Autor Data 19 de Junho de 2005 Secção Policiário [727] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2004/2005 Prova nº 10 Publicação Público |
O MORTO ERA UM DOS PONTEIROS DO
RELÓGIO Zé da Vila Tudo começou, efectivamente, mal. Aliás, logo no início do ano, não era
difícil augurar o pior. Há muitos dias que a chuva, batida pelo vento forte,
caía em bátegas constantes. Nuvens negras, céu de chumbo, opunham-se ao sol,
que, a espaços, procurava anunciar tréguas de esperança. Vivia-se em
ansiedade. A angústia residia nos corações e transparecia nos rostos. A
rápida subida das águas, que transbordavam do Tejo! Águas que se iam
espalhando pelos campos, dos quais se retiravam, apressadamente, os gados, as
alfaias. Reforçavam-se portas e janelas dos silos… Rebentou o Dique dos Vinte!
A notícia transmite-se, em gritos de desespero. Em escassas horas, a lezíria
transformara-se num aparente mar revolto, de onde emergiam as copas das
árvores e tectos de cabanas mais altas, raras
“ilhotas”, onde algumas cabeças de gado ovino, de mistura com touros e
cavalos, se refugiavam, em união de sobrevivência. Pequenos barcos,
impulsionados pela força dos remos e coragem dos homens, dispersos no trépido
da inundação, procuravam resgatar homens e mulheres, freneticamente abraçados
aos troncos cimeiros das árvores, água a salpicar-lhes os pés. Ouviam-se
gritos de aflição e terror! Nas águas turvas, matizadas de lágrimas
cristalinas, animais mortos eram arrastados, de mistura com troncos velhos… A vila, o coração da
lezíria, convertera-se numa ilha, sem alternativa. No abismo dos que tudo
perderam, até o ânimo, a solidariedade era a mão estendida. O município
distribuía pão e recrutava voluntários para erguer valados; partilhavam-se
agasalhos. Seis dias. O vento e a
chuva amainaram, sem que as águas mostrassem sinais de descer. O céu aberto
proporcionara a Ricardo Bento deixar os hóspedes, retidos pela chuva, na
vivenda e ir ao Quintal da Cerca. Visita de enguiço! Serafim, um forasteiro
que ali chegara, oito anos antes, a pedir trabalho, com uma filha de 12, 13
anos pela mão e fora admitido como hortelão, acusara-o de “andar amantizado”
com a filha (que se transformara numa linda mulher, diga-se!)! Ricardo negou.
Serafim era um homem inteligente, com alguma cultura; falava com conhecimento
de causa. Despedira-o! O homem não se alterou.
Grave, mas digno, desligou a mangueira do cano da água, levou-a para a
arrecadação, com a enxada e a pá; tirou do bolso as chaves do portão e do
“arrecadamento” e atirou-as para cima de uma cadeira. Saiu. Antes, voltou-se
para o ex-patrão: “Volte a tocar-lhe… e dou-lhe cabo da carcaça”! O visado
fantasiou lançar-se sobre o outro, mas ponderou que o homem, ainda que da sua
idade e estatura, lhe ganhava em soberba e exercitada musculatura, já que a
sua… a levara o ócio e o mulherio. Com riso amarelo, deixou-o ir, fechou a
porta da arrecadação e o portão da entrada, com as chaves que trazia consigo,
e voltou à vivenda. Entre esta e o local da desavença mediavam cerca de dois
quilómetros, distância bastante para acalmar os débeis escrúpulos. Os vários hóspedes, na
falta de melhor, esperavam, para a costumada jogatina. Ricardo não se privou
de contar a cena do despedimento, enquanto jogava. Atendeu um telefonema, com
risos cúmplices e um “até logo”, beijado. Às 12h30, o jogo parou. Olhara pela
janela e vira que a chuva parara, novamente. Pediu que subissem para o
almoço, sem esperarem por ele; tinha um encontro importante… de negócios,
acrescentara. Entretanto, irónico e com nítido prazer, intimou Matias Vale e
Mariano, seus devedores de 103 e 62 contos, respectivamente:
“Amanhã, quero o dinheiro, de contado. Nem que tenham de ir buscá-lo, de
barco!” Haveria mais do que ira no olhar dos homens? Afinal, tinham vindo de
Lisboa, cordialmente, para “serem depenados”… Só três subiram. Matias,
baixo e balofo, quase quadrado, muito vermelho, seguiu-lhe na peugada, para
ter uma conversa séria. Perdeu-o e perdeu-se – afirmou, posteriormente.
Mariano, com inopinada suspeita, voltou ao local do jogo, para espiolhar os
três baralhos. Notou as, quase invisíveis, marcas! Desatinado, foi ver a
cheia, para pensar e acalmar – defendeu-se, quando interrogado sobre a
utilização do seu tempo, já que, 65 minutos após a saída de Ricardo, um
ciclista ocasional, do alto da sua bicicleta, visionou, para além da alta
sebe de espinheiros que rodeava o Quintal da Cerca, um corpo caído na eira,
em posição incomum. Encontrando fechado o portão de zinco, liso e encimado
por espigões aguçados, dirigiu-se ao posto da polícia. O subchefe Afonso,
comandante do posto, poderia não ser uma sumidade mental, mas era célere em acção. Dirigiu-se ao local com um guarda e o Sr. Leal (o
ciclista). Tiveram de arrombar o portão, que estava fechado à chave, segundo
verificaram. Afonso deixou o guarda e o ciclista ao portão e atravessou a rua
empedrada, que ia desse portão à casa de arrecadação, aberta, chave na porta
e deserta. Daí, olhou – à sua direita, uma horta bem tratada; à esquerda, o
homem caído, no meio da eira! Observou o rasto de pegadas, que iam da rua
empedrada ao corpo. Decidiu dirigir-se-lhe, formando, por sua vez, novo
rasto; bem longe do existente, para não se confundir. Conhecia o homem caído:
Ricardo Bento! De bruços, um braço debaixo do corpo e o rosto fortemente
metido na terra enlameada apresentava duas feridas nas costas, visíveis
através do casaco, ensanguentado. Estranho: o morto estava descalço e os
sapatos junto dos pés, onde terminava o rasto – o único vestígio de entrada
na eira. Não teve dúvidas de que estava diante de um assassínio… Tanta
certeza, como tinha de que “aquilo era areia demais para a sua camioneta”! Voltou ao arruamento,
pisando o próprio rasto. Meditou que o inspector
Cabral, de visita a um amigo e também retido pela cheia, era o homem certo
para resolver o mistério. Aliviado pela ideia, voltou ao portão. O guarda,
vivaço, desejoso de mostrar valimento, informou-o de que Alda, a filha do
hortelão, ali passara duas vezes, parecendo muito interessada. Ordenou ao
guarda que procurasse, da sua parte, o inspector e
chamasse o médico, que era, simultaneamente, o delegado de saúde, ficando,
depois, a tomar conta do posto. Quando o guarda se afastou, dispensou Leal,
com a recomendação de que não espalhasse o ocorrido e, no dia seguinte, desse
um “salto” ao posto, após o que, sozinho, pensou: teria a rapariga algo a ver
com o assunto? Pelo sim, pelo não, examinou o rasto de sapatos altos, para
cima e para baixo e junto ao portão, sem entrarem. Outros rastos não
identificáveis, aqui e ali; poucos, que o tempo não convidava a andar na rua… Menos de meia hora depois,
chegava o afável inspector Cabral. Colocou as luvas
de borracha e ouviu o subchefe, anotando, mentalmente, os factos. Tomou o
caminho da casa de “arrecadamentos” e inventariou, desde as chaves na cadeira
aos utensílios já citados e outros de igual teor. Chamou-lhe particularmente
a atenção uma mesa grande, coberta com uma grossa manta. Saiu. Do lado
esquerdo, atrás de altos arbustos, a casa de banho – tosca, mas limpa: apenas
pia, chuveiro e lavatório. Do mesmo lado, a três metros da casa e do caminho
empedrado, a eira circular (oito metros de raio, mediu), com pequenas poças
de água e o corpo. Tirou fotos, em grandes planos, do conjunto. Aproximou-se
do corpo, seguindo os rastos do subchefe, sempre a tirar fotos. Sem alterar a
posição, revistou a vítima, extraindo a carteira, a chave do portão, um lenço,
poucas moedas e duas cartas de um baralho. Tomando os pés do morto
como eixo central de um imaginário relógio, o corpo (qual ponteiro das horas)
