Autor Data Dezembro de 1948 Secção Competição Problema nº 5 Publicação Altura – nº 19 |
O ESTRANHO CASO DE FRITZ YULE Jim Mc Roy Este
é o meu último caso e por certo não o menos interessante. Estávamos próximos
do Natal e eu preparava tudo para a festa dos garotos. Lá em casa ia um
reboliço de caixas abertas, de rosas de papel e nuvens de algodão que haviam
de se transformar durante umas horas em neve recém caída
no pinheiro da sala. Enquanto os miúdos batiam palmas a cada novo floco que
tombava, eu ia esfarrapando o algodão e pedindo ao bom Deus que ninguém se
lembrasse de bater à porta deste pobre inspector em
descanso. Lá
fora estava uma noite escura de Dezembro, uma dessas noites em que se não vê
um palmo à frente do nariz e o ar, carregado de humidade, respira nevoeiro em
todos os cantos. O tempo estava estranho desde há dias: húmido até à
madrugada e seco a partir de certa hora, em que o nevoeiro subia e se
dissipava, deixando ainda que as estrelas sozinhas,
acusassem lá em cima a solidão da lua nova. Deram
as dez horas no relógio do «hall». E daí a pouco a
sala estava livre da miudagem que, sem sono, resmungando. Acabara por se
submeter ao horário regulamentar. Não me demorei em segui-la, porque me tinha
de levantar muito cedo. Quando
às cinco da manhã o despertador me acordou, ainda era noite e fazia frio.
Diabo de vida a minha! Lá fora, a noite abafava a rua em sombras; mas o céu,
limpo, prometia um verdadeiro dia de Natal. As
trinta milhas do caminho de Pittsville foram
comidas rapidamente, porque o nevoeiro já levantara e a estrada seca
oferecia-se às rodas. Às nove e meia estava de regresso. Mal sabia
o que me esperava. No meu gabinete, duas pessoas aguardavam com impaciência a
minha chegada: Brassley – o imprescindível
organizador das festas da nossa cidade – e a velha Thompson,
porteira de um prédio quase fronteiro ao meu. O
caso era simples e conta-se em duas palavras: Fritz
Yule – um escritor falhado que havia sido tudo,
desde batoteiro a bailarino e de ginasta de circo a chantagista – tinha-se
suicidado com uma punhalada. E a situação era duplamente embaraçosa: 1.º
- Porque era dia de Natal, e numa cidade pequena uma morte violenta estraga
todas as festas; 2.º
- Porque a vítima era o principal animador do espectáculo
dessa tarde. Todos estavam desolados; e compreende-se que Brassley
não fosse o mais conformado. Dei
uma corrida ao local; já se tinha espalhado a notícia, e alguns curiosos
espreitavam a casa, desde a rua, pretendendo adivinhar o que os polícias não
lhes deixavam ver. A
escada dava entrada para um «hall» que comunicava à
esquerda com o quarto de dormir e à direita com a cozinha. Esta dava para o
quarto de banho e para a varanda, ligada à escada de serviço por uma porta. Quando
a porteira subiu o pequeno-almoço – eram oito e meia – encontrou fechada a
porta de entrada, o que não era costume. Intrigada e com receio de que Fritze estivasse doente – ele sofria de uma doença
nervosa que lhe provocava grandes insónias, contra as quais todas as noites
ingeria um forte narcótico – chama-o várias vezes, mas sem resultado. A seu
pedido, o polícia de giro arrombou a porta. À
primeira vista, na casa nada havia de anormal. A porta estava fechada e tinha
a chave por dentro. No quarto de banho e no «hall»,
nada de anormal. Idem na cozinha, cuja porta dando para a varanda estava
fechada por dentro; mas dos fechos, ferrugentos, só o de baixo estava
corrido. Quando entraram no quarto de dormir, recuaram horrorizados. Na cama,
ensopado em sangue, Fritze jazia morto. Estava
deitado de costas, no lado direito da cama, de olhos abertos, e tinha ainda a
mão direita apertando o cabo do punhal, que estava cravado longamente no
peito, depois de o ter atravessado várias vezes. Os lençóis manchados de
sangue fresco; a roupa seca; pequenas manchas na esquerda; um livro na
cabeceira; um copo com um pouco de água; e o despertador marcado para as oito
horas. O
quarto era espaçoso e baixo, com menos de 3 metros de altura: a cama ao fundo, tinha em frente um pequeno fogão inglês, diante do qual
uma cadeira mostrava o assento ligeiramente enlameado. À direita, uma janela
baixa, que o polícia encontrara aberta e que já tinha fechado; dava para a
varanda; nesta, a porta que comunicava com a escada de serviço estava fechada
no trinque, como de costume. À esquerda, uma secretária com alguns livros,
