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22 de Março de 1957. É
publicado, na revista “Flama”, o 1º número da Secção “O Gosto do Mistério…”,
orientada por Jartur – curiosamente, por lapso
tipográfico, identificado como “Mr. Dartur”. Domingos Cabral, com 15 anos completados
recentemente, responde ao problema naquela inserido
– “O Táxi Misterioso”, transformando, assim, em “casamento” o “namoro” que à
modalidade vinha fazendo há algum tempo, através do contacto com a Secção do
“Mundo de Aventuras”, de que era leitor há alguns anos. Sabendo, por isso, que era habitual o uso de
pseudónimo, e perante a dificuldade que sentiu na escolha, rápida, de um,
acabou, por associação, por perfilhar o “Inspector
Aranha”. É que, naquele problema, o investigador (Marcos Dias), concebido
pelo Autor (Jartur), após resolver o caso,
dirige-se para o “Clube do Aranhiço”. Escolha pouco feliz, de facto, já que
ninguém inicia a construção de um edifício pelo telhado e o principiante
começava, nada modestamente, por se designar “Inspector”…
De qualquer forma, iniciou-se, assim, um longo caminho… In Mundo dos
Passatempos, 1 de Setembro de 2007 Correio Policial, 20 de Novembro de 2020 |
PRIMÓRDIOS DA PROBLEMÍSTICA
POLICIÁRIA PORTUGUESA por DOMINGOS CABRAL (do livro com o mesmo título, a
editar) 10 CICLO REINALDO FERREIRA “REPÓRTER
X” CONCURSO DOS CONTOS
MISTERIOSOS Nº 8 UMA PARTIDA DE XADREZ Terminado
o jantar, D. Ramiro de Menezes reuniu os seus hospedes
no salão. A luz do globo eléctrico, filtrando-se
através dos esguios cálices de “Kermen” ia salpicar
de verde os tampos negros das mesas. O
Castelo de Vilamares fôra
mandado construir pela família de D. Ramiro ainda no prodigioso século das
conquistas. Naquele salão, de tecto alto e côncavo
como o de uma catedral e picado por doze ogivas agudas, que mais pareciam
lanças de pedras destinadas a guerras gigantes, coleccionara
D. Ramiro vestígios preciosos da obra ultramarina dos seus avós. Nenhum museu
podia exibir maior variedade de maravilhas artísticas. D.
Ramiro pouco tempo habitava o castelo que herdara juntamente com o vício das
viagens. Percorria todo o ano os continentes mais afastados, numa pressa de
quem tem a cumprir altas missões – e só quando a fadiga física o amolecia é
que regressava à pátria, passando, num socego
conventual, umas férias que nunca ultrapassavam duas semanas. Rompera,
daquela vez, os seus hábitos de solitário, oferecendo a hospedagem do seu
castelo ao seu sobrinho Henrique de Menezes, estudante de engenharia em Gand, e ao seu antigo amigo, Castro de Aragão, a vieuxgarçon, que reduzira já a cinzas tres
fortunas, e que, apesar dos seus sessenta anos, bem puxados, perdia as
noites, como qualquer rapazola, nas festanças dos cabarets lisboetas. Henrique
pedira licença ao tio para se fazer acompanhar de um camarada inseparável,
belga com grande curiosidade de conhecer este país de sol de que os
estudantes portuguezes faziam um reclame, quasi comercial, nas horas vagas, em Gand.
Chamava-se essa belga Leon Borau
e era tímido como uma donzela. –
Tu deves aborrecer-te neste socego, como uma
lagosta afogada em mayonais – disse D. Ramiro ao
velho Arragão que bocejava silencioso, sentado
junto ao fogo. –
Nem por isso. Este meu abatimento tem outro significado… –Cançaço? –
Qual cançaço. Eu sou lá homem para me fatigar? D.
Ramiro, recordando confidências que horas antes o amigo lhe fizera, murmurou,
sorrindo: –
Compreendo… Alguma letra a pagar… Maldito jogo! –
Não insultes o jogo. O jogo é o maior prazer que os homens inventaram. E a propósito…
Não tens por aí um baralho de cartas? Seria uma forma amena de matarmos as
horas… –
Cartas não tenho. Detesto e ignoro todos os jogos – até a bisca. Mas espera…
Talvez se arranje um xadrez. Henrique
e o belga aplaudiram a promessa. Eram eles verdadeiros azes do xadrez. D.
Ramiro dirigiu-se a um bahú de couro todo chapeado
de amarelo, e depois de vasculhar durante algum tempo, exclamou: –
Cá está! E
pousou sobre uma mesa um taboleiro antigo, encrustrado de madrepérola; e dum cofre de sândalo retirou
as peças do jogo, todas de ouro… Os olhos dos reis e dos cavalos, refulgiam: o seu construtor tivera o capricho nababesco
de encher-lhes as órbitas com minúsculas pedras coloridas. Arragão confessou que só lhe interessava
a roleta – que o xadrez exigia um grande esforço mental – e ele, que nada
fizera em toda a existência, não estava para começar a trabalhar aos sessenta
anos. Henrique e o belga tomaram logo conta do jogo, abancando em frente do taboleiro. E quando eles iniciaram a batalha, Arragão fez a crítica ao valor daquele xadrez: –
É magnífico. Devia ter-te custado uma fortuna, Ramiro. –
Não me custou nada! Pertence á minha família há mais de tres
séculos… Já me ofereceram dez ml libras por ele. Mas para mim, o seu grande
valor reside na lenda que gira á sua volta. Foi oferecido ao meu avô – D.
Nuno – por um rico negociante chinez de Macau, como
premio de o ter arrancado das mãos de uns piratas amarelos, quando navegava
naquelas águas. Esse negociante chinez afirmou a
meu tio – ou foi o meu tio que inventou, não sei bem – que uma das torres do
xadrez era oca e estava recheada com dois enormes diamantes. E explicava esse
capricho dizendo que ele próprio fabricara todas as peças do jogo durante um
cativeiro em Lun-Hong e fizera uma torre oca para
ocultar esses diamantes que podiam atrair sobre ele a cubiça
dos seus carcereiros.
–
Será verdade, tio? –
Sei lá… –
É muito interessante, essa história! – murmurou o estudante belga. E
depois metendo entre os lábios uma cigarrilha de ponta doirada, pediu para
Henrique: –
Dá-me um fósforo… Perdi a minha caixa. Henrique,
que não fumava, não tinha caixa de fósforos. D. Ramiro cedeu-lhe a sua. E Arragão indagou: –
Tu não tens procurado investigar se a lenda era verdadeira? –
Eu? Nunca! Seria destruir por completo o encanto do mistério que este xadrez
tem para mim. Houve
um silêncio. Terminada a primeira partida, com a derrota do belga, Henrique
notou: –
Nunca joguei ao xadrez com figuras tão pesadas… –
Pudera. São de ouro massiço! –
Todas… menos as que guardam os diamantes… E
todos quiseram sentir o peso das torres, fazendo-as saltar nas palmas das
mãos. –
É difícil de adivinhar qual delas é! – comentou Henrique. – O peso é o mesmo. –
Cantigas! Exclamou Arragão. Eu não acredito na
lenda. –
Havia só uma forma de o verificar: era quebrar todas as torres… Mas, como já
vos disse – prefiro viver na doce ilusão. Os
dois jogadores iam começar a segunda partida. E o belga, com um outro cigarro
entre os lábios, vasculhava as algibeiras. –
Não sei o que faço aos fósforos… –
Eu não tenho – afirmou D. Ramiro. Você não me devolveu a caixa que lhe dei há
pouco. –
Pois não… E não a encontro… –
Tome lá fósforos… - disse Arragão estendendo-lhe uma
caixa. E vou deitar-me. Ando mal disposto… Boas noites, meus senhores. Boas
noites, Ramiro. *** Era
meia noite quando os dois adversários no xadrez abandonaram o taboleiro… –
Vão deitar-se. Amanhã devem dar, muito cêdo, uma
batida pela montanha… –
E o tio! –
Eu vou escrever uma carta. D.
Ramiro esperou ainda uma meia hora. Depois, abriu um estojo, tirou dele uma
seringa e uma ampola; arregaçou a manga do robe-de-chambre e preparava-se
para se picar com morfina - velho vício que ele adquirira na solidão em que
vivia - quando a luz se apagou, deixando o salão numa negrura densa e mal
agoirenta. Que
queria aquilo dizer? Era a primeira vez que havia uma panne na iluminação do
castelo. Tacteou, tropeçou, praguejou… –
E eu sem fósforos…Que maçada… Passado
um bocado viu brilhar, ao longo do corredor, uma minúscula chama bruxeleante. E ouviu uma voz dizer: –
Por aqui! Por aqui! Sigam-me… Eram
os seus hospedes, Arragão e Henrique que vinham
guiados pelo belga. O primeiro ainda estava vestido. Os dois últimos envergavam
já os pijamas da noite. Foram ao quadro da distribuição… Iluminados sempre
pelos fósforos do belga constataram que não havia o menor desarranjo. As
trevas tinham sido causadas pela queda da manapola
da ligação fechada. –
Essa é boa! – exclamou D. Ramiro. – Quem fecharia a luz… –
Talvez estivesse laça ou mal presa e caísse por si… Aberta
de novo – todas as lâmpadas do castelo se iluminaram. Despediram-se; os
hóspedes regressaram aos seus quartos e D. Ramiro ao salão. Vinha desconfiado
e pensativo. O seu olhar dirigiu-se logo ao taboleiro
do xadrez. Tinham desaparecido todas as torres do jogo! *** Foi
o próprio D. Ramiro quem, anos depois, me contou este episodio, durante o
jantar, no rapido de Paris-Berlim, em que fomos
vizinhos de mesa, no wagon-restaurant. –
E nunca soube quem tinha sido o ladrão? –
Naquela mesma noite – depois de me ter picado com uma dose dupla de morfina.
Fixei o meu pensamento sobre os tres hospedes. Eram
iguaes as suas circunstâncias. Os tres estavam pobres, os tres
ambiciosos, os tres lutavam com falta de dinheiro;
os tres me pareciam honrados… Mas depois reflecti – reflecti em tudo
quanto se passára naquela noite; lembrei-me de um
pequeno detalhe e uni-o ás trevas em que me encontrei, ao facto de apagarem a
luz para efectuar o roubo, sabendo que eu não tinha
fórmula de vencer essas trevas… E descobri logo a premeditação – e puz no índex o gatuno. Nunca l’ho
disse. Deixei-o partir em paz, com as peças roubadas. –
E quem era? –
Não adivinhou ainda? Era… Raciocinem
como raciocinou D. Ramiro, vejam qual foi a causa por que êle
não pôde atenuar as trevas em que se encontrava, no momento do roubo e encham
o coupon que se segue. Notas:
1. Esta transcrição respeita a ortografia original. 2. A reprodução da capa
do livro “ O Fabuloso Repórter X” foi autorizada pela Editora Vegan.
Fontes: Secção
Correio Policial, 20 de Novembro de 2020 | Domingos Cabral Blogue Repórter de
Ocasião, 30 de Abril de 2024 | Luís Rodrigues |
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© DANIEL FALCÃO |
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