Autor

Agente Kapa

 

Data

Fevereiro de 1977

 

Secção

Enigma Policiário [11]

 

Competição

Volta a Portugal em Problemas Policiais

8ª Etapa

(Lagos – Odemira – Santiago de Cacém – Grândola – Alcácer do Sal – Setúbal)

 

Publicação

Passatempo [33]

 

 

 

 

 

 

 

ACONTECEU NA MADRUGADA

Agente Kapa

 

A lúgubre casa emergiu subitamente da noite, ferida pela luminosidade embora desfalecida da lua. Era uma habitação pequena, desmantelada, gasta pelos anos. Dir-se-ia deserta; mas não estava.

O vento fustigava-a duramente, sem tréguas, a tirar partido do ranger deprimente das dobradiças das janelas. Quando as núvens, céleres, ocultavam a escassa claridade, a escuridão apossava-se de tudo até ao âmago, submergindo os campos, as árvores, o piar das aves e o coaxar das rãs.

Então, a casa ofuscava-se mais. À sua volta um indizível vazio repercutia-se por entre os ventos dissonantes. O vazio era o mesmo que ela própria continha.

Mais tarde, o crepúsculo raiado de vermelho, assomou frouxamente no horizonte. Uma inflexível inércia manteve-se na casota. Não havia nada. Nada mais do que um corpo tenso e violáceo suspenso no ar. A casa dir-se-ia deserta, sim, mas de vida…

 

Rodrigues Lopo, o conhecido Inspector da Judiciária, apresentou-se no local da ocorrência, acompanhado de dois agentes, quando um trabalhador do sítio o informou da triste realidade. O homem passara pela moradia do Velho Olavo, como todos os dias, e estranhara ver a porta escancarada. O facto despertou-lhe a atenção, disse, porque mesmo que o vento a tivesse aberto o Velho não deixaria de a fechar, pois era um madrugador impenitente.

O Investigador mandou-o embora (comprovara antecipadamente que ele era estranho ao caso), após o que se introduziu na casa, pela única porta que a compunha. Percorreu-a e numa sala das traseiras foi deparar com a tétrica cena. As pegadas que vincou no solo foram-se aliar a um outro par que lá se encontrava mais evidenciado que outros quaisquer vestígios. Olhou em torno de si. A corda pendia solidamente duma trave do tecto e sustinha aquele que em vida se chamara Olavo. Aproximando-se, notou a existência, numa das bainhas da camisa do morto, de uns três cabelos, negros por reflexão e avermelhados à transparência. Ao rolá-los nos dedos, transmitiram-lhe uma sensação de arestas vivas. No chão uma cadeira permanecia voltada sob os pés do enforcado. De pé, sobre ela, o pescoço do morto chegaria precisamente ao nó escorregável – calculou.

Tudo estaria normal, se não fossem aquelas feridas, sem dúvida mortais, que sobressaíam do peito do Velho Olavo, produzidas por um instrumento cortante e afiado.

Convicto de que algo de anormal acontecera, Rodrigues Lopo mandou chamar os quatro indivíduos com quem o defunto invariavelmente se reunia em gananciosos jogos de cartas.

Dois deles compareceram pouco depois, onde, na sala de entrada, o Inspector os aguardava. Chamavam-se Fausto e Renato.

Informados do que se passara, manifestaram a sua surpresa e desgosto. FAUSTO afirmou:

– Ontem jogámos até tarde, como habitualmente. Retirei-me em primeiro lugar, visto ter perdido bastante dinheiro. O velho Olavo também perdia mais do que eu, a favor do Henrique e do Mendes. Bem arrependido fiquei de cá ter vindo. Não só pelo dinheiro como pelo meu filho ter adoecido de repente. Quando cheguei a casa estava lá o médico, que se demorou até altas horas.

RENATO, respondendo a uma pergunta do Inspector, acrescentou:

– Há uns tempos que lhe vinha notando uma certa mudança. Andava mais taciturno. Como se uma coisa muito importante o atemorizasse. Diz-se para aí que estava arruinado. Se assim é, o Mendes fica prejudicado pois é-lhe credor duma soma avultada. Eu também mas é menos. A morte foi um fim justo para ele, rematou ironicamente,

O Investigador encarou-os tranquilamente, enquanto aguardava a presença dos outros. Fausto era um pouco mais baixo, débil e aparentando ser mais novo, já que o outro, por snobismo, ocultava a calva sob um gasto chinó. Entre os dois poucos contrastes mais se verificavam, pois vestiam e calçavam da mesma forma. As botas do mais alto, no entanto, pareceram-lhe demasiadamente limpas para o tempo que decorria. Ambos pertenciam à pequena burguesia que caracterizava aqueles arredores da cidade.

Perdido nas suas conjecturas, o detective surpreendeu-se ao escutar a voz contante de MENDES. Chegara naquela altura, depois de ter sido avisado telefonicamente para ali comparecer.

Cá estou! O Senhor aqui? Era de esperar! Ele tinha de matar-se quanto antes. Falido como estava só lhe restava uma solução… antes que alguém se lhe antecipasse!

Com a sua cantante e irritante voz, prosseguiu:

– Não sei nada. Saí após o Fausto e fui direito a casa. Ganhara bem a noite. Minha mulher e a família dela esperavam-me. Estive com eles até tarde. Peço que não me demore, pois tenho negócios urgentes a resolver.

O Inspector não fez comentários assim como não lhe dirigira anteriormente qualquer palavra. Voltando-se para Renato, perguntou-lhe quem tinha sido o último a sair daquela casa.

O homem voltou a falar, coçando maquinalmente a cabeça, num gesto que lhe era peculiar. Mencionou ter saído minutos depois do Mendes (o jogo perdera o interesse), na companhia de Henrique e então o Velho ficara só. Separara-se do amigo quando chegara à Encruzilhada Grande, tendo ido directamente para sua casa, que ali se situa.

HENRIQUE surgiu mais tarde, apressadamente. Na mesma sala de entrada foi encontrar os outros e o Investigador, por quem era esperado. Referiu o seguinte:

– Esta madrugada quando me separei do Renato e o vi entrar em casa (ele devia ter acendido a luz do seu quarto) – que é o único aposento que deita para o caminho que conduz a minha casa – pois durante largo tempo disfrutei de visibilidade, dirigi-me a correr para a minha, portanto, fugindo à chuva que começava a cair. De manhã voltei a sair, há talvez duas horas e meia, para tratar de assuntos relacionados com a quinta. O certo é que as chuvadas desta noite, as primeiras da Estação, causaram-me prejuízos enormes nas sementeiras. Foi lá na quinta que um vizinho meu me levou o seu recado para vir aqui.

– Quando me despedi de Olavo, nada lhe notei de extraordinário. Talvez estivesse um pouco aborrecido. Durante todo o tempo em que jogámos ele pouco falou e parecia aéreo. Há alguns dias para cá que parecia andar assim. Ao fim e ao cabo atribui o facto de consecutivamente andar a perder bastantes «massas». Todavia estranho que se tivesse suicidado, como me acabam de dizer.

Henrique, após algumas pausas, enquanto falou mostrava-se absolutamente calmo e a acentuar a sua descontracção, pôs-se a extrair o «luto» das unhas utilizando para tanto uma longa navalha, de que nunca se separava.

Ao vê-la, Rodrigues Lopo voltou a recordar as feridas, que, no corpo do defunto, haviam sido produzidas por um objecto cortante. Tinha-as observado bem sob a camisa do Velho, apresentando os bordos pálidos, lívidos e um pouco retraídos. Como pudessem garantir um assassinato, disparou de chofre:

– Foi com essa arma que o matou?

Como?! Essa é boa! Porque havia de o fazer?

O homem serenou um pouco, conteve-se e disse:

– Repare que não possuía razões para lhe fazer mal. Até o temia, por ser mais forte e de maior estatura que nós. É só velho de nome. Aliás ele enforcou-se, segundo o que me disse, pelo que nada temos a ver com isso.

O Inspector parou com os interrogatórios. Certificando-se que os quatro homens eram vigiados pelos agentes, encaminhou-se para a porta da rua. Precisava respirar ar puro.

e saiu para a claridade morna do sol. Caminhou alguns metros no pátio esvaído de lama, com o espírito literalmente ofuscado por pensamentos contraditórios. Os raios solares, ao embaterem na viscosidade das plantas emitiam chispas doiradas e intermitentes que feriam a vista. Os pássaros chilreavam gaiatamente surpresos pelo dia alegre que não esperavam. Ao longe, ouviu-se o silvo dum combóio. Sucederam-se mais dois, prolongados, identificando o «rápido» das nove.

O Inspector regressou ao ponto de partida para logo a seguir palmilhar o mesmo percurso. Era um vai-vem desentorpeante, mas que ainda nada lhe comunicara de positivo. Mais adiante, na eira, sentou-se no tronco caído de uma árvore.

As conjecturas continuavam a afluir-lhe à mente, embaraçando-se num turbilhão intraduzível. Avançavam no infinito, contínuas mas dispersivas. Fechou os olhos. Viu um cadáver oscilando na atmosfera, macabro, enleado nas fibras de uma corda. Havia mais quatro homens e uma cadeira voltada: feridas mortais e depoimentos que cimentavam alibis bem como outros que careciam de fundamentos mais sólidos. O motivo não lhe interessava sobremaneira, mas unicamente o ponto por ora indecifrável daquela morte.

Quando os abriu a escuridão desfez-se. E surgiu a manhã, bela, espraiando frescura e calor irmanadamente.

Olhou à sua volta. As maçarocas expunham ao céu os seus pequenos grãos amarelos, que significavam Trabalho e Pão. Pegou numa ainda por descascar. Era branca a palha; mas além da palha havia mais. Então um raio inundou-lhe o cérebro de inesperada compreensão. A ideia, a segunda ideia que buscava, estava ali, latente. A outra já a tinha.

Ambas formavam a Verdade iniludível do patético acontecimento.

PERGUNTA-SE:

a) Qual o suspeito que se lhe afigura dever punir? Porquê?

b) Apresente um relatório pormenorizando aquilo que do texto seja susceptível de extrair, ou seja, o que «Aconteceu na Madrugada».

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO