22 de Março de 1957. É publicado, na revista “Flama”, o 1º número da Secção “O Gosto do Mistério…”, orientada por Jartur – curiosamente, por lapso tipográfico, identificado como “Mr. Dartur”.

Domingos Cabral, com 15 anos completados recentemente, responde ao problema naquela inserido – “O Táxi Misterioso”, transformando, assim, em “casamento” o “namoro” que à modalidade vinha fazendo há algum tempo, através do contacto com a Secção do “Mundo de Aventuras”, de que era leitor há alguns anos.

Sabendo, por isso, que era habitual o uso de pseudónimo, e perante a dificuldade que sentiu na escolha, rápida, de um, acabou, por associação, por perfilhar o “Inspector Aranha”. É que, naquele problema, o investigador (Marcos Dias), concebido pelo Autor (Jartur), após resolver o caso, dirige-se para o “Clube do Aranhiço”. Escolha pouco feliz, de facto, já que ninguém inicia a construção de um edifício pelo telhado e o principiante começava, nada modestamente, por se designar “Inspector”… De qualquer forma, iniciou-se, assim, um longo caminho…

In Mundo dos Passatempos, 1 de Setembro de 2007

 

 

 

 

 

 

Correio Policial, 6 de Novembro de 2020

 

 

PRIMÓRDIOS DA PROBLEMÍSTICA POLICIÁRIA PORTUGUESA por DOMINGOS CABRAL (do livro com o mesmo título, a editar)

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CICLO REINALDO FERREIRA “REPÓRTER X”

Prosseguindo na reprodução dos denominados “Contos Misteriosos”, com que Reinaldo Ferreira – “Repórter X”, deu início em 1927, em Portugal, à problemística policiária, inserimos hoje mais um desses Contos – o 6.º - que o jornal “Primeiro de Janeiro” publicou no dia 6 de Fevereiro daquele referido ano.

 

 

CONCURSO DOS CONTOS MISTERIOSOS Nº 6

A CAIXA DAS TINTAS

… Eu também andei no colégio – embora alguns leitores o duvidem ante as estravagâncias da minha sintaxe. Mas ao contrário do que sucede à maioria dos mortaes não relembro, com doce nostalgia, esses tempos. O colégio onde me internaram, foi, para a minha natural dispneia d’alma, o que a Penitenciária deve ser para os condenados a pena maior.

O meu colégio chamava-se “Francez”, não sei porquê… Era um casarão lantejoilado com azulejos que refulgiam como esmeraldas, quando o sol lhes batia de chapa. Entrei para lá, aos nove anos; saí aos quinze… O meu primeiro curso foi concorridíssimo… Uns quarenta rapazes, talvez. Mas como o colégio entrou em decadência, poucos foram os que lhe mantiveram fidelidade. No último ano – lembro-me perfeitamente – o nosso curso compunha-se apenas de oito alunos. Oito alunos e doze professores!

Na camarata em que eu dormia ficavam cinco alunos. Leonardo Machado, um “aficionado” pelo “sport”, que jogava o “football” com as melancias que escamoteava da sala de jantar; Rui Cardoso, um negro, filho dum ricaço do interior de S. Tomé, que abusava cruelmente dos mais novos e que era odiado pelos condiscípulos; Mário Marques, um gastrónomo, mal encarado, que mastigava, em silencio, de manhã até à noite, e que só abria a boca para se queixar da deficiência de alimentação; Diogenes da Silva, um brasileiro com pretenções de Petroneo, o único que se perfumava no colégio – e eu.

Como cursávamos o último ano, fazíamos uma vida absolutamente á parte dos outros alunos. Considerávamo-nos já doutorados e lançados na vida.

O curso começou em Outubro – e foi em Janeiro, de regresso das ferias de Natal, que se iniciou o episodio a que me vou referir. Uma manhã, ao badalar da sineta que nos arrancava do leito, Leonardo Machado, o “foot-bollista” apaixonado, alarmou-nos em grande berraria. É que lhe tinham arrombado a sua mala, que, como as de todos os outros condiscípulos, estava arrumada aos pés da cama.

– E roubaram-te muita coisa? – Indagamos.

O roubo não era importante; uns livros, uns lenços, e um pacote de chocolate. O director preocupou-se, mas não ousou fixar a sua suspeita sobre nenhum dos alunos. Uma semana mais tarde coube-me a vez… A mala arrombada – e o desaparecimento de uns botões de punho sem valor e de um pacote de bolachas.

