22 de Março de 1957. É publicado, na revista “Flama”, o 1º número da Secção “O Gosto do Mistério…”, orientada por Jartur – curiosamente, por lapso tipográfico, identificado como “Mr. Dartur”.

Domingos Cabral, com 15 anos completados recentemente, responde ao problema naquela inserido – “O Táxi Misterioso”, transformando, assim, em “casamento” o “namoro” que à modalidade vinha fazendo há algum tempo, através do contacto com a Secção do “Mundo de Aventuras”, de que era leitor há alguns anos.

Sabendo, por isso, que era habitual o uso de pseudónimo, e perante a dificuldade que sentiu na escolha, rápida, de um, acabou, por associação, por perfilhar o “Inspector Aranha”. É que, naquele problema, o investigador (Marcos Dias), concebido pelo Autor (Jartur), após resolver o caso, dirige-se para o “Clube do Aranhiço”. Escolha pouco feliz, de facto, já que ninguém inicia a construção de um edifício pelo telhado e o principiante começava, nada modestamente, por se designar “Inspector”… De qualquer forma, iniciou-se, assim, um longo caminho…

In Mundo dos Passatempos, 1 de Setembro de 2007

 

 

 

 

 

 

 

Correio Policial, 28 de Maio de 2021

 

 

PRIMÓRDIOS DA PROBLEMÍSTICA POLICIÁRIA PORTUGUESA por DOMINGOS CABRAL (do livro com o mesmo título, a editar)

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CICLO REINALDO FERREIRA “REPÓRTER X”

CONCURSO DOS CONTOS MISTERIOSOS Nº 41

O RUBI ORIENTAL

Monoculo em riste, impecável no seu elegante frak que um “taileur” em voga moldara no ultimo figurino, Henrique ia contando como a vida de Madrid é intensa e alacre, daquela alacridade de arraial que tanto impressiona o forasteiro ávido de sensações.

 O comboio atravessava nesse momento uma planície extensa onde, aqui e ali, apareciam já os primeiros rebentos de primavera. Naquele compartimento luxuoso do “Sleeping-car” entravam agora, a flux, os raios do sol carinhoso que uma densa neblina até então teimára em ocultar.

A dama loira, que ouvia enlevada o descritivo pitoresco e interessante do companheiro de viajem, achou azada a ocasião de libertar-se daquele precioso casaco de peles – em que se envolvia desde que tomára o seu logar. Vinha de Paris e mostrára interesse em relacionar-se com portuguezes. Fizera-se notada, não apenas pela sua formosura estranha, mas ainda, sobretudo, por um famoso anel de platina, onde sintilava, em manchas sanguíneas, um enorme, um soberbo rubi oriental.

Além do loquaz Henrique – que vinha fazendo com aprazimento de todos, as despezas da conversa - viajavam também um velho judeu, negociante de jóias, cujos olhos faiscavam cubiça, e que já tivera duas ou três frases de entusiasmo ante o famoso rubi; um estudante de direito que se arruinára em Paris com uma artista de cinema; um capelão militar espanhol, que a intervalos fungava a sua pitada de rapé; e um funcionário aposentado do Ministério da Justiça, que facilmente se deixava atravessar pelas setas de Cupido e que dardejava as inflamadas pupilas sobre a loira dama.

– V. Ex.ª nunca esteve em Madrid? – perguntou o capelão, cedendo logar para o casaco.

– Não, mas tenciono ir lá daqui a dias.

– Oh! É uma bela cidade – acrescentou o judeu. Entretanto não encontraria lá uma jóia como essa...

– É de facto um lindo exemplar de rubi, acrescentou o estudante, dando-se ares de bom entendedor.

A conversa foi interrompida pela chegada de um novo personagem. Era um individuo alto, olhar sombrio, tez morena, aparentando 40 anos e uma longa permanência em paizes de sol ardente. Levou a mão ao chapéu á guisa de cumprimento e tomou logar ao lado da dama, precisamente em frente do funcionário aposentado.

– Qual é a estação mais próxima? – perguntou o capelão num espanhol biscainho.

– A de Cahide, respondeu solicito o estudante de direito; estamos a pouca distancia do Porto e vamos entrar num túnel.

Quasi nesse momento, de facto, o comboio entrava no túnel, mergulhando os passageiros na mais profunda escuridão. Haviam-se esquecido de acender as luzes.

Tocados da mesma impressão desagradável, calaram-se todos. As trevas infundem certo respeito! Viam passar-se de quando em quando, atravez das vidraças, as faúlhas incendiadas da locomotiva.

De súbito, écoou um grito aflictivo:

– A minha jóia… o meu rubi…

Houve um instante de pavôr! Pouco faltava para que o comboio fosse de novo banhado em plena luz; mas já as primeiras claridades, indecisas, deixavam perceber a extrema palidez daqueles rostos.

– Que foi, minha senhora? Inquiriu anciosamente o narrador das belezas madrilenas.

– Roubaram-me o anel… apertaram-me muito a mão…

Estava passado o túnel; e os passageiros, com grande espanto, notaram que o individuo de tez crestada, o ultimo entrado no compartimento, havia desaparecido!

–Não procurem mais: foi ele o ladrão – afirmou com grande alivio o velho judeu.  

* * *

Três dias depois, a policia do Porto prendia, á saída da “gare” de S. Bento, um individuo alto, acentuadamente morêno, que vinha de Penafiel. Sobre ele recaíam suspeitas de haver roubado o precioso rubi. De resto, soubera-se que tinha descido precipitadamente na estação de Cahide e que dali tomára logar num carro para a cidade donde proviera. O homem foi sujeito a largo interrogatório. Confessou ter viajado no compartimento em que vinha a dama loira, afirmando, porém, ter saído para outro, antes do roubo. Estava próxima a “gare” e só podia descer no extremo da carruagem.

A policia, porém, não se convenceu.

* * *

Nessa mesma tarde e no Hotel da Batalha, onde se hospedara, recebeu a dama loira uma carta perfumada, dentro da qual avultava um lindo anel de platina, onde se encastoava, soberbo, rubro, chispando fulgores sanguíneos, um formoso rubi oriental!

– O meu anel! Bendito Deus!

Só passada a primeira comoção lançou os olhos para a meia dúzia de linhas, traçadas com letra elegante. Diziam assim:

– “Tive a honra de viajar com V. Ex.ª. Sou jornalista. Desconfiei que o ladrão do seu anel não fosse aquele em quem recaiam as suspeitas. Dei-me ao cuidado de observar todos os nossos companheiros de compartimento. Só hoje pude avistar-me com um deles. Expuz-lhe o que pensava. Acabou, depois de muitas hesitações, por confessar-se autor do roubo... Entregou-me o anel e suplicou-me de joelhos que o não denunciasse. Prometi. Mas a V. Ex.ª não o oculto. Foi…

* * *

Quem roubou o anel...?

 

CONCURSO DOS CONTOS MISTERIOSOS Nº 42

UM BEIJO NAS TREVAS

Era a primeira vez que Mimi ia a Paris…

Paris fôra sempre para o seu espírito, desde a idade das primeiras leituras, não só a maior de todas as ambições – mas também a mais absorvente preocupação.

Nenhum prazer dos permitidos a uma mocinha da sua idade a satisfazia, desviando-a da ideia fixa da grande capital… Podiam os pais levá-la com frequência aos teatros, aos cinemas… Podiam comprar-lhe pirâmides de romances ou arruinarem em soirées e festanças… Mimi permanecia indiferente aos espectáculos, á alegria, á vida: e só quando a peça, o filme ou o livro evocavam Paris – é que o seu rosto se desanuviava um pouco e um sorriso de dôce acalmia vinha substituir a tristeza que se afivelára á sua mocidade.

– Isso são manias que se te meteram na cabeça – exclamava, ás vezes, o sr. Lopo de Menezes, autor daquela embruxada boneca cheia de encantos que era Mimi. Paris há-de ser como o Porto ou como Braga – maior, mas talvez menos belo…

– Não digas isso, papá! – protestou Mimi, acalorada. Tem lá comparação! Os boulevards, os Campos Elísios, a E’toile, a Concórdia, os museus, os teatros, os armazéns, a animação, o Luna Park… Oh! O Luna Park!

Luna Park sobretudo alcançava o zenith da sua coriosidade. Fôra por ali que lhe entrara n’alma a semente da tentação… Tinha vindo parar-lhe às mãos uma colecção de postaes com os divertimentos do Luna Park: a montanha-russa, o water-chut, o cilindro-mágico, as ondas de aço. Todas as diversões americanas do Luna Park tinham, para o seu sonho, o encanto de uma montra recheada de brinquedos…

E um dia o sr. Lopo de Menezes acabou por ceder:

– Está bem! Iremos a Paris…

* * *

Mas a transigência do sr. Lopo de Menezes era muito menos desinteressada do que podia parecer, á primeira vista…

Mimi ia já para os vinte anos – e não houvera forma ainda de a fazer encarar a sério a ideia do casamento. Aquela obsessão de Paris não lhe deixava espaço para pensar no futuro.

Três eram os pretendentes escrupulosamente seleccionados pelo pai: Flavio, primo ainda de Mimi, a terminar a cadeira de direito – baixinho, franzino e poeta; Alexandre, engenheiro formado na Bélgica, educado pelos processos sportivos das escolas do Norte, alto, agigantado, flexível e musculoso; e Alberto, miudito, pretencioso, que trouxera de Coimbra fama de estúrdio, mas que se regenerara ao iniciar a clínica em Lisboa…

O sr. Lopo de Menezes formára a sua caravana até Paris, com a filha e com os três aspirantes ao amor de Mimi…

– Lá em Paris – pensava o pai – a pequena há-de perder esta frieza e decidir-se por um deles…

* * *

Havia quinze dias que a caravana desembarcara no Quai d’Orsay e que, guiada por Mimi, como por um sábio cicerone, tinha sido colhida pelo vértice da alegria parisiense… De manhã muito cedo já estavam a pé e só se deitavam de madrugada…

Contudo, Mimi continuava a mostrar-se insociável – e indiferente às galanterias e suspiros dos seus pretendentes… O que ela queria era divertir-se… era viver em Paris. O resto, não lhe interessava.

Uma noite, decidiram-se a ir até ao Luna Park

– Com uma condição – impôz Mimi. É que eu hei-de andar em todas aquelas diversões…

O pai cedeu, como de costume… Assim giraram nos ”fauteuils do Diabo”; navegaram nas “ondas de aço” – até chegar a vez á Montanha Russa.

O sr. Lopo não os quis acompanhar – assustado com a cara que faziam os que por lá andavam… Tomaram um vagon miniatural e descoberto, só para eles.

O vagon era de quatro bancos… No da frente, ia o chauffeur; e logo a seguir Mimi; o terceiro ia vazio, e no último sentavam-se os três pretendentes: Flávio, Alexandre e Alberto…

O vagon despenhou-se por uma ladeira de ferro, de vinte metros de alto – para galgar, na mesma fúria, outros trinta, e tornar a despenhar-se por outra ainda mais alta… O vento que provocava aquela velocidade furiosa, gelava as faces dos viajantes que iam, quasi sem respirar, com os pés vincados no chão e as mãos enclavinhadas numa trave metalica

Mas a tournée era longa… E de tempos a tempos, aparecia um túnel de cartão scenografado, escuro como breu e de tecto tão baixo que o chauffeur, antes do vagon ser engolido pelo bucal, gritava:

– Não se levantem agora… Seria perigoso…

Ora foi durante a passagem por um desses túneis em trevas que Mimi sentiu cantar-lhe nas faces um furtivo beijo…

* * *

No primeiro momento julgou que tinha sido impressão sua… Mas logo no tunel  seguinte – o beijo repetiu-se. E quando voltaram á luz dos arcos voltaicos Mimi franziu o sobr’olho voluntarioso e a custo conteve a ira…

Quem ousára beijá-la oculto pela escuridão… O chauffeur não podia… Ela bem sentira a cabeça ousada roçar-lhe pelos ombros… Portanto o atrevido era um dos três pretendentes, sentados no outro banco…

E disposta já a castigar o insulto, pôz-se a reflectir para não cometer a injustiça de enxovalhar um inocente…

Voltou o rosto e viu os três, muito calados, mui socegados, com o ar mais despreocupado deste mundo… E de rosto voltado notou que entre ela e o ultimo banco, havia um banco vazio a separar… Aquele que a beijara tivera de debruçar-se sobre as costas do banco vazio, estender o busto e alongar o pescoço até alcançar as suas faces… E logo que este gráfico do delicto se reconstituiu na sua mente, Mimi murmurou:

– Deixa estar, meu patife, que te julgas impune – mas eu sou mais esperta do que tu julgas.

E quando o vagon voltou ao caes de partida, Lopo de Menezes ouviu como que o estralejar de um foguete.

Era Mimi que estava esbofeteando o

* * *

Quem beijou Mimi foi…

 

Nota: Na transcricção destes dois contos/problemas foi mantida a grafia da época (1927).

 

 

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Fontes:

Secção Correio Policial, 28 de Maio de 2021 | Domingos Cabral

 Blogue Repórter de Ocasião, 15 de Junho de 2025 | Luís Rodrigues

 

© DANIEL FALCÃO