Autor

Constantino

 

Data

Fevereiro de 1978

 

Secção

Enigma Policiário [23]

 

Competição

I Grande Torneio de Divulgação

8º Problema

 

Publicação

Passatempo [45]

 

 

INVESTIGAÇÃO EM CINZENTO

Constantino

 

Os criminologistas afirmam que é na juventude que se preparam os grandes criminosos. Segundo as estatísticas mais recentes, em cada 10.000 habitantes, 536 delitos de roubo, fraude, passagem de moeda falsa, etc., são praticados por crianças até aos 14 anos, números inigualáveis para quaisquer outras idades.

Da consequente leitura do relatado, o correr das recordações trouxe-me ao presente um remoto caso que envolvia duas crianças de dez a doze anos e o desaparecimento de um diamante.

 

«Estávamos num dia implicante. Chuva leve mas contínua escorrera todo o santo dia, até cerca das 17 horas. Tudo ficara peganhento, de ambiente opaco. Nesta situação, foi com um sentimento de desconforto, que correspondi ao apelo do Sr. Vila-Pouca, residente à época na Rua dos Lusíadas, ali para o Restelo. Desvaneceu-se-me, no entanto, aquele estado de espírito ao conhecer o drama daquele homem que, se se permite, bem poderia chamar-se com inteira propriedade, o Senhor Pouca-Sorte.

Na verdade, emigrante de tenra idade, por esse mundo comera o pão que o diabo amassou. Cansado, regressara a pátria, fazendo um casamento serôdio, aparentemente feliz, rematado com dois gémeos que viriam a revelar-se atacados de afonia congénita por deformação orgânica permanente. Acresce que, num passeio ao Alentejo, de onde era natural, um terrível desastre automobilístico deixou-o viúvo preso a uma cadeira de rodas, sobrecarregado com a educação dos filhos e sustento – este mais consentido que imposto, diga-se… – do inconformado Rafael Lobo o condutor do veículo daquele dia fatídico a quem o desastre amputara ambos os braços um pouco acima dos cotovelos. Valeu-lhe, na vicissitude, a destreza das suas mãos de hábil lapidário. O infortúnio parecia, contudo, ser uma constante.

Que sucedera agora?

Como invariavelmente, na prisão imprescindível da sua cadeira de rodas, o lapidador trabalhava um esplêndido diamante. Olhos cansados, adormeceu. Na obscuridade da tarde que findava, acordou sobressaltado. Como que pressentindo algo de desagradável, procurou instintivamente sobre a mesa – o diamante desaparecera!

Ao seu grito, Rafael e Rosa acorreram. Buscas, explicações, nada resolveram. Embora existisse um seguro que cobria as «pedras» que lhe eram entregues, desorientado pedira a Rosa que me telefonasse, já que não desejava a presença da Polícia.

Determinado, olhei o grupo na minha frente, todos vestidos de cinzento (cor preferida ou imposta?). No rosto de cada transparecia um sentimento diverso: desespero em Vila-Pouca, expectativa em Rafael, indiferença na pequena Maria Bonita, afilhada de Rosa, indignação nesta e, em oposição os gémeos, caras inidentificáveis pintadas de guerreiros índios, a que não faltava a tradicional pena no cabelo, camisolas de indispensável cinzento médio, com o nome de cada uma das letras cinzentas mais escuras nas costas, definiam apenas divertimento. Comecei por pedir a Rafael a sua versão dos acontecimentos. Esclareceu-me, enquanto com um gesto de cabeça me apontava as mangas da camisa vazias.

– Bem vê, não tirei o diamante! Estava sentado à janela, vigiando os miúdos que brincavam aos índios no pátio das traseiras. O patrão adormecera e eu também dormitava. Vi o menino aproximar-se do pai e tirar-lhe a língua… Só quando se afastou, pelo nome, percebi que era o Marco. Fui atrás dele para lhe perguntar o que queria, mas não o alcancei. Deve ter sido ele por brincadeira, esta sempre a pregar partidas…

Rosa, muito alterada, alta e sólida, enrolava o avental nas mãos fortes, dizendo:

– Os miúdos são uns diabos, isso são, mas não ladrões… Também não sei quem tirou aquilo. Não vi o menino entrar na sala; depois que a professora saiu «às cinco» foram os dois para o pátio. Por acaso fui acender a luz da cozinha – o interruptor fica ao pé da porta – e vi o Rafael dirigir-se para a saída… ainda lhe perguntei se os gémeos estavam bem, mas nem me olhou, respondeu-me com um resmungo surdo.

A pequena afilhada foi encostar-se à sua protectora, envergonhada, confirmou as declarações de Rosa, afirmando que não tinham saído da cozinha.

Restavam-me os rapazes. É bem verdade que as crianças que procedem delituosamente, apresentam congénita inclinação para o crime ou são, provavelmente, influenciadas pelo ambiente. Naturalmente que não seria o caso. Tratar-se-ia de brincadeira e agora receariam as consequências. Procurando fazer-me entender, perguntei por escrito a cada, se tinha tirado a jóia ou estiveram na sala depois da saída da professora. Ambos acenaram veemente negativa e, trocando olhares, como se pensassem por um só cérebro, cruzaram os braços esfingicamente, fecharam-se num mutismo feroz a todas as insistências da minha parte.

Antes de me dirigir à sala do lapidário, contígua a que nos encontrávamos (segundo os ensinamentos de Locard, por ali devia ter começado) perguntei a todos se se importariam de ser revistados. Face à resposta negativa, que me pareceu franca, passei ao local do «crime». À esquerda da entrada, uma janela larga; em frente, um pouco para a direita, a porta da cozinha; à direita, duas janelas, numa das quais estava encostada a mesa de lapidário, na outra a cadeira onde se sentara Rafael. Todas as janelas envidraçadas, com cortinas, estavam fechadas. Ao centro, sobre a mesinha, uma jarra de flores murchas, pétalas caídas, a contrastar – o que não podia deixar de me surpreender suspeitosamente – com o asseio de toda a casa e o próprio soalho encerado impecavelmente, que percorri de joelhos em busca da jóia perdida…

Saí, dei a volta pelo pequeno jardim frente à casa, passei para o pátio das traseiras de terra barrenta encharcada. Num pequeno círculo de relva ao centro, uma tenda tipo índio, na qual entrei procurando entre a amálgama existente algo que se parecesse com um diamante. Marto veio ter comigo e zangado empurrou-me dali.

Voltando ao convívio dos outros, pensava a todo o vapor, seguro à teoria de Claude Bernard: «a marcha do espírito não pode avançar, sendo pondo uma ideia adiante da outra». Quem? Como? Talvez sabendo «como», saberia «quem». Comecei a expor conclusões. Marco e Marto trocaram um olhar – mais uma vez a sensação de uma cabeça a pensar pelos dois – e esgueiraram-se para a saída. Ainda fiz um gesto para os deter mas, reconsiderando, continuei com a explanação. Subitamente, voltaram. Marco, puxando-me pelo casaco, presenteou-me com um pé de erva bezerra que trazia atrás das costas. Ambos sorriam abertamente. Embatuquei. Diacho dos miúdos, estariam eles a gozar-me? Estariam a dizer-me algo? Ora bolas… A que propósito vinha a oferta? Teria esta relação com as flores murchas da jarra, que tanto me impressionara?

 

Resolvi o caso. A solução verdadeira viera-me, afinal, em bandeja de prata… Sabe bem ao advogado, melhor diria, consultor criminólogo, porquanto raramente chegava ao Tribunal, divagar hoje no reino da saudade.

 

À capacidade dedutiva dos meus leitores amigos, deixo (sem perguntas preconcebidas) a apresentação dos respectivos relatórios, de preferência utilizando a forma de um conto.

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO