Autor Data Dezembro de 2004 Competição I
Torneio Policiário “O Lidador… das Cinzentas” Prova nº 2 Publicação (em Secção) |
UM DIA DE FÉRIAS ESTRAGADO Zé-Viseu Ideia de M. Constantino, trabalhada por Zé-Viseu Passavam
apenas 240 minutos das 8 horas, quando acordei, naquela manhã de Agosto, na
praia. Não sei porquê, mas nem em férias me liberto da obrigação de me
levantar cedo! Toca
o telefone. Atendo, meio a dormir: –
Bom dia, Schumi (não percebo, mas alguns amigos
tratam-me assim). Espero não te ter acordado, mas tenho um problema! Reconheci
a voz do Raul. –
Não tens minhoca, para a pesca? –
Estou a falar a sério. Fartei-me de telefonar para o meu tio e os meus
primos, desde ontem à noite e ninguém me atende. Meti-me no carro e vim ver o
que se passava. –
Estás cá? –
Estou… deixa-me falar! Pedi à senhora que trata deles e da casa que me abrisse
a porta. Quando entrámos, demos com a porta do quarto do tio fechada, por
dentro, e ouvimos a T.V., ligada. A D. Rosa diz que saiu daqui, às 20, e
estava tudo normal. Calculo que estejam todos lá dentro, pois os quartos dos
primos têm as camas feitas, tal como a Rosa as deixou. –
Já vou. Não toques em nada! Vesti-me
e vi que continuava a chover. Aliás, desde as 22 que tinha sido uma “tromba
de água” (o exagero é da falta de café). Chuvas de Verão,
resignei-me. A
casa não era longe da minha, mas deu para recordar que tinha estado a tomar
café, na noite abafadíssima da véspera, com o Carlos e o João, os sobrinhos
mais chegados do Severiano. Severiano, velho, chato e avarento, estava
mirradinho; mais para lá do que para cá, mas não se decidia. Por isso, estes
sobrinhos não o largavam nem se largavam, controlando-se, ferozmente, na
ânsia de ficar bem no testamento e não deixar que o outro “levantasse
qualquer coisa, por conta”. O Carlos até deixara de viver com a mulher, já
que o João, solteirão militante, vivia com o tio (prescindo de comentar a
qualidade da mulher do Carlos e a da herança, porque também não quero
qualificar os irmãos). O Carlos, às 21,30, disse que precisava de ir para
casa, pois andava com os intestinos “às voltas”. O João, apesar de se queixar
do contrário, seguiu-o, como uma sombra. As bicas,
paguei-as eu… por exclusão de partes! Abri
o portão da vivenda e atravessei o quintal, enlameado. Forreta, pensei, nunca pavimentou a área circundante da casa! Entrei.
Comecei por abraçar o Raul e pedi à D. Rosa que falasse um pouco mais baixo e
devagarinho. Sem café, aqueles guinchos pareciam sirenes de filmes
americanos. “Não me sujem mais a casa, que me deu um trabalhão a limpar”! Rais parta a mulher! Mas era verdade. A senhora tem
pilhas de longuíssima duração, mas fizera um trabalho perfeito – nem ponta de
sujidade! Apenas as inevitáveis pegadas dela, do Raul (ambas menos nítidas,
porque a “sargenta” impusera uma limpeza cuidadosa) e as minhas, bem
marcadas, porque, sinceramente, berros é coisa que eu não consigo
descodificar, para mais, de manhã cedo. Telefonei,
do meu móvel, para a polícia (naquela casa, só havia um telefone fixo, no
quarto do velho, e eram proibidos telemóveis – modernices, que só servem para
gastar dinheiro). Vieram os meus velhos amigos Chefe Dias e Subchefe Tó, com
o Guarda Ricardo, que conduzia a viatura, descaracterizada. Contámos
o que sabíamos – a Rosa, o Raul e eu. Rosa foi dispensada. Nós, os dois,
ficámos, afastados, tanto quanto possível, da porta do quarto. Porta
arrombada pelo guarda (o Dias e o Tó são muito mais personagens de filme
intelectual). Entraram os chefes, depois de breve contacto, a sós, com
Ricardo. Nós espreitámos, a seguir. O tio, cheio de sangue, na cama. Carlos e
João pareciam dormir, profundamente, cada qual no seu sofá. Pelo menos, os
troncos oscilavam, ao ritmo da respiração. Sentámo-nos
e esperámos (e eu, sem café!). Saíram,
primeiro, os primos. Quais “zombies”, desabaram num
sofá, ao pé de nós. Muitos
minutos depois, saíram Dias e Tó. Ricardo estaria na rua ou à porta. Os
dois primos afirmaram não fazer ideia do que se tinha passado, pois tinham
caído num sono profundíssimo, de que ainda não tinham acordado completamente. Dias
pediu o número de telefone, para contactos, posteriores (dispensou identificação
pessoal, por conhecimento). Carlos, com a mão esquerda (que ostentava um
pequeno penso adesivo), escreveu o número do telefone da vivenda. João
não resistiu a provocar o primo: –
Ainda não tinha dado por isso, mas resolveste, finalmente, tirar a aliança.
Realmente, o teu casamento já acabou há muito! –
Não chateies. Tu nem jeito tiveste para arranjar quem te aturasse! (resmungou
Carlos). – João tentou um gesto de agressão, com um cinzeiro, na mão direita. –
Calem-se e deitem-se – berrou Tó. – Falaremos, quando estiverem em condições!
– Os primos, trôpegos, recolheram às boxes. –
Agora, nós, meus meninos – acordei, enfim!, eu: –Vamos ser sintéticos, que temos muito que fazer: Quarto
com casa de banho privativa. Porta de entrada no quarto e janelas, bem
fechadas, por dentro. Não há o mais leve vestígio de pegadas de sapatos ou de
entrada de gente (para além de nós). Quarto limpíssimo. Os
três, de tronco nu, cuecas e descalços. Três copos, com restos de
(aparentemente) água, sobre um pires, cada um junto a um deles. Cada copo tem
apenas as impressões digitais de uma pessoa, todas diferentes. Nenhum pires
contém qualquer impressão digital. O
homem foi morto à facada, com golpes desferidos na parte superior do tronco,
à direita e à esquerda, com orifícios de entrada indicando trajectória inclinada. Devido à quantidade desses golpes,
o velho sangrou bastante, antes de se “apagar”. Sob o braço direito, e na
zona envolvente, restos de um velho termómetro, partido. Diria, a olho, que
não morreu depois da meia-noite. Nada
de anormal, na casa de banho. –
E não há pegadas, à volta da casa, a não ser as nossas três; e outras três,
também muito recentes. Todas no carreirinho, entre o portão e a porta da
casa. – Afirmações, peremptórias, do guarda
Ricardo. –
E, agora, tu (convidou-me o Dias), que tens a mania de resolver mistérios
destes! Mesmo
sem café, disse-lhes o que pensava ter acontecido. –
Estou de acordo, afirma Tó. Se as perícias, análises, autópsia (e tudo o
resto que sabes ser dos livros) confirmarem as tuas deduções, tens 10, neste problema!!! –
Encontramo-nos ao almoço, no local do costume – convidei eu, ao sair. Entrei
no passeio, ao mesmo tempo que os carros da comitiva técnica dobravam a
esquina. Pelo
sim, pelo não, vou tomar o pequeno-almoço. Convido-o, caro confrade, a vir
tomar café comigo, para trocarmos ideias sobre o caso que me estragou um dia
de férias… |
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© DANIEL FALCÃO |
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