Autor Data Abril de 1979 Secção Enigma Policiário [37] Competição Taça
de Portugal em Problemas Policiários e Torneio Paralelo 7º Problema Publicação Passatempo [59] |
INVESTIGAÇÃO EM VERDE Constantino Tema: «Se o ser
acusado é bastante para ser criminoso, quem se achará inocente?» – Imperador Juliano. Não
tem dúvida. Um polícia metido num sarilho é um verdadeiro manjar para os
jornais. E estes não pouparam o guarda da P. S. P., Graça. Com razão? Sem
razão? Qualquer
pessoa pode ser acusada de um crime e ter contra si provas circunstanciais
muito graves; tal facto, por si, fará dele um criminoso? Mas não teria Graça
cometido mesmo o delito de que era acusado? Não
gosto, nunca gostei, de defender pessoas culpadas. É um princípio. Claro que,
homem de leis que sou, causídico, consultor criminólogo, etc. e afins nas
horas vagas, não deixo de reconhecer que toda a gente tem direito a um
julgamento justo, o que significa ter direito a defesa; por conseguinte,
direito a um advogado. É evidente, também, que não posso escolher só
inocentes: Tenho que tomar decisões muito rápidas, confiar muitas vezes na
intuição, e não posso antecipar as jogadas do destino. Neste caso, para mais, o destino vinha pela mão do próprio departamento
da Polícia ao solicitar-me. Bem, por outro lado, é sempre benéfico ter amigos
daquele lado da barricada… Enquanto folheava o processo, dele procurando
extrair com clareza todos os factos, ainda que aparentemente contraditórios,
que me levassem a conduzir o raciocínio no caminho de uma solução possível e
mediante a lógica, não podia furtar-me a toda esta espécie de pensamentos,
eles também, talvez, contraditórios. Fora
o próprio Graça que solicitara aquela ronda. O seu pedido tinha uma razão
especial, conforme explicara ao seu superior hierárquico: «Na véspera,
destacado para aquela mesma área, depois de ultrapassada e já a cerca de trinta
passos da «Ourivesaria Menezes», cuja montra larga e repleta de jóias, formando contrastes com os mostruários verdes, se
lhe afigurava um convite ao roubo, pressentira alguma coisa de anormal.
Olhara à rectaguarda e vira o conhecido «Chimpanzé» aproximar-se daquela como
que disposto a partir o vidro. Alarmado, gritara, procurando detê-lo. O
ladrão fugira rapidíssimo. Disparara um tiro para o ar, perseguira-o mas
perdeu-o na primeira travessa. «Caminhava
devagar atento a cada sombra…» – assim o escrevera no relatório. «Mirei atentamente
a montra tentadora, lembrando-me que, na noite anterior, bem poderia ter sido
roubada. Parei, diante da porta do «Bar-Longo» (com residencial no 1º andar e
entrada a seguir, quase frente à ourivesaria) vazio àquela hora, mesmo da
presença do proprietário. Olhei para ambos os lados da rua sem descortinar
vivalma na noite escura e muito fria. Continuei vigilante». «Não
ouvi passos, simplesmente o estilhaçar de vidros e o «Chimpanzé» a debruçar-se para os mostruários. Reagi imediatamente
puxando da pistola enquanto corria. O ladrão escapuliu-se no estilo peculiar
que lhe valera o nome, dobrado, com os grandes braços oscilantes, mãos quase
tocando o solo, velocíssimo. Visei as pernas e disparei. O larápio pareceu
vacilar por momentos mas logo retomou a corrida e dobrou a esquina à sua
esquerda, antes que pudesse disparar de novo». O
caso é que, quando ali chegou – referenciava o polícia – «deparei com o beco
de cerca de vinte metros vazio. Três paredes lisas com quatro metros de alto,
sem portas, janelas ou qualquer abertura… e o homem volatizara-se!». Deu
o alarme e em breve o local era invadido por várias brigadas policiais
disponíveis. Tudo fora revolvido sem êxito. Nem vestígios, nem ladrão. Nada.
Ou antes, um pormenor muito ilucidativo: as mais
valiosas jóias expostas,
tinham desaparecido da montra partida com uma pedra enrolada num pano grosso.
No entanto, Graça afirmava ter quase a certeza de que o fugitivo não as
levara consigo. Dias depois começaram os sarilhos. Dois operários da
companhia telefónica, para repararem uma avaria, abriram um colector subterrâneo existente no beco e depararam com um
morto embrulhado numa grossa manta verde, rodeado dos famosos mostruários… verdes
e vazios. O morto era o «Chimpanzé».
E
o escândalo rebentou!… Autopsiado
o cadáver, encontraram-se duas feridas de bala, cuja observação revelava
terem sido produzidas com breve intervalo. A designada por «A» atravessara a
perna esquerda por altura da coxa; a segunda, indicada por «B», e que viera a
causar a morte calculada após 5 horas do ferimento, entrara junto ao umbigo,
do mesmo lado, e alojara-se no abdómen. O relatório do médico legista era peremptório: «sitiais de escoriações cutâneas em redor da
entrada e embate da bala, por esta provocados, em «A» e «B», mais saliente,
com ligeiro esfacelamento na saída de «A»; inexistência de partículas de
pólvora nos ferimentos ou queimaduras na pele – igualmente nas roupas, coincidentes
com os ferimentos; impossibilidade técnica de avaliação da distância dos
disparos». Segundo
a análise laboratorial, procedendo à peritagem pelo método Sódermen, observados
dois projécteis simultânea e comparativamente, a
bala mortal proviera da arma do polícia: Valther-7,65; seis estrias; sentido
de estriação, esquerda; sem irregularidades.
Bala-matérias aderentes: sangue; cera provavelmente da ligação do projéctil com a cápsula; óleo de lubrificação em ínfima percentagem;
sem vestígios de cabelos, pêlos ou fibras de
vestuário». A
moldagem do interior do cano da arma pelo «helixoscópio», permitiu provar com segurança a conclusão anterior, face
ao exame exaustivo às estrias, sentido, passe da espiral, largura e forma da estriação, crista, intervalo e ângulo, marcas de
oxidação, efeitos do uso, etc.». Do exposto e a inferir-se que o agente da
autoridade tinha fortes implicações no assunto, foi um passo. Deduziu-se ter
disparado, não um, mas dois tiros e em posições diferentes: um tiro teria
sido realmente disparado por detrás, na coxa, ajustado à ferida «A»; a «B»
resultaria de um projéctil disparado frente à
vítima. De resto tais conclusões pareciam confirmadas pelas duas cápsulas
encontradas na noite do incidente, por um dos polícias, afastadas cerca de
quatro metros uma da outra. Aliás, o exame das mesmas, mostrara
«identificação perfeita na deflagração pela arma aludida; vestígios de pólvora
piroxilada, marcas do extractor, ejector e ponto do
percutor similares». Mas
não se ficaria por aqui. Na
tarde em que os jornais lançaram o ataque à polícia em geral e, ao Graça, em
particular, o «Lombardo», um
cadastrado que habitava a residencial do «Bar-Largo»,
viera propositadamente à esquadra afirmar peremptoriamente
ter ouvido distintamente dois tiros, mais ou menos à hora do roubo, muito
embora desconhecendo então o que se passara, porquanto não se dera ao
trabalho de satisfazer a curiosidade. Nem
sequer se aflorava motivo para duvidar deste testemunho, certos de que o
homem desde que deixara a prisão do Linhó, ia para dois anos, parecia rumar
no caminho da honestidade. Da prisão saira com
certa prática de fabricação de pequenos espelhos, indústria que desenvolvera,
ainda que em pequena escala, e o ajudava a viver sem implicações legais. Não
deixou, porém, de vir a lume nas averiguações precedentes, a circunstância do
Graça ser guarda prisional na altura em que estavam presos o «Chimpanzé» e o «Lombardo». Estes e um terceiro preso, um tal «Caruma», durante a hora do recreio e
no momento em que o director da prisão se misturara
com os presos para ouvir as suas necessidades, conseguiram colocar-lhe nas
costas um número de preso. Denunciados pelo Graça, valeu-lhes a graça de três
semanas de solitária. Entretanto, pouco depois ao ir para casa num dia de
folga, o denunciante fora misteriosamente surrado sem possibilidades de
defesa. Era
um amontoar de factos que, como se vê, não favoreciam o acusado. O
próprio Sr. Longo, conceituado proprietário do «Bar-Longo», ouvira dois estampidos, embora não pudesse afirmar se
seriam tiros. Estava no fundo do estabelecimento aproveitando a hora normal
de ausência de clientes. O
proprietário da ourivesaria, um homem franzino e constipado, extremamente
besuntado de Vicks Vaporub, limitou-se a lamúrias e a
informar que ele próprio substituiria recentemente aqueles novos estojos e
expositores e neles colocara as jóias roubadas.
Estava verde de preocupação… Na
montra, salvo as normais e insuspeitas, não se encontravam impressões
papilares. Na pedra e nos estojos, negativo. Foram entretanto colhidas
impressões digitais da vítima no rebordo e interior do colector,
realçadas pelos dedos sujos de sangue, mesmo impressões palmares. O tecido
verde dos mostruários não permitia recolha de impressões digitais. A sua
análise em laboratório revelou à mistura com pequena parcela de poeira e
cotão, fibras vegetais do próprio tecido e, não provenientes de fabrico, uma
espécie de pomada constituída por benzol à base de alcatrão, goma-resina de Damar, betume da Judeia (asfalto natural) é óxido de
zinco, em percentagens sensivelmente de 60, 15, 7 e 18 por cento, respectivamente, sem possibilidades de se apurar a
proveniência. O
clima de paixões prejudica a serenidade necessária ao império da lei: é um
facto; mas, de qualquer modo, não era absurda a versão jornalística. Pela
minha parte, tinha um delito em concreto faltavam-se
as respostas: quem e era que circunstâncias? Com
demasiada frequência as pessoas substituem e abandonam ideias técnicas e
raciocínios, simplesmente por letargo mental. Eu, não. Teimosamente estava
disposto a aceitar e reflectir sobre todas as
hipóteses por mais imaginárias. Ordenei e esquematizei. Empreguei todos os conhecimentos
da natureza humana, reacções psicológicas, etc., ao
meu alcance, em interrogatório directo, com a
aquiescência da Polícia. Todos me passaram pelas mãos: queixoso, testemunhas,
acusado, excepção feita ao morto está bem de ver… E
eu tinha uma hipótese formulada ajustável. «Que o homem confesse e descubra os seus
pecados para alcançar o perdão deles, é comprar a graça de Deus por seu justo
preço» – disse o Padre António Vieira. Não acredito que a verdade que se procurava
se devesse a tal propósito, o certa é que terminou
por uma confissão, confirmativa da minha hipótese e encaixe perfeito. ?……… Não
faço perguntas. Que cada um de vós leia, resolva e apresente com as
necessárias justificações o respectivo relatório. |
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© DANIEL FALCÃO |
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