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1. – INTRODUÇÃO | Verbatim 2. – O VELÓRIO DO TÓ GULA | A. Raposo 3. – JOGOS DE PODER | Detective Jeremias 4. – O INTERROGATÓRIO | Arnes 5. – MAS, AFINAL, QUEM MATOU O TÓ GULA? | Inspector Boavida 6. – NÃO ATA NEM DESATA E COMPLICA-SE | Verbatim 7. – E O MISTÉRIO ADENSA-SE… | Rigor Mortis 7,5. – SETE E MEIO | A. Raposo 8. – A VIDA CONTINUA | Búfalos Associados 9. – FINAL | Zé |
EPISÓDIO 3. JOGOS DE PODER Detective Jeremias
A imobilidade criada
parecia a etapa final de um insólito jogo de Macaquinho do Chinês, embora
neste caso aos olhos de todos, excepto do defunto e da desfalecida, o jogador
no comando se afigurasse ao King Kong. A cena durou um segundo, muito menos
do que a sua descrição, foi desencadeada por um urro proferido pela figura
mastodôntica, que bloqueava por completo a estreita porta da sobrelotada sala
de velório. “POLÍCIA JUDICIÁRIA! NÃO VAI NINGUÉM PARA A RUA, NEM PARA A PUTA
QUE OS PARIU! ESTÃO TODOS PRESOS!” Nesta insólita
ocorrência, a novidade não estava na presença da Judite, na ameaça de prisão
– poucos eram os que nunca tinha ido de cana – ou nas injúrias verbais, a
novidade estava na ousadia da contra ordem, à ordem de Novena. Nunca ninguém
na vida tivera o arrojo de desobedecer ao padre. O que ele dizia era lei para
a gentes da zona: crentes, agnósticos e ateus, todos estremeciam perante a
excomunhão. Ficou suspenso
o velório, o morto foi apreendido e afinal o que o gigantesco inspector
vociferara só se cumpriu parcialmente: foram presos, mas depois de saírem
todos para a rua. Quase todos, menos dois, porque Novena safou-se, não fosse
ele um digno representante da Igreja, ficou a aconchegar as mamas da Isaura,
que tardava – e se tardava… – em recuperar os sentidos. O Largo de São
Paulo estava silencioso e deserto. Quase silencioso, quase, porque o ganido
metálico do carro eléctrico nocturno, da Carris de Ferro de Lisboa, furava os
tímpanos daqueles que não tivessem o canal auditivo completamente obstruído
por cerúmen. Quase deserto, quase, porque se bem que os amigos do falecido
tivessem dado à sola, em corrida acelerada, num jogo de Toca e Foge, ou
melhor de Esconde Esconde, perante a chegada da polícia, apareceram duas
carrinhas de transporte e seis agentes com excesso de peso. Não fosse a ordem
do hercúleo inspector Anjinho – nada como fazer jus ao nome! – para não se
afastarem da entrada da igreja, estariam todos, polícias e acompanhantes do
velório a brincar à apanhada pelas ruas e travessas do Cais Sodré. A escassez de
espaço nas carrinhas, pardas e sem matrícula, determinou a redução do número
dos detidos. Os agentes procederam a uma criteriosa escolha das criaturas
presentes, aplicando com rigor matemático uma versão adaptada “Anani, ananão
/ Ficas TU e TU não”. Depois de metidas as sardinhas nas latas, as carrinhas
seguiram em alta velocidade – 34,6 km/h – em direcção a local desconhecido,
porque a sede na Gomes Freire só seria inaugurada a 15 de Setembro de 1958,
com pompa e circunstância. Chegados ao
local desconhecido, apartaram os homens das mulheres, por causa das
indecências. Foram libertados de imediato aqueles que tinham em seu poder o
cartão de informador da PIDE, ou provassem ser adeptos do Benfica, servia
Cartão de Sócio ou de praticante de qualquer modalidade. Os restantes foram
revistados, identificados, numerados e fotografados de frente e de perfil,
para justificar a aquisição da Leica. Ficaram a aguardar interrogatório. Ao mesmo
tempo, no seu gabinete de trabalho, o inspector Anjinho tentava pôr as ideias
em ordem. Tivera uma semana para esquecer e o homicídio do Tónecas fora o
golpe final. É que o rapaz além de guarda-redes, fadista e engatatão
encartado era também, a mando de Anjinho, um espião, um agente não
oficializado, especializado na recolha de informações no meio local e entre
os americanos de passagem. Agora Anjinho
tinha um dilema, ou melhor, um trilema, entre as manápulas: Tónecas fora
vítima de crime passional, de espionagem, ou tudo não passara de um mero
acidente. Antes de dar
início ao interrogatório dos detidos, os nossos conhecidos da Rua das Trinas,
Anjinho deu a si próprio uma pausa. Refastelou-se na cadeira mandada fazer
por medida, preparou um cachimbo. Fumou, passou os olhos globosos pelo Diário
de Lisboa do dia, “Quinta-feira, 21 de Junho de 1951”, a primeira página
anunciava a data limite para a apresentação das candidaturas à presidência da
República, pois… finado o Carmona, tal como o Tó Gula, mas sem as facadas. Anjinho
suspirou, fazendo estremecer a papelada na secretária. Iria começar com os
interrogatórios que durariam até de madrugada. Num esforço de auto motivação,
honrando as suas pretensões intelectuais, afirmou entre dentes: “Alea jacta
est, os dados estão lançados, ou será que é Veni, vidi, vici?”. Fontes: Blogue Repórter de
Ocasião, 26 de Outubro de 2025 O CASO (sério) DA
RUA DAS TRINAS, Edições Fora da Lei, Ano de 2018 |
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© DANIEL FALCÃO |
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