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22 de Março de 1957. É
publicado, na revista “Flama”, o 1º número da Secção “O Gosto do Mistério…”,
orientada por Jartur – curiosamente, por lapso
tipográfico, identificado como “Mr. Dartur”. Domingos Cabral, com 15 anos completados
recentemente, responde ao problema naquela inserido
– “O Táxi Misterioso”, transformando, assim, em “casamento” o “namoro” que à
modalidade vinha fazendo há algum tempo, através do contacto com a Secção do
“Mundo de Aventuras”, de que era leitor há alguns anos. Sabendo, por isso, que era habitual o uso de
pseudónimo, e perante a dificuldade que sentiu na escolha, rápida, de um,
acabou, por associação, por perfilhar o “Inspector
Aranha”. É que, naquele problema, o investigador (Marcos Dias), concebido
pelo Autor (Jartur), após resolver o caso,
dirige-se para o “Clube do Aranhiço”. Escolha pouco feliz, de facto, já que
ninguém inicia a construção de um edifício pelo telhado e o principiante
começava, nada modestamente, por se designar “Inspector”…
De qualquer forma, iniciou-se, assim, um longo caminho… In Mundo dos
Passatempos, 1 de Setembro de 2007 Correio Policial, 25 de Dezembro de 2020 |
PRIMÓRDIOS DA PROBLEMÍSTICA
POLICIÁRIA PORTUGUESA por DOMINGOS CABRAL (do livro com o mesmo título, a
editar) 15 CICLO REINALDO FERREIRA “REPÓRTER
X” CONCURSO DOS CONTOS
MISTERIOSOS Nº 13 O CADÁVER DO SR. BELMIRO Arruda
é uma vila que de vila apenas tem o nome, cedido pelo favoritismo político.
Plantada a meio de um vale, insignificante é o regimento de vinhas que galga
a montanha na curta distância de um quilómetro… Mas belas são essas uvas que
o sol doira e transforma num colar sinuoso de diamantes, sob a renda verde da
folhagem. Mas aquelas vinhas bem espremidas mal davam cinco pipas; e cinco
pipas satisfariam o consumo da vila, que é de dois mil habitantes de vasto
estômago – se não fosse as habilidades do sr.
Belmiro. O sr. Belmiro foi, durante quinze anos,
não direi o soberano industrial do vinho de Arruda, ao nível desses reis da
indústria yanque, mas aproximava-se do principiado,
pelas suas riquezas. Viajado e manhoso, o sr.
Belmiro aproveitara-se da fama do vinho da sua terra para encher, com as
cinco pipas da produção local e com outras tantas que de fora lhe chegavam,
os porões dos vapores que levavam, para os Brazis,
umas elegantes garrafas etiquetadas a doirado com o nome pomposo de “Vinho
genuíno de Arruda”. Graças
a este ardil o sr. Belmiro amealhou alguns milhares
de contos. Económico e solteiro, ninguém colaborara com ele, nos benefícios
da fortuna. E quando, naquele mês de Agosto, subiu ao Supremo Tribunal de
Deus, a dar contas das suas falsificações vinícolas, a justiça viu, com
pasmo, que, o rico sr. Belmiro nem depois de morto quizera abandonar aos outros, os bens conquistados na
terra. Dizia assim o testamento: «Quero ser enterrado com todas as minhas jóias – os anéis, os alfinetes de gravata, o relógio e a
corrente de ouro e a abotoadura de brilhantes. Como não tenho parentes nem
herdeiros directos, que o Estado faça da minha
fortuna, orçada em quatro mil contos, o que entender”. * Quando
fui encarregado pelo chefe da redacção de fazer a
reportagem do «cadáver do sr. Belmiro», vim de automóvel pela antiga estrada real. Muito antes de
chegar a Arruda, surgiu, na curva do caminho, por detrás de um muro mui
caiado, que reverberava ao sol do meio dia, uma minuscula floresta de cruzes. Era o cemitério que o
município quizera colocar a uma distância de um
quilómetro da vila. * –
Quer ver a cova do sr. Belmiro? – perguntou-me o
chauffeur, abrandando a marcha. Disse
que sim. Descemos á estrada. O portão do cemitério estava apenas encostado.
Não se via um ser vivo, naquele campo de morte… Antigo devia ser porque,
apesar de espaçoso, não havia muito terreno vago. Aqui e além, como chalets de bonecas, viam-se jazigos vaidosos, jazigos vem
vestidos de mármore. Mas
o sr. Belmiro não tinha jazigo. Fora enterrado, na ante-véspera, num coval razo,
entre dois ciprestes pigmeus. A terra tinha sido arrancada; e espreitando, vi
o caixão violado, as táboas feridas à martelada,
esburacadas; e lá no fundo, com as violetas sinistras a desfolhar-se na pele
lívida – o corpo do sr. Belmiro, pançudo e ignóbil,
e nusinho de todo, como se estivesse numa mesa de
anatomia, à espera da bisbilhotice dos bisturis. –
Os malandros nem a camisa lhe pouparam! - contou-me o chauffeur. Levaram-lhe
tudo – as jóias, as roupas, os sapatos… –
E quando foi? –
Logo na madrugada seguinte ao enterro. Entraram, abriram a cova, arrombaram o
caixão e despiram o morto, sem temor a Deus nem respeito pelo sítio onde se
encontravam… Sempre há gente de muito maus instintos! –
E quem foi o ladrão? –
Sei lá! O sr. Regedor prendeu Zéca
Cortinho – o coveiro. Parece que, na noite da patifaria, teve a casa cheia de
amigaços e que andou pela estrada até de manhã. A casa dele fica ali – mesmo
em frente do cemitério… E
de manápula espetada indicou-me um casebre negro de sujidade, erguido numa elevação
do terreno. –
Que o “Zéca” era um homem muito temente a Deus e
sério, ninguém o nega. Há vinte anos que enterra mortos – e nunca tivemos
razão de queixa… E há mais: o Zéca, apesar de
habituado a lidar com os mortos nunca entrou de noite, no cemitério. Ele
próprio confessava: - De dia, não me importo… Mas de noite… de noite entra-me
uma tremura no corpo e na alma – e não posso!… não posso!»
–
Era casado, o coveiro? –
Era! A mulher tem passado a manhã num choro pegado e jura e torna a jurar que
o seu homem era incapaz de cometer tal vilania. * Fui
a casa do coveiro. A mulher, escanzelada e triste, recebeu-me como se recebe
uma esperança, que desce milagrosamente do céu. E com um filho miúdo a
chupar-lhe o seio magro, contou-me: –
O meu homem fazia anos e convidou uns amigos a beber um copinho de vinho
doce… Vieram três. O Lindoso, que é alfaiate; o Romão, que é barbeiro e nosso
vizinho porque vive mesminho aqui ao lado; e Roque,
o carpinteiro que vive em Brocedas. * O
último a chegar foi o Roque. Tinha tido tarefa em casa do sr.
Doutor, o arranjo de umas capoeiras e até trazia a ferramenta do ofício. O
meu Zéca mandou abrir três garrafinhas e a pândega
esteve animada. Cantaram, tocaram viola e até eu bailei. O que estava mais
macambuzio era o Lindoso, o alfaiate… - «Eu não sei como vocês podem viver
aqui mesmo junto ao cemitério! – disse-me ele». E o meu homem respondeu: -
«Não é por gosto, descanse. Sabe Deus o que me custa!» E o Romão, o barbeiro,
disse também: «Moro neste sítio vai para doze anos - mas não há forma de
acostumar-me. De noite nunca saio... Se não fossem os anos cá do Zéca, não tinha posto os pés na estrada.» Depois falou-se
na morte do sr. Belmiro e das riquezas que ele
levava para a cova, e o Roque, quasi se zangou: –
«Que raio de conversa! Vocês, parecem que querem fazer-me medo.» E desatou a
beber – que só à conta dele foi garrafa e meia. Mas
dali a pouco já ninguém pensava nos mortos. O bródio durou até às duas da
manhã. O Lindoso, o alfaiate, tremia com a ideia de voltar à vila. A noite
estava negra como breu. Não se via um palmo adiante do nariz… «O meu Zéca, ofereceu-se para acompanhá-lo até à Arruda, com a
lanterna de acetilene…” «E o Romão? E o Roque?» - perguntou ele. «Eu não
preciso!» - respondeu o carpinteiro. E desembrulhando a sacola da ferramenta
mostrou uma lanterna eléctrica que comprára na feira de Junho… «Com esta “mánica” até pareço um automóvel!» «Quanto ao Romão, não
era preciso acompanhá-lo porque, como já disse ao senhor, vive aqui ao lado…»
«Saíram
os quatro. O Romão entrou logo em casa, o Roque lá foi para Brocedas, com a lanterna acesa – e o meu homem e mais o
alfaiate encaminharam-se para a vila: À volta houve quem o visse – alguém que
lhe queria mal – e como esta manhã apareceu o cadáver do sr.
Belmiro nusinho de todo vá de acusar o meu Zéca! Mas eu juro-lhe, meu senhor, que o meu Zéca era incapaz de uma patifaria assim…» E
como a mulherzinha se preparasse para uma lamúria ruidosa que é a única
exteriorização de dôr das fêmeas plebeias,
interrompi-a para a sossegar: –
Deixe lá… O seu homem hoje mesmo virá para a rua… Não foi ele quem violou a
cova do sr. Belmiro. Dos quatro, um só podia
fazê-lo, é esse que eu irei denunciar é… Quem
foi que violou a cova do sr. Belmiro? O Lindoso,
alfaiate? O Romão, barbeiro? O Roque, carpinteiro? Raciocinem
e resolvam o problema.
Fontes: Secção
Correio Policial, 25 de Dezembro de 2020 | Domingos Cabral Blogue Repórter de
Ocasião, 15 de Julho de 2024 | Luís Rodrigues |
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© DANIEL FALCÃO |
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