e o rasto dos sapatos da vítima (um suposto ponteiro dos minutos)
simbolizavam 12h27! Examinou o interior e exterior dos sapatos, que se
ajustavam aos pés da vítima e coincidiam com o rasto, que sugeria um passo
normal. Tal quadro da ocorrência inspirava uma série de perguntas, sem
resposta aparente: a) se Ricardo entrou na eira, ao encontro do seu matador,
por que aparece descalço? b) Será que conhecia e confiava no assassino em perspectiva, para lhe voltar as costas? c) Se foi ferido
fora da eira (e se arrastou, fugindo, para o centro dela), qual o significado
de se descalçar? d) Se foi levado para a eira, onde estão os rastos do
criminoso? Pediu uma caixa limpa (onde colocou os sapatos) e um envelope (com
as meias que tirara à vítima), para envio ao laboratório. É a nossa arma
secreta, comentou. O delegado chegou. Cabral
deixou o médico entregue à sua tarefa e, com Afonso, fez uma pesquisa
minuciosa à cerca de espinheiros e arame farpado,
não encontrando possibilidades de saída ou de se lhe saltar por cima, por
melhor especialista no salto à vara! O médico e os seus ajudantes retiraram o
cadáver, por baixo do qual não encontraram vestígios úteis. O inspector pediu ao médico que lhe desse “uma apitadela”
após a autópsia e saíram. Cabral e Afonso
dirigiram-se para a vivenda, onde a notícia, que ainda ali não tinha chegado,
causou mágoa e espanto. O Ricardinho seria um estupor; apesar de tudo,
estimado pelos seus. No domínio da investigação, ficou a saber-se que os três
homens (visitantes) almoçaram com o irmão de Ricardo e não saíram. Quanto a
Matias e Mariano, já adiantámos os resultados. Não se conhecia quem lhe quisesse
mal, a ponto de o matar! Cabral acabou por encontrar Alda, num café, junto à
casa. Não sabia da morte e o inspector não a
elucidou – falou de um pequeno acidente. Calculara – segundo ela declarou –
que se passara algo, pois “Ric” prometera deixar o
portão aberto, pouco antes das 13h00, e encontrara-o fechado. Passara duas
vezes e vira um polícia. Ficou em autêntico desespero, quando Cabral,
carinhosamente, lhe deu a notícia dolorosa. Antes, todavia, o inspector conseguira a informação de que o pai dela
chegara a casa, zangado; não lhe falara e fechara-se no quarto. Cerca das
12h00, saíra do quarto, revolvera várias gavetas, deixara o almoço sobre a
mesa (sem lhe tocar) e voltara a fechar-se no quarto, abrindo o rádio. Quando
Alda saíra e entrara, quase duas horas depois, continuava a ouvir rádio,
encerrado no quarto, sem lhe responder! Por volta das 10h00 do dia
seguinte Cabral recebeu um telefonema do médico, que acabara o essencial da
autópsia. Faltava-lhe examinar o cérebro, para concluir o relatório. Podia
adiantar que R. B. não morrera de sufocação, apesar de ter o rosto (como,
aliás, todo o corpo) fortemente enterrado na terra mole. As facadas poderiam
não ter sido fatais – mas foram: uma atingiu a espinal-medula; a outra o
coração e fez um rasgão na carne, antes de se afundar nesta (a vítima teria
um gesto de defesa ou estaria em queda). O braço debaixo do corpo tinha uma fractura post-mortem. Sobre a
hora da morte, não adiantava; nesta altura, segundo sabia, o conhecimento
deles seria mais exacto do que os seus cálculos. Cabral quis fazer-lhe uma
pergunta, mas o médico já desligara. Mais matéria. Mais pedras
avulsas para construir a casa da verdade, pensou! E é a altura de desafiar os
leitores a apresentarem os respectivos relatórios,
justificados, que correspondam às interrogações postas – que, neste caso, se
resumem às clássicas: quem? Como? Porquê? |
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© DANIEL FALCÃO |
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