– Existe um gatuno entre nós! Exclamou Mário, o tal, o gastrónomo, o que parecia ter substituído o estômago por um outro de avestruz.

Era verdade! Mas quem seria o gatuno? Entreolhamo-nos, sem desconfiança… Todos nós éramos filhos de famílias decentes e coisa alguma podia despertar uma suspeita sobre os camaradas… Havia uma excepção: o Ruy, o negro – colegial dos mais rebeldes, com um longo activo de patifaria e garotices. O director acusou-o; ele não teve esperteza para se defender – e foi expulso e recambiado para a Ilha de S. Tomé, de onde nunca devia ter saído.

Respiramos, convencidos de que a serie de roubos da nossa camarata terminara. Mas não foi assim. Nos princípios de Março, o gastrónomo Mario veio avisar-nos de que também tinha sido roubado, numa camisa e numa caixa de aparos.

– Mas a tua mala não está arrombada! – disse Diogenes.

– Não. É que eu, confiado como estava em que o negro fosse o ladrão – deixei-a aberta…

Todos nos convencemos de que o negro fora injustamente expulso – e tomamos as nossas precauções. O único a quem faltava a visita do gatuno era o brasileiro Diogenes. Combinou comigo um serviço de vigilância nocturno; perdemos noites em claro – mas de pouco valeram as nossas vigílias. Uma manhã, ao saltar para o soalho do dormitório, constatou, desesperado, que os fechos da mala tinham sido violados:

– Lá se foi uma caixa de tintas e um chouriço que trouxe de casa, no último domingo! – asseverou ele, ao dar balanço aos seus haveres.

E os furtos continuaram, mezes e mezes, pelo silêncio da noite, sem que nenhum de nós conseguisse surpreender o misterioso ladrão. O director e o vigilante do colégio armaram ciladas; postaram-se em vigílias cautelosas: de nada lhes valeu. Quem quer que fosse era habilidoso, prudente – e só operava com toda a segurança.

Todos nós estávamos convencidos de que o gatuno dormia na camarata. E uma mútua desconfiança começou a erguer uma muralha entre nós os quatro, até então tão unidos, numa íntima camaradagem.

Só no mez de Julho – o último do curso, é que consegui descobrir o gatuno do Colegio Francez. Foi na aula de História, dirigida por um velho gago que tinha especial simpatia por Carlos Magno. Distraíra-me a fumar um magro cigarro – e entrara na classe dez minutos atrasado. E para que o professor não me censurasse esse atrazo, avancei nos bicos de pés, para uma carteira da última fila. Amontoei os livros à minha frente, e, saboreando ainda o gosto do tabaco, deixei que a minha imaginação vogasse ao acaso, sem me importar com o discurso sobre as virtudes de Carlos Magno que o mestre fonografava abancava à secretaria.

Ao meu lado estava o outro aluno que a minha distração não deixara que eu visse quem era. As suas mãos estavam entrelaçadas, sobre o tampo da carteira. O meu olhar deslizara, inconscientemente, e fôra nas mãos do companheiro. Os seus dedos estavam todos manchados de tintas – de tintas de várias côres. No primeiro momento não me despertou grande curiosidade. Depois, de súbito, acudiu-me ao espírito a recordação dos roubos na minha camarata – sobretudo da mala de Diogenes… Ouvi dentro de mim a frase: – Roubaram-me uma caixa de tintas e um chouriço que trouxera de casa, no domingo!

… E as mãos enlaçadas, como que se tivesse adivinhado os meus pensamentos, desenlaçaram-se e esconderam-se, rápidas. Ergui então os olhos, numa emoção de quem vai entrar no âmbito do mistério, e vi, mui pálido, sentado a meu lado, o condiscípulo, o ladrão, o

Quem era o ladrão do Colégio Francez?

Raciocinem, releiam as palavras sublinhadas; vejam qual é o artigo roubado que se repete em todos os furtos, vejam quem é, entre os colegiaes da camarata, aquele que tinha mais interesse em roubar o tal artigo.

*

(Nota – Nos “Contos Misteriosos” que estamos a reproduzir é mantida a ortografia da época em que foram escritos – 1927.)

   

 

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Fontes:

Secção Correio Policial, 6 de Novembro de 2020 | Domingos Cabral

 Blogue Repórter de Ocasião, 31 de Março de 2024 | Luís Rodrigues

 

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