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1. – INTRODUÇÃO | Verbatim 2. – O VELÓRIO DO TÓ GULA | A. Raposo 3. – JOGOS DE PODER | Detective
Jeremias 4. – O INTERROGATÓRIO | Arnes 5. – MAS, AFINAL, QUEM MATOU O TÓ GULA? | Inspector Boavida 6. – NÃO ATA NEM DESATA E COMPLICA-SE | Verbatim 7. – E O MISTÉRIO ADENSA-SE… | Rigor Mortis 7,5. – SETE E MEIO | A. Raposo 8. – A VIDA CONTINUA | Búfalos Associados 9. – FINAL | Zé |
EPISÓDIO 7. E O MISTÉRIO ADENSA-SE… Rigor Mortis
– Mete a mão
no bolso e põe-te a mexer! – berrou Anjinho. Apanhado com a
boca – melhor, a mão – na botija, Faustino deu um salto e saiu porta fora. – Então
diga-me cá, porquê tanto choro por aquele traste do Tó Gula? – Não é por
ele, não, é pela mulher dele, a Adosinda! A minha melhor amiga! O Tó era um
traste, sim, mas agora como é que vai ser com a Adosinda, ainda tão novinha? – Parece que o
seu marido andava às voltas com essa Adosinda, não? Isaura
levantou os olhos e mirou o Inspector. – Não senhor,
não acredito nisso! – Então como é
que ele sabia que as mamas dela estavam sempre quentinhas?... – Ó senhor!
Não sei quem é que lhe disse isso, se calhar até foi o Quim… Mas o meu Quim
não fazia uma coisa dessas! Dei-lhe com o candeeiro nos cornos quando ele
disse isso, é verdade, mas nem ele era capaz disso, nem a Adosinda o deixava
fazer! – Então quem é
que acha que matou o Tó Gula? – disparou-lhe Anjinho, – Ó senhor! –
repetiu a Isaura. – Como é qu’eu posso saber? – Foi o Quim?
– segundo tiro do Inspector. – Ai senhor! O
meu Quim não era capaz de fazer isso! Ele não gostava nada das troças que o
Tó andava sempre a fazer dele, mas matá-lo? Não senhor! Um dia era capaz era
de lhe dar uma sova das grandes! Percebendo que
da Isaura não iria tirar nada de jeito, Anjinho chamou o agente Faustino e
disse-lhe para trazer a Micas e pôr a Isaura em liberdade. O Faustino
trouxe a Micas do Cu Grande para o gabinete do Inspector Anjinho.
Prudentemente, que a mulheraça metia respeito, nem lhe tocou, mas os olhos
não se desviavam do seu traseiro monumental. – Sente-se… Se
couber nessa cadeira… – disse Anjinho, arranjando os papéis na secretária. – Diz-me lá o
que sabes das “bifas”. E quero a história toda, hein? A Micas olhou
de frente para Anjinho, com ar de desprezo. – ‘Tás pr’aí
todo empertigado, mas ‘inda nã percebeste nada, n’é? As tais “bifas” sã dois
portugas que nã têm onde cair mortos. Andã p’los bares a f’zer de espiões só
p’ra ver se catrapiscã ‘mas buchas e ‘mas jolas. Os maus da fita sã os que
mandã neles, pá! Anjinho não
conseguiu perceber de que raio de sítio vinha o sotaque da Micas. Imaginou
que a longa permanência da mulher por terras de França durante a guerra lhe
tinha afectado o falar. E se calhar também o juízo… – E quem é que
manda neles? O gajo da PIDE? – Pois… –
Micas riu-se, e todo o seu corpo abanou como gelatina. – O gajo da PIDE, o
boche, o padreca, quem quer que lhes dê ‘mas moedas! – Troca lá
isso por miúdos! – ‘Tá bõ… Se
tu for’s ter cõ eles e lhes der’s uns troc’s para que façã de espiões, eles
também nã se fazem rogados. ‘Té armã uma de pancadaria, se q’ser’s! – Naquela
noite em que o Gula apareceu morto e tu ouviste as “bifas” a fazerem de
espiões nos lavabos, quem é que lhes tinha pago para isso? – perguntou
Anjinho, já desesperado. – Sê lá! Como
eles ‘tavã a falar ‘quele inglês de Quadrajais, s’calhar os camones! “Isto não vai
mesmo dar a nenhum sítio”, rosnou Anjinho para si mesmo. – Faustino!
Leva-me esta gaja para a pildra e fecha a loja! Se alguém me procurar diz-lhe
que fui para casa. Mas amanhã logo pela manhã quero cá o raio do padreca, dê
lá por onde der! Pegou no
chapéu, atirou a gabardine sobre o ombro esquerdo e saiu do gabinete, batendo
com a porta. Estacou na
sala de espera, vendo que ainda lá estavam alguns dos que tinham sido
arrebanhados no velório e não tinham chegado a ser interrogados. “Para quê?!”
rosnou, “para me dizerem o mesmo que os outros?!” – E mandem-me
estes gajos para casa, já! Frustrado e ao
mesmo tempo furioso, consigo mesmo e com tudo e todos, Anjinho começou a
descer a rua. A meia hora de caminho até casa ia fazer-lhe bem, pensou, apesar
do calor. O dia tinha estado abafado, próprio de Junho, mas sempre a ameaçar
chuva. – Raios partam
este tempo! Enquanto
andava, tentou pôr os pensamentos em ordem. “As tais
“bifas” se calhar sabem de alguma coisa, para dizerem o que disseram precisamente
na noite em que o Gula foi morto. Mas não parece que tenham sido elas – eles!
– a matá-lo. Se nalguma coisa a Micas era boa, era a perceber o tipo das
pessoas. E ela parece certa que aqueles dois eram só uns paus mandados de
baixo calibre! Quem é que lhes terá pago naquela noite?! Terá sido uma
história de espiões? Ou uma vingança de algum dos muitos que olhavam de
atravessado para o Tó Gula? O Quim Costa, o João da Bica, o Toino Coxo, sei
lá!... E o Novena? O padreca sabia das aventuras femininas todas do Gula,
isso era seguro, pelas confissões que lhe fizeram as mulheres do bairro…
Teria decidido pôr um ponto final nesse arrazoado?... Ou estaria enrolado com
a PIDE?! Não seria caso único…” “Mas porque é
que a PIDE haveria de querer o Tó morto?! Mesmo sabendo que o gajo trabalhava
para mim, a verdade é que andávamos todos ao mesmo! Se calhar o Tó também
lhes fazia algum arranjinho, sem eu saber… ‘Tá bem, eles não gostaram de
saber que o Tó servia dois patrões, mas os dois patrões eram da mesma casa, carago!
Ou será que o Tó servia ainda outro patrão?...” Ao atravessar
a rua ouviu um grito, ao mesmo que se dava conta de um enorme chiado.
Virou-se e viu um carrinho de rolamentos que descia a rua a toda a
velocidade, com dois miúdos empoleirados. Mesmo à justa, deu um salto para
trás, enquanto o carro passava a rasar, com os miúdos em altas gargalhadas… – Raios partam
estes putos! Respirou fundo
e olhou à volta. Várias pessoas olhavam para ele embasbacadas, as mulheres
com a mão na boca. Tinha-se safado à justa de um trambolhão dos grandes! Uma dessas
pessoas, a uns quinze metros atrás, chamou-lhe a atenção. Gabardine cinza
vestida, fechada, com o cinto bem apertado apesar do calor, mãos nos bolsos,
chapéu mole puxado para a testa, mal se vendo os olhos. Mesmo assim, notou as
feições duras, fechadas. Parecia um tipo saído directamente das páginas de um
romance de Dashiel Hammett. Como todos os
outros, olhando para ele. Um segundo
depois o homem virou-se e afastou-se em passo rápido, virando a esquina e
desaparecendo da vista. – Mas que
diabo?!... Fontes: Blogue Repórter de
Ocasião, 23 de Novembro de 2025 O CASO (sério) DA RUA
DAS TRINAS, Edições Fora da Lei, Ano de 2018 |
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© DANIEL FALCÃO |
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