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22 de Março de 1957. É
publicado, na revista “Flama”, o 1º número da Secção “O Gosto do Mistério…”,
orientada por Jartur – curiosamente, por lapso
tipográfico, identificado como “Mr. Dartur”. Domingos Cabral, com 15 anos completados
recentemente, responde ao problema naquela inserido
– “O Táxi Misterioso”, transformando, assim, em “casamento” o “namoro” que à
modalidade vinha fazendo há algum tempo, através do contacto com a Secção do
“Mundo de Aventuras”, de que era leitor há alguns anos. Sabendo, por isso, que era habitual o uso de
pseudónimo, e perante a dificuldade que sentiu na escolha, rápida, de um,
acabou, por associação, por perfilhar o “Inspector
Aranha”. É que, naquele problema, o investigador (Marcos Dias), concebido
pelo Autor (Jartur), após resolver o caso,
dirige-se para o “Clube do Aranhiço”. Escolha pouco feliz, de facto, já que
ninguém inicia a construção de um edifício pelo telhado e o principiante
começava, nada modestamente, por se designar “Inspector”…
De qualquer forma, iniciou-se, assim, um longo caminho… In Mundo dos
Passatempos, 1 de Setembro de 2007 Correio Policial, 22 de Janeiro de 2021 |
PRIMÓRDIOS DA PROBLEMÍSTICA
POLICIÁRIA PORTUGUESA por DOMINGOS CABRAL (do livro com o mesmo título, a
editar) 19 CICLO REINALDO FERREIRA “REPÓRTER
X” CONCURSO DOS CONTOS
MISTERIOSOS Nº 17 TSUN WANG, O ESPIÃO DE MACAU O
comissario geral da polícia de Macau entrou no se gabinete às nove da manhã. Lamberto, um mestiço a quem o opio escanzelava, ameaçando
descarná-lo por completo, avisou: –
O sr. governador pediu
para que, logo que chegasse, fosse ter com ele ao palácio. –
Quando recebeste esse recado? –
Á’s oito. –
Não é possível ! O sr. governador nunca se levanta antes do meio-dia… O
mestiço imobilizara-se, imaterial e transparente. As suas pálpebras semi-cerradas, ainda na sonolência das últimas fumaças,
exprimia idiotia. O
comissário, pressagiando más notícias, quedou-se meditativa, a vêr se encontrava explicação para aquela chamada matinal
do governador. Depois, encolhendo os ombros, veio tomar o yedrow
indígena que estava ao seu serviço. E tocando ao de leve com o stick no china que puxava o carro, ordenou: –
Ao palácio do governador… E corre, porque tenho pressa… * Nesse
ano de 19!... era governador de Macau um coronel
rubicundo, de esferico craneo
e dotado de bigodaça, out’rora frizada
a kaleer, e que depois, ao com tacto
com a Asia, abatera as pontas hirtas, caindo em franchas
que quasi chegavam ao queixo. O Comissario foi logo
recebido e dum relance adivinhou que tempestuosa colera
estava adensada sobre a sua cabeça. O pescoço do governador parecia estoirar,
de inchado, a gola do casaco branco. –
Senhor Comissario! – exclamou. – Isto não se faz…
Não querendo sequer pensar que haja deshonestidade
no seu acto – tenho de o castigar por desmazelo e
pouca atenção ao cumprimento dos deveres do seu cargo. O
comissario pestanejou, esbracejou – sem compreender a causa daquele –
Posso, ao menos, saber do que sou acusado? Tentando
cruzar os braços, que eram curtos, sobre o peito, que era vasto como uma
andaluza, o governador fixou o comissario com um olhar, ao princípio
relampagueante, e que depois foi, pouco a pouco, suavisando,
até á calma: O
comissário relembrou… Tsun-Wang, banqueiro chinês
de grande cotação em Hong-Kong, alcunhado de “Tuniang”
por ter a mão direita numa horrível mutilação, não passava de um espia, ao
serviço dos inimigos da colónia portugueza. As suas
amiudadas viajens a Macau traziam sempre a
premeditação de uma proeza nefasta. Houvera uma denuncia,
houvera provas suficientes para dar uma severa lição ao china: o Tsun-Wang, avisado a tempo de que o queriam prender,
escamoteara-se, rápido, da casa onde se hospedara. E como era natural que ele
pretendesse regressar a Hong-Kong, o mais rapidamente possível, fora
redobrado o serviço de inspecção de passaportes, e
para isso conferenciou o governador com o comissario. –
Lembra-se então das instruções que lhe dei ante-ontem ? Pois não as
soube cumprir… Estou já informado de que Tsun-Wang
embarcou ontem á tarde, mui tranquilo, seguro de que ninguém o incomodaria… E
o comissario, empalidecendo, perguntou: –
Deixaram-no passar? –
Pudera… Os seus subordinados e os meus de nada desconfiaram. Primeiro, poucos
são os sinaes fisionómicos que o podem distinguir
de qualquer outro china da sua categoria… Depois,
segundo me informam, o espia apresentou um salvo-conduto
especial, da polícia, assinado por si… –
É falso! – bradou o comissario. Eu não assinei
nenhum salvo-conduto. Isso seria uma traição e eu sou um homem honrado. –
Não duvido da sua honradez, comissario. Mas… há quanto tempo desembarcou o
senhor em Macau? –
Há uma semana… –
Quando tomou conta do Comissariado? –
Há tres dias… –
Bem vê… Desconhece a imaginação subtil com que estes chinas
tecem os seus ardis. Creio que não assinou, conscientemente, nenhum
salvo-conduto – mas Tsun-Wang teve a ousadia de ir
pessoalmente ao seu gabinete e conseguir que o senhor assinasse o documento
sem dar por isso… –
Mas é impossível, sr. governador
! Eu não sou cego: eu não estou louco – e garanto-lhe que não assinei o
salvo-conduto de Tsun-Wang… –
Desmentir a evidencia – é um disparate. Tenha calma
e vamos vêr se fazemos luz neste misterio. Desde que tomou conta da polícia, quantos
documentos teve de assinar? –
No primeiro dia, limitei-me ao estudo do meu cargo. Só ontem trabalhei no
expediente… –
Recebeu visitas? –
Sim… Quatro… –
E o que queriam esses visitantes? –
Um deles era europeu e vinha cumprimentar-me em nome da Câmara do Comercio.
Os tres restantes eram chinezes.
O primeiro, comandante de um barco de vela, um china
franzino, com mãozorras desproporcionadas, mãozorras de marítimo luzitano, vinha solicitar a liberdade de um marinheiro,
preso por uma insignificância… –
E o senhor assinou a ordem de soltura? –
Assinei! O segundo era um advogado chinez, vestindo
o traje tradicional, todo de negro, de luvas negras, barrete negro, que vinha
pedir-me licença para visitar os presos da última greve… –
E o senhor assinou a licença? –
Assinei! O terceiro era um china, europanisado, com unhas polidas pela manicure,
como qualquer dandy parisiense, proprietário de um
café, próximo do porto, encerrado há um mez, por
mando do meu antecessor, em consequência de uma desordem qualquer e que vinha
solicitar-me autorização para a sua reabertura… –
E o senhor assinou a autorização? –
Assinei! O governador, absolutamente amansado, aproximou-se do comissario, e
poisando-lhe a mão sobro o ombro, disse-lhe: –
Um desses tres chinezes,
que lhe foram pedir documentos assinados por si, era Tsun-Wang.
Não lhe posso perguntar traços fisionómicos porque, para os seus olhos pouco
habituados a monotonia dos seus rostos chinos, todos lhe parecem iguaes. Tsun-Wang era homem de
variados recursos… Tanto podia vestir-se de capitão da marinha mercante, como
envergar a tôga negra e passar por advogado, como
ainda europanisar-se e dizer-se proprietario
de um café. O que não resta dúvida é que um deles obteve, graças a um truc, a sua assinatura. O informador da chegada a
Hong-Kong de Tsun-Wang,
telegrafou-me dizendo que o salvo-conduto estava assinado com o risco roxo…
Compreendo qual foi o estratagema. Uma distracção
sua – e o cavalheiro, que é hábil, como um prestidigitador, colou, sobre o
documento, um impresso da polícia e uma folha de papel químico. E o senhor,
pensando que assinava apenas um documento sem importância, estava rubricando
também o passaporte do espia… O
governador calou-se e de novo a colera ferveu no
seu sangue… É que o comissário parecia distraído, ausente… Dir-se-hia até que um sorriso lhe aflorava aos lábios
jovens. –
E inacreditável, sr. comissário,
a sua atitude… Está tão fresco como se não fosse nada consigo… E sorri… Não
me houve ? –
Perdão, sr. governador… Eu
estava a reflectir sobre as suas próprias palavras,
sobre a descrição que me fez de Tsun-Wang. E se
involuntariamente me sorri, foi porque de súbito atinei com a chave do
mistério…
–
Sim, sr. governador, Tsun-Wang só podia ser ________. NOTA – Como
habitualmente, foi mantida, nesta reprodução, a ortografia original. FALANDO DE REINALDO FERREIRA “Onde
residem o acontecimento e o perigo, está Reinaldo Ferreira. Chegou mesmo
antes, numa misteriosa presciência. E, quando os não há, o romancista
inventa-os de toutes pièces,
com tal verosimilhança, cópia de pormenores incisivos, testemunhos humanos,
que eles se criam naturalmente e passam mesmo a existir, sob a sua pena
impressionante, empolgante. Aos
vinte anos é considerado o primeiro repórter português, título que jamais ninguém
lhe arrebatará, na vida como na morte! Vale
dez jornalistas, uma Redacção inteira, a trabalhar!
Sozinho, em mangas de camisa, a gaforinha despenteada, com o eterno morrão de
cigarro ao canto da boca, do qual nem sequer esparge a cinza porque não perde
um segundo, no delírio de escrever — ele tanto faz, de ponta a ponta, um
diário de quatro páginas como uma revista de trinta e duas, enchendo-as dos
temas mais palpitantes e das imagens mais vibrantes! E
nem um cansaço, uma pausa, enlouquecido no paroxismo da alucinação criadora,
como se aquilo que escreve fosse o seu próprio sangue inesgotável a viver, a
circular, a resplandecer, vermelho e rutilante, fora do sistema arterial, num
processo inconcebível e vivissecacção! Em metralhantes
rajadas, colabora em todos os jornais. Aquela antena crepitante está sempre a
emitir e ninguém sabe, nem ele próprio, aonde vai buscar tão diabólica
resistência para suportar aquele intenso desgaste cerebral, porque a
recuperação é imediata, ilógica, anormal. A
certa altura, porém, Reinaldo Ferreira encontra um formidável adversário. Um
gigante enorme, duro, terrível, tolhe-lhe o passo. É o Repórter X. Mas,
quem é o Repórter X? Um homem de carne e osso? Um robot mecânico, na arte de
escrever? Uma realização cibernética, que substitui o indivíduo, que pensa,
labora por ele, batendo-o, contra-relógio, numa
fulminante velocidade? Nada
disso! É ele próprio, Reinaldo Ferreira, pseudónimo criado por um lapso
tipográfico no final de um seu artigo no jornal A Tarde, e que será até ao
fim de tão febril e compulsiva existência — o seu inimigo n.º 1. O pseudónimo
individualiza-se, humaniza-se e destrói Reinaldo. O ser que engendrou entra
em circulação. É um nome civil. Uma autêntica personalidade. O super repórter que bate o progenitor ocasional em todos
os combates do Jornalismo. É
a sua sombra, que nunca o deixará de perseguir na existência, até aos últimos
passos, até à morte!” (Extracto do prefácio de Artur Portela para o livro
“Memórias de um Ex-Morfinómano”, publicado em 1976
pela editora Propaganda, Lda.).
Fontes: Secção
Correio Policial, 22 de Janeiro de 2021 | Domingos Cabral Blogue Repórter de
Ocasião, 15 de Setembro de 2024 | Luís Rodrigues |
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© DANIEL FALCÃO |
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