Autor

Constantino

 

Data

Março de 1979

 

Secção

Enigma Policiário [36]

 

Competição

Taça de Portugal em Problemas Policiários e Torneio Paralelo

6º Problema

 

Publicação

Passatempo [58]

 

 

UM MISTÉRIO PARA HOLMES

Constantino

 

Um «pastiche»? De certo modo. Para nós não é mais que um pequeno estudo sobre a personalidade do mais famoso detective de ficção, fundamentado nos escritos de Conan Doyle. Boa leitura, boa dedução é o que vos deseja o vosso Amigo Constantino.

 

Sherlock Holmes era um homem de hábitos metódicos e conservadores e eu, um dos seus hábitos, tal como o violino, o famoso Stradivarius que adquirira por 55 xelins e valia no mínimo 500, seus livros predilectos, o velho cachimbo, os recortes classificados, etc. Habituara-se a raciocinar em voz alta, e a minha presença estimulava-o.

Naquele dia, quando cheguei ao 221 - B de Baker Street, encontrei-o enterrado na poltrona favorita, com o cachimbo entre os dentes e de sobrancelhas franzidas. Mal se dignou olhar-me.

Entretive-me a contemplar o que conhecia de sobejo; os mapas geográficos suspensos da parede, a mesa onde Holmes levava a cabo as suas experiências químicas, o estojo do violino encostado a um canto, a caixa dos cachimbos. No ar pairava um cheiro intenso a ácido clorídico e fumo do tabaco solto em grossas baforadas.

Parecendo dirigir-se mais aos próprios móveis que a mim, atirou: – Então, meu caro Watson, desembuxe.

– Não compreendo, Holmes

– Compreende, compreende – interrompeu-me: Lembra-se como eu, observando o cérebro de uma criança, pude descobrir a psicologia criminosa do pai, tido como um homem honrado e respeitável, no caso em que você e Coller Beeches tanto trabalharam?

– Perfeitamente.

– Tanto mais fácil para mim observando-o tentar infantil e inutilmente esconder-se esse jornal, tão avaro que ainda não tirou a mão do bolso desde que chegou. O sorriso brejeiro que tem mantido, leva-me a deduzir que vem propor-me um caso misterioso. Depressa, depressa, meu amigo, o meu cérebro é uma máquina veloz que se reduz a pedaços quando não é aplicada no trabalho para a qual foi construida.

Esfregou as mãos satisfeito ao descobrir na minha cara a prova certa da sua dedução. Saboreava de antemão a perspectiva de acrescentar mais um incidente à colecção de episódios fantásticos e que eu, seu biógrafo, deveria publicar.

– Vejamos – acedi obrigado a concordar com a sua lógica.

Desdobrei o «Daily Chonicle» que procurara disfarçar desageitadamente no bolso e recitei a leitura da notícia intitulada «Fantasmas em Saxe-Coburg

«Ontem, pela segunda vez consecutiva, «os fantasmas de Saxe-Coburg*, visitam as Irmãs Ross, distribuindo ameaças de morte. As raparigas estão deveras alarmadas. Quem caça o fantasma?

Como se sabe, as irmãs são filhas do famoso Prof. R. recentemente falecido, e que tanto deu que falar no domínio do fantástico.

Irene e Alice representam um caso invulgar de gémeas e sósias, só identificáveis pela madeira loiro-brilhante de Irene em oposição ao cabelo totalmente negro da irmã. Aquela é, aliás, uma pianista em evidência que aos 22 anos nos deliciou, anteontem, com um soberbo concerto em Stº Jame's Hall, e que o repetirá amanhã, antes de se dirigir para a Austrália onde Alice casará com o rico McFarlane, o qual depois de hesitar tanto acabou por escolher a escritora, para mágoa da pianista.

Casará esta com o fantasma, ou disputará com a irmã a posse do pleitado e rico proprietário de carneiros?!!»

Holmes parecia hipnotizado pela notícia. O instinto da caça invadira-o. A brilhante capacidade do seu raciocínio e intuição erguia já um plano. Apertou-me a mão: – Ah! Meu amigo, meu caro Watson, enfim, enfim, temos uma expedição e

Ouviu-se, vindo de fora, o bater de cascos no empedrado da rua, e o ruído de uma carruagem a parar à nossa porta. Holmes ficou suspenso da palavra até que Mrs. Turner, a governante, introduziu o Mr. Lestrade, nervoso, vivaz e furão como sempre, mas um dos nossos mais hábeis polícias da Scotland Yard. Aquele meu amigo e mestre considerava Lestrade desprovido totalmente de inteligência, dotado, contudo, de uma tenacidade de buldogue, que aceitava generosamente.

– Temo que estejamos com algo muito misterioso em Saxe-Coburg – disse o afogueado polícia, sem cerimónia.

– Negócio de fantasmas, não? – perguntou Holmes.

– Como adivinhou?

Apontou, simplesmente, o jornal na minha mão.

A rua que deparamos ao voltar a esquina da escondida Saxe-Coburg Square, era preenchida com casas de tijolo de um só andar olhando para pequenos jardins arrelvados, de um só lado, opondo-se, do outro, um alto e intransponível muro. Ao fundo, fechando o beco, a casa que procurávamos. O polícia fardado que guardava a entrada encaminhou-nos ao Inspector Gregson e este ao local da ocorrência, e quarto da vítima. Esta, caída de bruços, braços em cruz, apresentava na fronte direita um indubitável ferimento produzido por bala, disparado à queima-roupa. A pianista de cabelos negros e madeixa loira, não daria mais concertos, foi o que pensei. Holmes, de sobrancelhas contraídas sobre os olhos penetrantes, cabeça inclinada para diante, na atitude de grande concentração que lhe era característica, debruçava-se sobre o corpo, captando os mais ligeiros detalhes. Cheirou e, fungando exclamou: – Tresanda a hena! E sem dar tempo ao invariável «como sabe!», foi adiantando: – Não esqueça, meu caro Watson, os meus conhecimentos de química!

Não perdia oportunidade de se salientar.

Observou melhor o corpo, arrancando-lhe com esforço da mão dextra extremamente fechada a ponto de quebrar várias das longas e bem tratadas unhas, alguns fios de fazenda escura que olhou demoradamente passando-os a Lestrade sem comentários. Olhou de revés, sem lhe tocar, o revólver de grosso calibre junto da outra mão.

Lestrade, como que interpretando o olhar do meu amigo, pegou com estudada prática na arma, procurou no bolso um pedaço de papel branco, que introduziu no cano, tirando-o borrado de cinzento embaciado, extraiu após o invólucro detonado, que examinou atentamente, enunciando convicto: – Carregamento com pólvora negra!

Holmes acenou, mas já desviara a atenção para a clamorosa rapariga que Gregson trazia pela mão. Olhava-a fixamente e comparava-a ao corpo caído, impressionado pela semelhança.

A moça dava sinais de evidente desespero e balbuciava:

– Oh, não! Oh! O fantasma… uma mumia negra, grande… Oh! Oh!… medo… preferiu suicidar-se, irmã… irmã…

Holmes, pousou os dedos longos e finos nos ombros da rapariga. Quando queria, possuia um poder quase hipnótico de acalmar o próximo. Deu confiança à moça. Soube-se, por ela, do inesperado e mais um dos ataques de algo sobrenatural, horrendo, – dizia. De como atacadas, se refugiaram nos quartos respectivos e se muniram das suas armas; de como ouvira o tiro no quarto da irmã; de que o silêncio a enchera de coragem e se atrevera a ir ao encontro da irmã e a encontrara morta; de como correra para a porta, gritara e aparecera um agente chamado por uma vizinha. Aliás tivemos ocasião, mais tarde, de ouvir essa vizinha, o que só confirmara a óptima dedução produzida por Holmes, uma mulherzinha baixa, de fisionomia nervosa, olhos grandes e curiosa, cabelos grisalhos que caiam em bordões sobre as têmporas, numa eterna cadeira de rodas, inseparável do gatorro preto, passava os dias a observar por detrás das cortinas o namoro das irmãs – ainda não estava certa da preferida – e afirmava com autoridade que ninguém entrara ou saira de casa da vítima. Reclamava com orgulho o direito de ter telefonado à polícia ao ouvir os gritos, pois adivinhara que algo de grave acontecera.

Lestrade afastou-se e trouxe do quarto da rapariga o revólver que lhe pertencia. Repetiu neste a que utilizara na outra arma, recolheu o papel manchado de negro do cano e teve a mesma exclamação ao extrair uma após outra as duas cápsulas detonadas.

Dispensada a rapariga, Lestrade e Gregson dividiram a tarefa de rebuscar em todos os compartimentos qualquer pronuncio de porta secreta ou saída.

Fizeram-no com mestria, reconheça-se, sem êxito, porém.

Percebi, então, pela expressão de Holmes, que pelos pequenos indícios que escapariam a outra pessoa, ele soubera já formar uma hipótese ou tinha a solução. Embora pudesse parecer impossível a qualquer observador casual, havia nos seus olhos brilhantes e nos gestos vivos, uma ansiedade, uma tensão contida que me fazia compreender que ele tinha a chave do mistério. Como de costume, aguardei, sem perturbar com inúteis interrupções aquele cérebro em contínua efervescência. Em tempo oportuno, eu seria inteirado de tudo. E esse momento não se fez esperar. Logo que Lestrade e o outro Inspector se lhes juntaram, Holmes observou como que casualmente: – É um grave erro alimentar ideias preconcebidas, pois, insensivelmente, a pessoa procura torcer os factos a fim de adaptá-los às próprias teorias. Foi o que os meus amigos fizeram! Tudo trocado. Dupla troca, para ser mais preciso. Mas não creio que existam dificuldades insuperáveis. Ora vejam…

Holmes continuou. Como por encanto, tudo aquilo que me parecera evidente se complicou; depois, todo o emaranhado dos factos pareceu esclarecer-se diante dos meus olhos. Admirei-me, como sempre, de que tal explicação não me tivesse ocorrido.

– Elementar, meu caro Watson! – terminou batendo-me nas costas.

Estupefactos, ficámos sem fala! Logo, não resistimos: aplaudimos com intensidade como se estivessemos no teatro. Uma onda de sangue avivou as faces pálidas de Holmes que nos saudou como um actor, recebendo aplausos da plateia. Deixara de ser uma simples máquina de raciocinar para mostrar que era sensível à admiração. Aquela natureza fria que não se preocupava com a glória pública, ficara realmente comovido com a homenagem dos amigos.

– Obrigado! – disse, voltando-se para disfarçar a emoção.

Um momento depois voltou a ser o mesmo calculista frio e prático que sempre conheci. Encaminhou-se para a saída.

– Até à vista, Lestrade, e não se esqueça de que, quando estiver às voltas com casos delicados, eu estarei sempre pronto a ajudá-lo.

 

E pronto, Amigos. Tendes na mão todos os dados necessários à resolução do enigma. É escusado fazer perguntas, apresentai os vossos relatórios, sede rivais de Sherlock Holmes.

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO