22 de Março de 1957. É publicado, na revista “Flama”, o 1º número da Secção “O Gosto do Mistério…”, orientada por Jartur – curiosamente, por lapso tipográfico, identificado como “Mr. Dartur”.

Domingos Cabral, com 15 anos completados recentemente, responde ao problema naquela inserido – “O Táxi Misterioso”, transformando, assim, em “casamento” o “namoro” que à modalidade vinha fazendo há algum tempo, através do contacto com a Secção do “Mundo de Aventuras”, de que era leitor há alguns anos.

Sabendo, por isso, que era habitual o uso de pseudónimo, e perante a dificuldade que sentiu na escolha, rápida, de um, acabou, por associação, por perfilhar o “Inspector Aranha”. É que, naquele problema, o investigador (Marcos Dias), concebido pelo Autor (Jartur), após resolver o caso, dirige-se para o “Clube do Aranhiço”. Escolha pouco feliz, de facto, já que ninguém inicia a construção de um edifício pelo telhado e o principiante começava, nada modestamente, por se designar “Inspector”… De qualquer forma, iniciou-se, assim, um longo caminho…

In Mundo dos Passatempos, 1 de Setembro de 2007

 

 

 

 

 

 

Correio Policial, 29 de Janeiro de 2021

 

 

PRIMÓRDIOS DA PROBLEMÍSTICA POLICIÁRIA PORTUGUESA por DOMINGOS CABRAL (do livro com o mesmo título, a editar)

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CICLO REINALDO FERREIRA “REPÓRTER X”

CONCURSO DOS CONTOS MISTERIOSOS Nº 18

TINTA VERMELHA

Havia dois dias que uma chuva ininterrupta encharcava a cidade. O casario de Tarrassa parecia amolecer, como cartão dentro d’agua.

Os grevistas reuniam-se, á meia-noite, no subterrâneo do “Pára Pulg”. Um fedor a bafio e a peixe salgado empestava a atmosfera…A anciedade emudecera os lábios e empalidecera as faces de toda aquela gente. Os corações aceleravam os ritmos: os olhos, dilatavam-se, queimados de febre e de óleo; e a lua de archote, presa a uma argola ferrugenta, agitada pelo sopro do vento que vinha das frestas, ia ensanguentando os rostos que riçava.

A neutralidade especuladora da Catalunha desencadeara o temporal do sindicalismo vermelho…Lá, no norte, fuzilavam-se, atolhados em lama, os soldados da Europa; em Espanha, a grande guerra das classes v ivia nas guerrilhas das ruas escuras, nas caves húmidas e sinistras… Os patrões, bruscamente enriquecidos, caíam pelos esconsos de Barcelona e de Tarragona, trespassados pelas balas dos pistoleiros; os operarios, morriam, de mãos algemadas, executados no misterio da noite, pelos fusis da Guardia… No ano anterior duzentos industriais e sessenta trabalhadores tinham passado pelos mármores da morgue…

A greve de Tarrassa durava há tres semanas. O Sindicato unico enviara um orientador especialisado, um Hindemburga de pistoleiros conferenciar com os grévistas. Era um moço esquálido, de mãos estreitas, dentes de coupletista e voz rouca. Queria saber que atrito lhes dificultava a vitoria. E “Noi de Campana”, velho agitador, explicou:

– “Todos os patrões estão amansados… O que lhe pedimos não representa para eles grande sacrifício. Os exércitos da França e os submarinos da Alemanha, compram, por qualquer preço, o que eles produzem… Maior prejuízo lhes causam as fabricas fechadas… Eles cediam…

– ?

– A culpa de toda esta demora é de Eugenio Sampére – o do “Centro Industrial”… Esse miserável é teimoso e cruel! … Prefere perder toda a fortuna a ceder um palmo… É ele que envenena os outros patrões! É ele que os excita contra nós! É ele que não deixa acabar a greve!

O emissário do Sindicato, cerrando os dentes alvíssimos, praguejou:

– “Mára de Deus! E como se explica que vocês não tinham picado de balas esse Sampére

Calou-se o “Noi de Campanas”, buscando um conselho nos olhos dos seus camaradas. E como todos se encolhessem sob o peso da tragedia que sentiam avisinhar-se, perguntou:

– Vocês que dizem?

– Não há que hesitar! Berrou o embaixador do Sindicato… Onde aparece esse homem?...

– Quem te pode informar bem são estes tres camaradas que trabalham nas fábricas dele.

E apresentou-os:

Manolo Montaner, carpinteiro… Paco Vergasta, mecanico, e Pons, pintor…

Pons, o pintor, avançou um passo e explicou:

– Sei apenas que o patrão vive para as bandas de Carrera de Pelayo. Não creio que ele, sabendo o perigo que corre, venha á rua expôr-se a uma bala.

O “Noi de Campana” replicou:

– Não digas isso! Sampere é atrevido. Sampére não tem medo nem do diabo…

E um outro, que estava proximo, lembrou-se:

– Os patrões tiveram hoje uma reunião no Município. Deve acabar pêro das duas… Sampére assiste á reunião… Com certeza regressa sósinho a casa… Era o momento de dar o golpe…

A ideia foi aplaudida – a turba saiu, indiferente á chuva, silenciosa e macabra.

*

Postaram-se no parque próximo a “Carrera Pelayo”. Quatro espias tinham-se refugiado nos portaes da rua, para os prevenirem quando Sampére se aproximasse.

Esperaram até às quatro da manhã. De súbito trilou um apito distante…

– É ele! Murmurou o “Noi de Campana”…

E o emissario do Sindicato, afastando-se grupo, como um oficial que se prepara para comandar uma carga, indagou a meia voz:

– Quem quer abater Sampére

Ergueram-se muitos braços… Dezenas de gritos, degenerados em sussurros prudentes, indicaram ao chefe que a labareda do odio fazia crepitar todas aquelas almas… Era sinistro o espectaculo daqueles rostos crispados pelo esforço de conter, num semi-silencio, a ânsia de berrar o seu entusiasmo feroz… Dir-se-hia um exército de mudos e de paralíticos.

Assim, não! É impossível irem todos… Basta tres 

E passada revista às suas fileiras, o dirigente do Sindicato nomeou Montaner, o carpinteiro, Vergasta, o mecanico, e Pons, o pintor…

– Não podemos regatear a estes camaradas, operarios do tirano, o direito da dupla vingança pessoal e dos trabalhadores…

E os tres carrascos curvaram um pouco o busto e, separadamente, seguiram para a Carrera de Pelayo.Quando o último saia da vista dos grevistas, “Noi de Campana” observou:

– E se Sampéro consegue escapar das balas destes camaradas?

– Não escapará então das nossas! Afirmou o chefe sindicalista. Não vês que estamos a cercá-lo, cortando-lhe toda a possibilidade de retirada?

*

Caíram no tempo, lentamente, perscrutaram nas trevas. No silencio da madrugada – nem sequer se ouviam as respirações…

De subito, num tac-tac enervante, estralejaram tres tiros. O silencio, que era opaco, tornou-se mais fundo ainda… Dezenas de mãos se enclavinharam nas coronhas das pistolas…

– Morreu Sampére! – exclamou “Noi de Campana”, num alvoroço alegre.

Caminharam uns minutos e viram, junto a um portão do jardim, o corpo inanimado do patrão. Uma mancha de sangue alastrava pelo rosto, indo empoçar sobre o passeio.

*

Os grévistas voltavam de novo ao subterraneo. Era preciso orientarem-se sobre as medidas de defeza contra a milícia e contra a guardia. O sindicalista de Barcelona, como perito, botou discurso:

– Vocês dividam-se em pequenos grupos. Entrem em casa com toda a cautela… Embora todos saibamos que os denunciantes não escapam às nossas stars pode sempre haver um visinho palrador… E tratem já de brunis os fatos… Se os bufos passarem revista às vossas roupas e as encontrarem molhadas já sabem que…

A entrada brusca de um operario interrompeu o pistoleiro perito… O recem-chegado vinha ofegante, sem chapeu, com as guedelhas empapadas pela água as guedelhas empastadas pela água.

– O que foi, homem de Deus?

E o outro, quasi sem poder respirar, explicou:

– Eu ficara de vigilância, no extremo da Carrera do Pelayo… De súbito vejo o “cadáver” de Sampére erguer-se, olhar á sua volta, e desatar a correr em direcção a uma “pareja” de “guardias” que vinha da Rambla. E pela forma como lhes falava, nem ferido parecia estar… Ao princípio nem acreditei no que estava vendo… Depois… depois, compreendi o perigo… e vim preveni-los…

O chefe semi-cerrou as pálpebras e esteve, durante alguns minutos, em profunda meditação. Por fim, inchando o tórax, ordenou:

– “Noi de Campana”: vem comigo!

– Mas aonde? Inquiriu ele, amedrontado.

– Não faças perguntas. Obedece-me.

*

Com todas as cautelas aproximaram-se do local onde tinham visto, caído, o corpo do industrial. Ainda lá estava a mancha vermelha de sangue. O chefe sindicalista curvou-se, molhou um lenço; foi com ele para a luz dum candieiro; levou-o às narinas, e os seus labios crisparam-se num sorriso de apavorar:

Fômos traídos, “Noi”!

– Não é possível!

– É! Um dos tres encarregados da execução, é traidor!

– Como o sabes?

– “Isto” não é sangue; “isto” é tinta vermelha… Avisado a tempo e sem poder fugir-nos, porque estava cercado, Sampére bezuntou-se com tinta e deitou-se no chão. Os tiros foram disparados para o ar. E nós tão ingenuos que nos convencemos de que ele estava morto.

– E qual dos tres seria o traidor?

– É o que resta averiguar – para nos vingarmos.                                            

*

Tres anos depois, no terraço dum café de Barcelona, o “traidor”, terminada a narração da sua proeza, explicou-me:

– Como podia eu matar Sampére se tudo quanto era – e sou – a ele o devo! Não bastara desobedecer á ordem sindical. Era preciso salvá-lo das furias dos grevistas que o cercavam. Afastei-me dos meus camaradas, abordei-o sósinho, expliquei-lhe a situação, besuntei-o de tinta vermelha e disparei para o ar a pistola. Os meus camaradas andaram mezes a fio, manivelando os miolos, a vêr se descobriam quem era o “traidor”… E afinal, se tivessem raciocinado um pouco teriam chegado à conclusão de que o “traidor” só podia ser...

 

Quem foi o traidor?

Basta reler uma vez a descrição dos encarregados de executarem Sampére… Nessa descrição encontram a chave do mistério.

   

 

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Fontes:

Secção Correio Policial, 29 de Janeiro de 2021 | Domingos Cabral

 Blogue Repórter de Ocasião, 30 de Setembro de 2024 | Luís Rodrigues

 

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