chão antigo. Os três degraus de acesso e o patamar foram substituídos por uma rampa suave, de modo a permitir o trânsito da cadeira de rodas de D. Zulmira.

Viriato Quelhas desejava tomar um duche. Lúcia, deixando a rica e velha senhora sob os meus cuidados, meteu-se na cozinha. José António recolheu-se ao quarto.

A paralisia das pernas era compensada por uma extrema mobilidade das células cinzentas. E assim fiquei, mais uma vez, pregado em frente do tabuleiro de xadrez, aliciado pela perspicaz senhora que não tirava os olhos das minhas pensativas rugas. Havia-me proposto a resolução de um problema que ela fixara ser da autoria de Saunders.

– Claro como água! – repetira compassadamente. A sua voz parecia ter a preocupação de se fazer ouvir como algo que eu teria a obrigação de eternizar.

Os lances sucediam-se com uma precisão tal, que era um desafio à momentânea incapacidade de contra-ataque.

Recuara o meu Rei para h8, postando-se ao lado da Rainha, esta em f8. Eram as peças a que estava reduzido.

D. Zulmira articulava pausadamente, revendo posições:

Com o Rei em f3, um xequezinho com o Bispo em e5, eis que está próximo o fim, lá que a Rainha se encontra em a7. É assim, meu caro amigo, não é?

Admirei-a, pois conseguia ter sempre presente as designações das ordenadas do diagrama.

Lúcia chegou mesmo na hora H. O apetite despertara. Abandonámos a sala-de-estar.

A mesa transpirava sobriedade. À cabeceira, D. Zulmira tinha-me à sua direita, como hóspede de honra. Lúcia, como de costume sentou-se à esquerda. O sobrinho à direita do tio. Este ocupava o outro extremo da mesa, ligeiramente oval.

Um conjunto de carnes frias dava o pontapé de saída de uma refeição que iria ficar retida na minha memória de um modo extraordinário.

Todos os copos, de cristal. D. Zulmira fazia excepção. Não bebia esse Rosé, deliciosa Reserva de 66, que sempre apreciei. Dizia ela que a própria água merece ser bebida condignamente… A propósito, contei-lhe alguns episódios da minha vida militar, tendo sido aí que viera a dar o verdadeiro valor à água, quando a última gota escorria do cantil.

Seguiu-se um pudim de peixe. Elogiou-se a mestria de Lúcia.

José António mantinha-se calado a maior parte do tempo. A secretária de D. Zulmira, ouvinte atenta. Falou-se um tanto ainda de vários aspectos da vida londrina. Eu lá ia metendo a colherada, a amenizar o quase monólogo.

A velha e rica senhora arrumou o talher ao jeito britânico, e notei que o gesto com que pegava no copo era solene. Visualizei, por instantes, a cena descrita por Platão no «Fédon»: sim, nada mais nada menos que Sócrates na hora derradeira…

Vou suspender… Sinto-me exausto.

 

5 de Agosto, 5 horas e 45 minutos.

Enquanto não amanhece

continua a haver

guardas-nocturnos,

porque o Amor

não tem berço

nem sepultura.

 

6 de Agosto, 17 horas e 10 minutos.

(O que se passou nos vinte minutos seguintes a D. Zulmira ter pousado o copo, é de extrema necessidade que o narre, para ver, se, volvido esse tempo, posso gozar de duas horas de paz. Não quero mais.)

Todos os olhos confluíam no vácuo. Esbocei lacónica apreciação ao queijo que retalhara no prato. Apenas um débil eco na boca de Viriato. Um silêncio incomodativo, perturbado por fortuito tinir de faca e garfo nos pires.

– O tempo em continuar assim… Um prejuízo para a agricultura… As vindimas à porta, e chover, nada… – lamentei.

– Bom para as suas férias, não é verdade? – perguntou o médico. – Sempre as vai passar na Suíça, como tencionava?

– Não. Resolvi ficar por cá. Temos muitos atractivos que nos podem cativar. Conhecer primeiro o que é nosso! – acabei por sentenciar.

Depois de uma breve pausa:

– Sabe, não sou dessa opinião. Direi que sou adepto de um turismo em paralelo: um pouco do que é nosso, um pouco do que não é… Pois?... Já pensou que, a seguir a sua ideia, e orientado por um verdadeiro interesse, não sairia do país?!

– Sim, há uma boa dose de verdade nisso – condescendi.

– Não duvide – reforçou.

Lúcia, semierguendo-se da cadeira perguntou:

– Todos tomam café?

D. Zulmira oscilou o braço, negativamente. Uma convulsão impediu-a de dizer algo. Depois… o rosto da morte.

Tive de convencer o meu amigo a que D. Zulmira fosse autopsiada. Esperei pelo resultado. Negativo. A causa da morte pretensamente natural.

… … … … …

Viriato Quelhas: uma perna partida, balanço de um acidente de viação. Causa da morte não proveniente da fractura. Antes da autópsia, aventara-se a hipótese de uma embolia. Foi recusada pela evidência.

Que é que não batia certo em tudo isto?... Descobri-o, após largos dias e insuportáveis noites, ainda Viriato pertencia ao número dos vivos. Não tive coragem, porém, de o comunicar. Manietava-me esta angústia.

E Lúcia? Um longo caminho terá ela de percorrer? Amante de Viriato Quelhas, agora de José António.

Viriato Quelhas matou por amor; Lúcia matou por bem-estar, fortuna ou dinheiro, ou como lhe queiram chamar. Longo caminho…

 

Interrompemos, aqui, caro leitor, o seguimento do «Diário» do malogrado Acácio Lemos para lhe perguntar:

– Qual a «arma» utilizada na perpetração dos crimes? Explane o melhor que souber.

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO