Publicação: “O Almeirinense” Data: 15 de Setembro de 2007 Torneio Domingos Cabral
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TORNEIO DOMINGOS CABRAL PROBLEMA Nº 2 CAÇADA NOCTURNA Autor: Figaleira Após 54 anos de
actividade profissional e 48 de descontos (ainda não há muito foi adoptada
designação mais enfática: carreira contributiva), “Mêbêdê” entrou na
jerarquia dos aposentados. Desde então, a par das diárias andadas (no mínimo,
duas horas a caminhar) e assistência aos (cinco) netos (em especial, aquando
das férias escolares), tem diligenciado manter a ginástica mental iniciada em
meados do século transacto (embora, ultimamente, problemas de visão estejam a
dificultar tal propósito); também usufruindo dilatados períodos na aldeia das
origens – cuja mais recente visita começou no dia do “tríparo 07”. Localizada no fundo
de um vale, rodeada de montes arborizados, na povoação o tão apregoado
“choque tecnológico” parece de “complicadex” abrangimento, sobretudo dadas as
deficientes condições receptivas. Na televisão, pelo sistema normal, tão-só
são captados os dois emissores estatais (os outros apenas por cabo, via
satélite, com custos de instalação muito elevados e, por isso, unicamente são
visíveis no café do Zeca) e, quanto a telemóveis, é constante a procura de
sítios onde o aparelho consiga ligação (mesmo assim, amiúde ficando sem rede
a meio do diálogo). Mas, em
contrapartida, os ares são despoluídos, as sombras aprazíveis, as águas
virgíneas (isto é, sem gustação anti-séptica), sendo quase geral a fraterna
convivência (antes, dia e noite, as chaves ficavam nas portas, pelo lado de
fora; agora não acontece tanto assim – precatadamente, ao crepúsculo, são
recolhidas). E, na época de veraneio, então, na ribeira que a beija, é
estabelecida uma praia fluvial, com cerca de duzentos metros de extensão,
propícia a refrescantes mergulhos e sequentes banhocas, para gáudio dos
locais e daqueles que, vindos de lugares vizinhos, lhe transmitem o cariz de
romaria. Dissimulado e
silencioso, aproveitando as zonas obscuras procedentes da ténue iluminação na
via pública, o vulto avançou com presteza. Franqueada a cancela de acesso à
propriedade, dirigiu-se à arrecadação onde sabia haver a entrada para o anexo
em que estavam galinhas e coelhos. Experimentou o trinco da porta; em vão –
estava fechado à chave e esta fora levada. Nessa altura, a amplificação sonora da torre
difundiu as onze badaladas do relógio instalado na sacristia da igreja
matriz, circunstância aproveitada para insistente abanicar da porta, na
suposição de eventual cedência, o que não sucedeu. Extinto o som da última
pancada, pressentindo ligeiro restolhar, quedou-se à escuta, num derramado
aguardamento; todavia, no sossego da cálida noite, constituía excepção
ouvir-se o coaxar das rãs junto à ribeira, de onde conjecturar que o esbatido
rumor fora originado por cão vadio ou bicharoco rastejante, em deambulações
noctívagas. Assim, depois de
acautelada pausa em expectativa, pisando a terra mole (devido à rega diária
feita ao anoitecer, a fim de revigorar os produtos hortícolas dos efeitos da
canícula), com a ajuda de pequena lanterna de bolso, acercou-se da janela da
arrecadação, a qual presumia entreaberta para refrescar o local.
Efectivamente, tal verificou, pelo que não teve dificuldades em a galgar –
deixando marcas do calçado lamoso nos sacos de ração e adubo sob a mesma. De
seguida, procedeu à fácil abertura da coelheira, transladou anafado láparo
para um saco de linhagem e pisgou-se… Na manhã da
Segunda-feira imediata à chegada, Mêbêdê encontrou o parente e amigo “Manel
da eira” bastante sorumbático, tendo-lhe este transmitido que há pouco, ao
preparar a alimentação dos animais, averiguara o desaparecimento, naquela
noite, do melhor coelho; mais adicionando que, nos últimos tempos, esse
género de furtos estavam a tornar-se frequentes, pois vários conterrâneos
queixavam-se de idênticos rapinanços. E logo ele se esquecera de fechar a
janela. Ora, inoculado da
prosápia de “estar por dentro” no referente a investigações policiais (meio
século a ler narrativas e também na pesquisa clarificadora de enigmas desse
teor facultam o pressuposto), Mêbêdê encetou diligências no sentido de
intentar descobrir quem seria o motivador da situação. Daí, o seu “faro”
levou-o até recôndita adega, deparando com três compinchas a banquetear-se
com opíparo petisco (o cheiro fazia engolir em seco; aquilo deveria estar de
“lamber a beiça”): “Tóino pipo”; “Xico d’avó” e “Jaquim meia-ó”. Em jeito entediado,
acercou-se da abertura e escogitou. Convidaram-no a entrar (o que fez de
imediato, sem arrepsia), e “alinhar” no, segundo disseram, coelho guisado (aí
escusou-se, argumentando ter acabado de almoçar). Efectuados os cumprimentos
da praxe, inquiriu quem era o aniversariante, mas nenhum respondeu. Tentou
estratégia alternativa: “ontem à noite estive no café do Zeca e não vos
vi...” “Tóino pipo” (o epíteto retrata a
personagem: atarracado, convexo e “copofónico militante”) casquinou difusa
risada, enquanto dizia:”Estivemos lá, pois! Até pesquei monumental “cardina”
que raios me partam se alembro como fui parar à cama. Mas já recuperei;
ultrapasso facilmente as ressacas e, pelos vistos, outra vem a caminho...” “Xico d’avó”
(fanhoso, atacado por uma daquelas constipações de Verão provocadoras de
incessantes espirros e assoadelas, como era evidente) interrompeu-o: “Chiça!
Quantas vezes é preciso esclarecer-te que te reboquei para o cimo da vila e
ajudei a tua mulher a deitar-te”. E, voltando-se para o indagador,
acrescentou: “Saímos os três de lá por volta das nove horas, ainda estava a
dar o Telejornal. Depois de pôr o meu vizinho em casa, dirigi-me à minha,
preparei um café forte com aguardente e mel, procurando atalhar esta
carraspana que parece enraizada e fiquei lá.” Por sua vez, o
“Jaquim meia-ó” (desde sempre caracterizado pela impoluta camisa branca,
vincada calça preta e sapatos lustrosos, assecla ferrenho das coisas
futebolísticas, castiço e chistoso no modo de falar), confirmando o horário
indicado pelos parceiros (e as condições em que saíram), aditou: “Quando
cheguei a casa, a “ti” Palmira (sua esposa) olhava a televisão, pusemo-nos à
conversa; cerca das dez horas, ela alegou estar a sentir o efeito do
comprimido para dormir e foi-se deitar. Como a programação de ambos os canais
era xaroposa, aguardei a costumada meia hora para a “ti” Palmira ferrar no
sono, e imitei-a. Entretanto, pretendi arejar à janela, ao escuro e, pouco
depois das onze horas, vi uma sombra para os lados do “Manel da eira”,
transportando um saco onde algo estrebuchava...” E temendo por
demais estendida a lengalenga, expressamente concebida com a finalidade de
associar-me ao cinquentenário de “policiarites” do prezado Amigo Domingos
Cabral (que em tempos foi “aranhiço” e agora está “anzolado”), “fecho a
tenda”. No entanto, como “manda o figurino” (e prevendo que o coelho manjado
pela trindade fosse o extorquido ao “Manel da eira”), questiono: 1 – Quem larapiou
(obviamente, a prescrição terá de ser complementada através de consentânea
justificativa). 2 – Ponderadas as
circunstâncias descritas, acaso Mêbêdê granjearia hipótese de esclarecer o
imbróglio? |
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©
DANIEL FALCÃO |
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