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1. – INTRODUÇÃO | Verbatim 2. – O VELÓRIO DO TÓ GULA | A. Raposo 3. – JOGOS DE PODER | Detective
Jeremias 4. – O INTERROGATÓRIO | Arnes 5. – MAS, AFINAL, QUEM MATOU O TÓ GULA? | Inspector Boavida 6. – NÃO ATA NEM DESATA E COMPLICA-SE | Verbatim 7. – E O MISTÉRIO ADENSA-SE… | Rigor Mortis 7,5. – SETE E MEIO | A. Raposo 8. – A VIDA CONTINUA | Búfalos Associados 9. – FINAL | Zé |
EPISÓDIO 8. A VIDA CONTINUA Búfalos Associados
O caso da Rua
das Trinas continuava sem solução, porque nem o agente Anjinho nem quem o substituiu
quando aquele se aposentou, conseguiram encontrar a solução para o problema
que ameaçava tornar-se interminável. Já nessa época a justiça tardava a actuar. Convenhamos que ninguém parecia estar muito
interessado em ajudar as investigações, o que não deixava de se tornar
suspeito. Parecia que havia por ali muitas pedras nos sapatos. E a vida ia
correndo sem sobressaltos de maior. Até um dia. Anjinho tinha
sido dispensado da Judite por manifesta falta de competência, sobretudo na
condução deste caso. Mas, logo após a reforma, alguém o ouviu dizer para quem
o quis ouvir: − “Ah, que se eu pudesse falar... Eu sei muito bem o que
se passou nas mortes do Tó Gula e do Quim Costa... Mas não posso dizer nada.
Só me faltava saber se foram crimes passionais, políticos ou que tinham a ver
com dinheiros... Só me faltava saber isso e o caso estava resolvido. Mas não
me deram tempo.” Como está bem de ver, ninguém ligou muito a estas afirmações
porque ninguém percebeu patavina. Para descanso de uns e revolta de outros. Uma coisa foi
sempre muito falada. O homem tinha estranhas relações. O Tóino
Coxo, que entretanto arranjara um emprego de arrumador no cinema Chiado
Terrasse, um dia em que estava à porta a tomar ar, viu passar o Anjinho e
perguntou-lhe: −“O que anda a fazer por aqui, senhor agente?” – “Ah, vou ali
ao fundo da rua, à sede do meu clube pagar as cotas” − disse o outro
meio atrapalhado. – “Clube?
Aqui?” – “Sim. Aqui
não é a rua António Maria Cardoso?” – “É sim, vá
lá, vá, que eu já sei qual é o seu clube...” E o outro raspou-se. Algumas coisas
se tinham passado no bairro. Foi claro para toda a gente que, de tantas vezes
que se encontraram nos corredores da polícia ao longo de meses, passou a
haver uma espécie de comunidade, feita de um misto de solidariedade e de
desconfiança, entre os habitantes da rua. Alguns vizinhos maldosos chegaram
mesmo a alcunhá-los de “O Gang das Trinas”. O mais feliz
de todos foi o presidente do União, o Sr. Euclides, bafejado pela sorte que
foi quando lhe saíram umas boas massas por ter acertado em cheio no totobola.
A princípio não quis dar mostras de ter muito dinheiro, mas quando toda a
gente percebeu que ali havia bago, desculpou-se dizendo que tinha vendido um ponta de lança ao Benfica. Qual ponta de lança? O União
não tinha ponta por onde se lhe pegasse, quanto mais ponta de lança! Até que um dia
o segredo esfumou-se assim que ele anunciou um casamento de arromba com a
Micas do Cu Grande, o qual até meteu passadeira vermelha na igreja do largo
de S. Paulo. Ela é que não teve coragem para ir de branco por causa do
falatório. Foi de verde alface. E o lauto copo de água, em que todos
estiveram como convidados, foi no Caracol da Esperança, onde agora trabalhava
a colega da Micas, a Josefa dos Prazeres. A certa altura da festa, o Euclides
já muito bem bebido, perguntou-lhe se o nome dela seria Josefa Gustava dos
Prazeres e Morais. A coisa não caiu bem, sobretudo na Micas, que estava
sempre a pau, e pregou no noivo uma tal lambada nas ventas que obrigou a
noite de núpcias a ter sido passada nas urgências do hospital de S. José.
Aliás, com o passar do tempo, toda a gente percebeu que o homem daquele casal
era a Micas, que trazia a rédea bem curta ao maridinho. Não eram poucas as
discussões em público, sobretudo no café do Arnaldo, quando depois do jantar
toda a gente ia beber a bica e ver a televisão. E um dia,
quando ela depois quatro ginjas de enfiada acusava o marido de ser um banana
e de não ter autoridade na direcção do clube,
berrou-lhe: – “Ai que se eu tivesse entre as pernas aqueles que tu tens!...”
Ao que ele respondeu: – “Segurasse-os! Teve-os lá muita vez!" Quem ficou roidinha de ciúmes com o casamento do Euclides foi a
viúva Isaura, que nunca deixara de andar com o presidente debaixo de olho.
Então depois do totobola ficou ainda mais raivosa com o homem. Ficou tão
desesperada que até resolveu dedicar-se ao teatro quando lhe chegou aos
ouvidos que na Sociedade Guilherme Cossoul andavam
à procura de uma actriz com mamas grandes para
entrar em “As Mamas de Tirésias" do Apolinaire.
Mas não passou nos testes das tetas. Quem ficou foi a Adosinda que lhe ganhou
por três centímetros cúbicos. Já sabemos que
a Isaura tinha tido duas filhas do falecido Quim Costa. Eram elas a Elvirinha e a Miquelina. A esta, como era franzinita, chamavam-lhe Micas do Cu Pequeno, por
comparação com a outra Micas. A Elvirinha viera a
casar com o Zé Torres das Finanças, bastante mais velho que ela mas que lhe
garantia trazer para casa umas gorjetas dos serviços prestados a aldrabar nos
impostos. A Albertina
tinha deixado o Esticadinho, o qual, por não ter onde cair morto, acabou a
sacar umas coroas a arrumar os carros dos deputados à frente do Parlamento,
razão porque o alcunharam de “Deputedo”. Entretanto
ela iniciou um caso com o Barbosa da Casa de Fados só que este, depois duma
enorme falência, foi obrigado a fugir daqui. Como ainda sabia dedilhar menos
mal uma guitarra, aceitou um contrato para andar embarcado a tocar na hora
dos jantares nos paquetes da Companhia Colonial de Navegação. Quem não se
via livre da doença de não conter as águas à vista de uma farda era a Dona
Umbelina. Tinha tido um namorado guarda-nocturno,
um “sereno” à moda antiga com farda, chanfalho e
tudo, mas teve de desistir de o ver à noite porque não se aguentava. Um dia
que a tinham levado no dia 9 de Abril a ver uma parada militar na Avenida da
Liberdade, a inundação foi tão grande que chegou à Tendinha do Rocio. Mas o grande
escândalo no bairro foi quando toda a gente percebeu que o padre Novena
andava enrolado com a Graça do Bico. Dizia-se à boca cheia: − “O padreca se calhar quis saber porque é que a ela chamavam
“do Bico”. E se calhar conseguiu saber. E tomou-lhe o gosto." Falta falar da
Adosinda, a inconsolável viúva do esfaqueado Tó Gula. Essa veio a juntar os
trapinhos com um professor de dança dos Alunos de Apolo que lhe andava a
ensinar o “fox-trote”. Mas o seu sonho era vir a cantar no Festival da
Canção. Até já tinha uma canção: “Trinas, tricas, meu amor”. Mas o bailarino
passava a vida a dizer-lhe: − “Ó mulher deixa-te disso que tu desafinas
que nem um chicharro. Tu cantas em Ró maior!” E foi exactamente nos Alunos de Apolo, numa noite de Janeiro
durante a festa de aniversário da Adosinda para que todo o Gang
das Trinas tinha sido convidado, que a coisa se deu. Ninguém faltou, a não
ser os mortos e o embarcado Barbosa. Até os dois travestis, que agora eram
seguranças do presidente de um clube da segunda divisão, lá estavam. A certa
altura, numa pausa da música do conjunto “Os Biltres da Picheleira”, veio à
baila a história dos crimes que há quase dez anos estavam por resolver. Os
suspeitos eram mais do que muitos. A começar pelo João da Bica que tinha sido
o último a ver o morto com vida. Choveram acusações de uns lados e de outros,
até que o Anjinho, numa atitude digna de um verdadeiro Poirot,
disse: − “Querem saber toda a verdade? Pois eu vou revelar tudo o que
sei e já não é sem tempo!” Mas nesta
altura rompeu pela sala adentro o agente Faustino que tinha ido urinar,
gritando como uma cabra: – “Que grande tragédia! A Dona Isaura está ali morta
na casa de banho, enforcada com a corrente do autoclismo!” Fez-se um
silêncio sepulcral. Ninguém ousava mexer um dedo, nem soltar um ai. E no meio
do silêncio vibrou a voz rouca do baterista do conjunto que tinha ido ao bar
fumar um cigarro: − “Apareceu agora ali na televisão o locutor a dizer
muito agitado que um grupo de terroristas assaltou um paquete português que
navegava nas Bahamas!” – “Ai o meu
Barbosa que anda lá embarcado pelas Caraíbas! Como é que se chamava o
paquete?” – perguntou alarmada a Albertina. O baterista
ainda respondeu, mas ninguém ouviu porque toda gente estava já a correr para
a casa de banho numa histeria colectiva. Fontes: Blogue Repórter de
Ocasião, 7 de Dezembro de 2025 O CASO (sério) DA
RUA DAS TRINAS, Edições Fora da Lei, Ano de 2018 |
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© DANIEL FALCÃO |
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