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1. – INTRODUÇÃO | Verbatim 2. – O VELÓRIO DO TÓ GULA | A. Raposo 3. – JOGOS DE PODER | Detective
Jeremias 4. – O INTERROGATÓRIO | Arnes 5. – MAS, AFINAL, QUEM MATOU O TÓ GULA? | Inspector Boavida 6. – NÃO ATA NEM DESATA E COMPLICA-SE | Verbatim 7. – E O MISTÉRIO ADENSA-SE… | Rigor Mortis 7,5. – SETE E MEIO | A. Raposo 8. – A VIDA CONTINUA | Búfalos Associados 9. – FINAL | Zé |
EPISÓDIO 5. MAS, AFINAL, QUEM MATOU O TÓ GULA Inspector Boavida
Apercebendo-se
de que falara alto demais para quem trabalhava num meio sujeito a um
permanente escrutínio subterrâneo, não se sabendo nunca quem conspira contra quem,
sussurrou entre dentes: “Isto é coisa de camones, bifes, bolcheviques, boches
ou… de judeus”. E, no mesmo tom, prosseguiu: “Muitos deles ficaram por cá,
com medo de serem acusados de traição nas suas comunidades devido ao
posicionamento adotado face à guerra que ainda mal acabou. E outros mantêm-se
entre nós por razões políticas ou porque não têm para onde ir.” Para o
Anjinho, este caso poderia ter alguma relação com as próximas eleições para a
presidência da República. Com a morte do general Carmona, os opositores ao
regime desenvolviam contactos com os países aliados e com o novo Estado
nascido da revolução de outubro de 1917 no sentido de obterem apoios a uma
candidatura hostil ao ditador luso, no que eram apenas timidamente
bem-sucedidos, por via não diplomática. A estes juntavam-se alguns dos judeus
mais esclarecidos, que não perdoavam a Salazar a exoneração do cônsul
Aristides de Sousa Mendes, que salvara muitos deles da chacina a que estavam
praticamente condenados, dando uma espécie de apoio não declarado a tudo o
que fosse passível de derrubar o ditador. Por sua vez, os alemães faziam o
jogo contrário, pugnando nos meandros da política local por uma candidatura
presidencial que fosse fiel às ideias de Mussolini e Hitler. Salazar andava
seriamente desconfiado de que toda essa estrangeirada, que nessa altura
ficara por cá, estaria metida com os comunistas e com outras forças
opositoras ao seu poder tirânico, que acabaria por sobreviver durante perto
de 48 anos. Por essa razão, a PIDE não os largava e exigia que a Judite desse
uma ajuda na defesa e salvaguarda da integridade física do candidato
presidencial da União Nacional. Ao inspetor Anjinho coube, entre outras
coisas, dar uma olhadela pelo verdadeiro bas fond de Lisboa, no eixo Madragoa-Cais do Sodré-Bairro
Alto, por onde a estrangeirada se espraiava nas noites primaveris de 1951.
Nesse submundo da noite lisboeta, Tó Gula andava, a mando de Anjinho, de olho
nalguns mânfios sobre quem recaíam suspeitas de
aproximação a certas figuras ligadas ao mundo do crime. Mergulhado
nestes pensamentos, o inspetor Anjinho quase se esquecera que ainda
aguardavam, lá fora, que os chamassem para prestar depoimento, o senhor
Euclides, o crónico e apaixonado presidente da popular União da Madragoa, e o
charmoso Quim Zé, o homem que dirigia a Casa de Fados onde o falecido Tó Gula
afinava a garganta ao som da guitarra em noites de glória fadista, muitas
vezes ao lado das já consagradas Amália e Hermínia e do castiço Ti’ Alfredo.
“Mas o que me interessa agora ouvir estes gajos?!” –
exclamou Anjinho, ao mesmo tempo que atirava as
folhas do relatório para cima da secretária, não evitando que algumas delas
se espalhassem pelo chão. E enquanto se baixava para as apanhar, soltou um
desejo: “Ainda se fossem as mastronças do Texas e do Califórnia, talvez
valesse a pena!...” De súbito,
surpreendendo o inspetor Anjinho de rabo para o ar, irromperam pela porta do
gabinete adentro as meninas Graça do Bico e Josefa dos Prazeres, logo
seguidas do agente Faustino, que não conseguiu segurá-las, apesar de ter
deitado as mãos às mamas de uma e ao rabo da outra, tendo sido logo sacudido
com a força da experiência que ambas tinham no resgatar do corpo quando os
homens das mãos que as prendem são pouco meigos ou desinteressantes. Tentando
desculpar-se por as ter deixado escapar-se literalmente por entre os dedos,
Faustino praguejou: “São escorregadias como as enguias e danadas como as
cobras, estas cabronas!...” A um gesto crítico do inspetor, o agente saiu com
o rabo entre as pernas. “Deitem-se!
Perdão… Sentem-se!” – disse Anjinho, já refeito da
situação vexante em que foi encontrado pelas meninas Graça e Josefa, que
alternavam todas as noites entre o Texas e o Califórnia, coordenando um grupo
de raparigas que davam o corpo ao manifesto, às vezes também de rabo para o
ar, como o inspetor, uma das muitas posições aliás em que se especializaram
sem que alguma vez tivessem lido o Kama Sutra, um tipo de literatura
ilustrada que o regime de Salazar jamais aceitaria que fosse comercializada
entre nós. Mesmo assim, havia quem a lesse e defendesse, argumentando que a
pornografia e a obscenidade deviam apenas ser julgadas de acordo com o seu
mérito artístico, sustentando até que a censura e a proibição deste tipo de
livros do gozo dos sentidos constituía um atraso no progresso humano. Nada
interessadas numa discussão filosófica sobre a bondade deste tipo de
literatura, que pouco tinha a acrescentar àquilo que sobre a matéria elas
sabiam, de um saber feito de aulas práticas quase sempre isentas de prazer
físico ou de qualquer gozo dos sentidos, as meninas Graça e Josefa estavam
ali para dar à luz o que sabiam sobre a morte do amado Tó Gula, um homem por
quem tinham um fraquinho e que as tratava como verdadeiras princesas.
“Inspetor, as meninas do Texas e do Califórnia acham que sabem o que se
passou com o Tó Gula” – disse a Graça. “Uma delas, a Micas do Cu Grande,
ouviu uma conversa suspeita entre dois bifes” – afirmou a Josefa. Após um
breve silêncio, à espera de maior precisão sobre o assunto que as levara à
Judite, o inspetor não se conteve mais: “Digam lá o que sabem, porra!” A Micas havia
escutado no lavabo das meninas uma conversa entre dois cavalheiros vestidos
de mulheres, que falavam num inglês pouco escorreito. E a Micas sabia bem do
que falava. Ela estivera dois anos a servir nas linhas da frente, entre 1944
e 1945, como entertainer dos combatentes, e
conhecera muito bem a língua (e não só!) dos homens nascidos no reino de
George VI. E sabia na perfeição como eles se expressavam, mesmo em ocasiões
de muito stresse e em todas as mais ingratas posições. E nisso das posições,
ninguém melhor do que ela para saber do que eles são capazes. Foi isto mais
ou menos o que inspetor passou para o relatório do que disse a Micas do Cu
Grande, que havia traduzido para português o arrazoado que os travestis
trocaram nos lavabos: “O gajo anda a pedi-las,
anda”; “Cá por mim, devia ser esta madrugada”; “Vou deixá-lo de rastos, vais
ver”; “O Tó nem sabe o que lhe espera”. O inspetor
Anjinho tinha absoluta convicção de que alguém havia descoberto que Tó Gula
estava indiretamente ao serviço da União Nacional, através da Judite, na
prevenção de qualquer situação que pusesse em causa a segurança do candidato
presidencial que Salazar havia escolhido para suceder a Carmona, pelo que
decidiram fazer-lhe a folha. Mal sabia, porém, o Presidente do Conselho que,
mais tarde, Craveiro Lopes acabaria por demonstrar uma certa simpatia pelos
oposicionistas. Só que nessa altura era com aquele general da Força Aérea que
o homem de Santa Comba Dão acreditava conseguir gerar consensos que
facilitassem a prossecução das suas políticas, sem grande oposição, não
fazendo a mínima ideia de que passados exatamente dez anos ele estaria
associado ao golpe de Botelho Moniz. Absorto nos
seus pensamentos, de mão esquerda pousada na perna direita da Graça enquanto
a direita segurava o seu fumegante cachimbo que a Josefa acariciava para se
aquecer do frio e humidade que se fazia sentir no gabinete, Anjinho deu um
salto da cadeira quando se ouviram gritos no corredor. “Estou farto de estar
aqui e tenho muito que fazer! Está quase na hora de começar o treino e eu
tenho as duas bolas comigo!” – berrava o presidente
do União. “E eu, e eu… Tenho dois aspirantes a fadistas à
minha espera para ensaiar e nunca mais sou ouvido!” – rosnava
o homem da Casa de Fados. E no fim de alguns palavrões, impróprios para
ouvidos sensíveis, gritaram em uníssono: “Nós sabemos muito bem quem matou o
Tó Gula!” E logo concluiu a Graça do Bico: “Eles também conhecem as
bifas!...” Fontes: Blogue Repórter de
Ocasião, 9 de Novembro de 2025 O CASO (sério) DA
RUA DAS TRINAS, Edições Fora da Lei, Ano de 2018 |
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© DANIEL FALCÃO |
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