Autor

Chery

 

Data

7 de Outubro de 2001

 

Secção

Policiário [534]

 

Publicação

Público

 

 

ESTRANHA VISÃO

Chery

 

A exiguidade da bolsa e posses familiares levam-me a viver em conformidade. Um modesto quarto, no sexto andar dum medianamente velho edifício lisboeta, acoita-me nas longas horas de estudo e repouso. Dando para as traseiras, avançada pelos quintais – que teimosamente ainda resistem –, com os seus sete andares, ombreia na esquina com outro de idêntico porte, imponências de um quarteirão todo ele de menos de três andares.

O quinto andar do prédio em frente vagara há mais de um mês. Embora sem pretender alugá-lo, por motivos óbvios, indaguei o preço junto do Carlos, meu amigo e colega, que vivia no rés-do-chão, em casa de uma velha tia. Vinte e cinco contos.

Nessa tarde, ao chegar ao quarto, notei um desusado movimento, para lá da persiana levantada. “Ainda há quem tenha dinheiro”, pensei.

No dia seguinte, cumprindo o ritual, coloquei a escrivaninha junto à janela, aproveitando o maravilhoso sol da Primavera.

Na varanda recém-ocupada, surge uma mulher de vinte e poucos anos. Abriu uma daquelas camas de praia, que estendeu. Olhou a minha janela com um leve ar de indiferença e… imaginem o que senti quando, uma após outra, retirou ambas as peças do biquini. Completamente alvoraçado, não sei ao certo quanto tempo as minhas “células cinzentas” se mantiveram inactivas.

Não sou moralista, tão-pouco desequilibrado, mas, como dizia o meu velho avô, “um homem não é de ferro”!

A beleza que aos meus olhos era dada a ver, qual Vénus de Milo, transtornou-me. Se romântico fosse, ter-me-ia apaixonado acto contínuo. Sou, isso sim, um incondicional amante do belo. Foi nessa qualidade que toda a tarde admirei tão harmoniosa e genial criação da natureza.

No dia seguinte, não resisti a um rápido almoço – como sempre nada convidativo, nas cantinas dos serviços sociais – e a um esquivar de conversa, propícios a um rápido regresso.

A cena repetiu-se durante mais de uma semana, conseguindo agora estudar, repousando de quando em vez os olhos e o espírito naquela varanda do Éden.

Passado o choque inicial, começou a intrigar-me o comportamento daquela estranha personagem. O não ler, não ouvir música, nada fazer. Inactividade, pura e simples, por duas ou três horas diárias! Mas, se não me dizia respeito, para quê quebrar o encanto?

Absorvido por esta cadeia de pensamentos, senti uma percepção anormal, coisa que apenas o subconsciente capta. Impelido a olhar… Meu Deus… Para lá do pequeno muro, ligeiramente sobre o seio direito, como que acusando a minha indiscrição, algo me apontava. Pequeno, fino e tosco, semelhante a artesanal dardo de brincar. Dele se desprendia um fino fio vermelho que, serpenteando na pele morena, se alagava no colchão.

Instintivamente corri ao telefone. Carlos franquearia o trânsito de quaisquer pessoas que tentassem entrar ou sair.

Relatei tanto quanto possível ao pormenor as ocorrências, quer do dia, quer do passado recente.

Sem ser depreciativo, eram polícias espertos. Logo no local, após uma aparentemente amistosa conversa, deram uma voz de prisão. Conversa que, além dos três polícias, tivera mais dez interlocutores.

Além de mim, naturalmente, o meu vizinho de cima, um cinquentão reformado há pouco e regressado do Brasil e a “bisbilhoteira do 5º”, como era conhecida, por recuperar agora os anos que, com o marido já falecido, passara isolada no interior da Venezuela. Pelo outro edifício, Carlos e um sujeito que impedira de sair, nestes últimos dias frequentador assíduo da vítima, segundo a porteira, também presem-te. Duas empregadas do cabeleireiro e uma cliente ocasional, que com o “retornado” do 4º andar, completavam tão diverso naipe priori.

A priori” e segundo o médico, a causa da morte fora envenenamento, por produto indeterminado, raro e provavelmente de origem animal.

Mais tarde saber-se-ia qual. Confirmar-se-ia que a pessoa detida fora quem efectivamente matara e inclusivamente desvendar-se-iam os motivos de tão misterioso crime. A polícia, no entanto, naquele momento dispensou tudo isso.

A si, inevitavelmente se pergunta: quem recebeu voz de prisão? É claro que terá de nos descrever como chegou a essa conclusão…

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO