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22 de Março de 1957. É
publicado, na revista “Flama”, o 1º número da Secção “O Gosto do Mistério…”,
orientada por Jartur – curiosamente, por lapso
tipográfico, identificado como “Mr. Dartur”. Domingos Cabral, com 15 anos completados
recentemente, responde ao problema naquela inserido
– “O Táxi Misterioso”, transformando, assim, em “casamento” o “namoro” que à
modalidade vinha fazendo há algum tempo, através do contacto com a Secção do
“Mundo de Aventuras”, de que era leitor há alguns anos. Sabendo, por isso, que era habitual o uso de
pseudónimo, e perante a dificuldade que sentiu na escolha, rápida, de um,
acabou, por associação, por perfilhar o “Inspector
Aranha”. É que, naquele problema, o investigador (Marcos Dias), concebido
pelo Autor (Jartur), após resolver o caso,
dirige-se para o “Clube do Aranhiço”. Escolha pouco feliz, de facto, já que
ninguém inicia a construção de um edifício pelo telhado e o principiante
começava, nada modestamente, por se designar “Inspector”…
De qualquer forma, iniciou-se, assim, um longo caminho… In Mundo dos
Passatempos, 1 de Setembro de 2007 Correio Policial, 18 de Dezembro de 2020 |
PRIMÓRDIOS DA PROBLEMÍSTICA
POLICIÁRIA PORTUGUESA por DOMINGOS CABRAL (do livro com o mesmo título, a
editar) 14 CICLO REINALDO FERREIRA “REPÓRTER
X” CONCURSO DOS CONTOS
MISTERIOSOS Nº 12 O BARBEIRO E O PRÍNCIPE O
pincel de Staam a esparramar o sabão nas faces do
príncipe real tinha as mesmas flexibilidades do de um artista que estivesse
evocando, sobre a tela, uma imaculada paisagem de neve. –
Vossa Alteza, está preparado? Indagou no momento em
que assentava o fio da navalha numa tábua de cabo prateado. E
Sua Alteza respondeu, monossilábico: –
Estou! –
Alguma exposição industrial para visitar? –
Não! –
O governo desistiu das viagens de Vossa Alteza às colónias? –
Não! –
Os papasinhos de Vossa Alteza falaram-lhe mais uma
vez da urgência que existe em escolher noiva? –
Oh! Não! E
o barbeiro sorriu-se e emudeceu. Um pouco inclinado, mas sem perder a firmeza
dos seus gestos cheios de altivez, ia deslizando a lâmina por sobre o floco
alvíssimo de escuma. A navalha conduzida pelos seus dedos de artista tinha a
leveza de uma pena que cocegasse as principescas faces do cliente. Havia
quarenta anos que Staam barbeava os príncipes ou os
reis do seu paiz. O avô do actual
herdeiro chamava-lhe o “Montepio dos Segredos” quando, ainda herdeiro do
trono, se sentava naquela cadeira, de volta das suas
orgias bohemicas… Fôra Staam quem dera, ao actual
monarca e ao filho, essa emoção da primeira razura,
que é, para os moços em plena puberdade, como que o certificado dos direitos
máximos do seu sexo… Ria-se
Staam dos ministros, dos cortezãos;
ria-se, sobretudo, sempre que ouvia falar de segredos de Estado. Segredos de
Estado, para ele? Ora adeus… Se ele quisesse acabaria com as lendas, com os
embustes, com as charadas… Bastaria revelar o que, em quarenta anos de
serviço, escutara aos reis e aos príncipes. Blindado,
como os bufões medievais, com a segurança de que a sua indiscrição jamais
seria castigada, insistiu: –
Mas porque é que está assim preocupado, Alteza? E
o príncipe, sob a influência da tradição que lhe impunha uma confiança
ilimitada ao barbeiro do palácio, desabafou: –
Tu nunca ouviste falar das irmãs Tudesc? –
As célebres modistas parisienses? –
Modistas de Paris, da Rue de la Paix,
são de facto – mas ambas – a Gina e a Carmen,
nasceram em Bucarest, que é como se dissesse que
são rumaicas. Gina e Carmen,
como sabes, vestem as mais suntuosas damas da nossa corte. Todos os anos,
umas semanas antes da abertura da estação, tomam o expresso e vêem instalar-se no primeiro andar do Sawya-Hotel,
seguidas de moços, ajojadas com as suas últimas
criações e ladeadas por um elenco de manequins de carne e osso que fazem
aguar os mais pintados cidadãos. Rara é a estação que o seu pessoal feminino
não deserta entusiasmado pelas promessas de casamento de alguns banqueiros bajojos – e mesmo de alguns fidalgos caquéticos… As irmãs
Tudesc, a Gina e a Carmen,
recebem-me, pela calada da noite. Eu entro por uma porta secreta das
traseiras do hotel e costumo passar umas horas agradáveis, cercado pelas girls da comédia da “Moda”. Este ano tardei a visita – e
encontrei-as desfalcadas já no seu selecionadíssimo elenco de modelos. Apenas
lhes ficara uma pobre rapariga, magrita, morena, insignificante, com o olhar
triste das gheisas do Japão – e que, segundo me
informara, é de nacionalidade portugueza. “Ora,
este ano, talvez por se encontrarem sós, as duas rumaicas,
a Gina e a Carmen, começaram a fazer-me a corte.
Sim, meu velho: fazer a corte é o termo exacto!
Deu-lhes para se apaixonarem por mim. Mas de que maneira! Tragicamente, com chôros, com berreiros, com cenas de ciúmes entre ambas,
com ameaças de romperem a sociedade comercial – e enviando-me, diariamente,
declarações que são verdadeiras bíblias. Infastiei-me
– e decidi nunca mais pôr os pés no Sawya-Hotel
enquanto elas lá estivessem… “Pois
bem: ontem, um dos meus íntimos, trouxe-me a informação que provocou este mal
estar que tu, com o teu fluido mágico, adivinhaste em mim. A informação é
que, no Sawya-Hotel, nos appartements
ocupados pelas irmãs Tudesc, houve uma mulher que
tentou suicidar-se ingerindo uma dose fantástica de pantapou…
Essa mulher, que foi salva graças à rápida intervenção do médico, confessou
ao padre que acudiu ao seu apelo que queria morrer por que se apaixonara sem
esperança, pelo príncipe herdeiro… “Esta
notícia impressionou-me, comoveu-me… Mandei chamar o médico, para que me
revelasse o nome da minha loucamente apaixonada. “Nada posso dizer-lhe,
Alteza – respondeu o médico. A minha cliente impôs-me sigilo – e eu nunca
violei um segredo clínico”. Chamei o sacerdote – e obtive a mesma negativa:
“É um segredo de confissão, Alteza! “Quis
ir pessoalmente investigar o caso. Fui recebido em alvoroço… Gina, Carmen e a portuguezinha
estavam igualmente pálidas, igualmente olheirentas, com três espelhos reflectindo a mesma imagem. Quando lhes perguntei qual
das duas cometera a loucura de se envenenar, negaram-se a confessá-lo… Depois
Gina, num instante que esteve só comigo, segredou-me: «–
Fui eu, príncipe, fui eu! Se me vejo desprezada neste grande amor!” E no
momento de despedir-me, a outra Tudec, a Carmen, aproveitando a ausência da irmã, cochichou-me à
pressa: “-Fui eu, Alteza, fui eu! Para que me serve a vida se ela é a negação
do amor que engendrou no meu peito?” O
príncipe real deixou que o barbeiro lhe escanhoasse o queixo e inquiriu
depois: - Tenho ou não tenho motivos para estar preocupado? Uma mulher que
quer suicidar-se por amor de mim – é por que me ama… Se ela me ama com tal
ardência, merece que eu a distinga. Mas qual das duas será? Eis a dúvida que
me atormenta! Staam borrifou a cabeça do seu augusto amo com uma
rosada loção de Lubin:
sorriu-se de novo, num crispar de lábios que espelhava convencimento de uma
superioridade; e garfando os dedos por entre a guedelha do príncipe,
murmurou: –
Vossa Alteza sabe que uma mulher, no appartement
das Tudesc, no Sawya-Hotel,
tentou suicidar-se por amor de si! –
Sei! –
Mas ignora quem foi! –
Já se vê que ignoro… E
o barbeiro então filosofou: –
Essas duas modistas são rumaicas, o que quer dizer
pouco propensas a uma paixão séria… Estão despaísadas;
fixaram-se em Paris, triunfaram em Paris – o que equivale a dizer que são
mulheres vaidosas e práticas… Ora o suicídio por amor costuma ser obra de
sentimentos muito opostos. Além disso, o detalhe da suicida ter exigido ao
médico e ao padre, segredo pela sua loucura prova que essa mulher amava e ama
Vossa Alteza com elevação, com aquela ânsia de martírio e com aquele pudor anti-exibicionista que é o sintoma do verdadeiro amor, do
amor que se oculta, que não se fala, que sofre em silêncio. “E
como se pode explicar que Gina ou Carmen, depois de
ter praticado esse heroísmo – viessem alardeá-lo?” –
E que conclusão tiras tu de tudo isso? Perguntou o príncipe. –
Tiro a conclusão, Alteza, de que quem tentou suicidar-se foi… * FALANDO DE REINALDO
FERREIRA…
Em tudo precoce, quer na vida aventurosa quer na
sua arte, Reinaldo Ferreira conheceu um espantoso êxito antes dos trinta
anos. O seu nome tornara-se rapidamente célebre e o seu pseudónimo “Repórter
X” mais famoso ainda. Falava-se dos seus triunfos profissionais com o mesmo
tom que se utiliza para evocar actos singulares de
figuras lendárias. Mas no meio de toda esta ebriedade, uma mulher
que não devemos nem podemos condenar sem conhecermos a sua verdade, que ela
própria talvez não soubesse esclarecer bem, empurrou-o involuntariamente para
um abismo, sem ser essa evidentemente a sua intenção. Ansioso de olvido, ele escolhera, para curar o
espírito doente, o pior de todos os remédios, aquele que lhe adoeceria o
corpo também. Foi uma derrocada total. E Reinaldo, que tanto desejava
esquecer, ficou esquecido ainda em vida. A Morte, talvez apiedada,
apressou-se a levá-lo com a mesma prematuridade com que tudo florescera na
sua existência." (Extracto de uma carta de 7/10/1973 de Ferreira de Castro
para Natália Correia.) _______________________________________________________________________________________________________________________________________ A todos os nossos leitores, amigos e
colaboradores endereçamos votos de Bom Natal e de um mais Feliz Ano Novo -
bem melhor que este pandémico 2020.
Fontes: Secção
Correio Policial, 18 de Dezembro de 2020 | Domingos Cabral Blogue Repórter de
Ocasião, 30 de Junho de 2024 | Luís Rodrigues |
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© DANIEL FALCÃO |
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