uma máquina de escrever e papéis velhos. Nas gavetas, algumas cartas de
mulheres – Fritz era um conquistador terrível –
dois ou três originais de peças de teatro, uma pistola carregada,
fotografias, caixas de cigarros, um cachimbo e papéis diversos. Toda
a decoração era simples: apenas uma estatueta em cima da secretária, um busto
de Apolo a dominar o fogo e, em cima, um quadro de Cassat,
separado do tecto coisa de quatro palmos. O quadro
escondia um cofre íntimo, sem segredo e sem chave. Abriu-o; apenas meia dúzia
de papéis, algumas fotografias de mulheres com dedicatórias mais ou menos
imbecis, e cartas, bastantes cartas de todas as cores e exalando os mais
variados perfumes. Fritz era um desses
homens que passavam a vida a conquistar mulheres; era um coleccionador
de aventuras amorosas; e, como tal, elas só lhe interessavam enquanto tinham
mistério. Odiava os ruídos; por isso gostava das mulheres enquanto não
falavam… Adorava-as quanto detestava o ruído das campainhas; era tudo uma
questão de sensibilidade, costumava dizer. Muitos lhe queriam mal; e nesses,
havia principalmente «essas». Os
seus últimos amores tinham sido duas raparigas da cidade: Hellen
Craig e Sílvia Frost. A
primeira era uma morena franzina, de estatura baixa, meio adolescente ainda,
sonhadora; quando passava, os homens seguiam-na com o olhar. Estava noiva de
Frank Hinclair, o rico dono das garagens da terra.
Sílvia era o contraste: loira, alta, parecia uma nórdica que tivesse caído de
repente no meio da cidade; era uma mulher forte, decidida, dada aos desportos
e ao amor. Havia quem associasse ao seu nome certos escândalos; mas nunca
soube o que nisso haveria de verdade. Foram
estas as primeiras pessoas que ouvi. Ambas tinham estado numa festa de Natal,
até bastante tarde. Já há semanas que nenhuma delas tinha visitado a vítima.
Nada sabiam e tinham-se deitado no regresso da festa. Brassley
e a porteira confirmaram os primeiros factos alegados. Dizia-se
que Frank se zangara com Hellen, por ciúmes; fora
muito notado o vê-la entrar e sair sozinha – Frank só chegou às 2 horas e
ficou até de manhã, saindo com Brassley, que o
deixara em casa. Sílvia, por seu lado, também saíra tarde, como Helen, e
também dizia ter ido direitinho para casa. Até aqui, o interrogatório nada
adiantara. Resolvi ouvir a porteira. A
senhora Tompson tinha subido ao quarto da vítima,
passava da 1 hora; levara-lhe um chá quente, pois Fritz
se queixara das suas costumadas dores de cabeça. Quando a senhora Tompson saiu, Fritz já estava
deitado; disse-lhe ficar melhor com o chá e que já tinha tomado o remédio
para dormir. Que lhe faria bem, sempre seriam pelo menos oito horas de sono. Se
tinha a certeza de que tudo ficara fechado? Completamente; ela mesmo fechara
toda a casa e correra todos os fechos. Era tudo o que sabia dizer. Fritz tinha recebido um
telefonema na tarde anterior, e depois disso saíra apenas para jantar.
Voltara cedo e não fora à festa dessa noite. Ultimamente andava um pouco
fugido, como que receoso de encontrar alguém. Soube que tinha um sócio – um
tal Kent, já conhecido da polícia por burla e
tentativa de chantagem. Era um homem alto e forte, tipo «boxer», de mãos
largas e cara de negro. Interroguei-o e pareceu-me assustado. Passara a noite
no hotel, dizia. O porteiro tinha-o visto entrar, embora não pudesse jurar
que ele não saíra. Fritz devia-lhe dinheiro e
denunciara-o à polícia; mas – dizia ele, abrindo com esforço um sorriso nas
feições grosseiras – não era caso para matar um homem. Deixei
todos os interrogados no meu gabinete e informei-me do resultado da autópsia.
Causa da morte: várias punhaladas, incidindo no lado esquerdo do tórax,
dirigidas da esquerda para a direita, duas das quais apanharam o coração.
Sinais de luta: nenhuns; morte quase instantânea. O
caso complicava-se. Voltei ao local. Tudo na mesma, com aquele ar de abandono
a que a ausência do morto dava um ligeiro alívio. O despertador tocara até à
última. Uma fotografia da vítima olhava para o quarto. Sentei-me
num maple e reuni mentalmente as peças do caso. Não
sei quanto tempo estive assim nem porque me levantei tão agitado. Uma dúvida
tinha-se gravado no meu espírito. Podia ser que… O
mistério, pelo menos no que tinha de essencial, estava desvendado. Pergunta-se: 1.º
- O leitor acha que foi suicídio ou crime? Porquê? 2.º
- E no caso de ter sido crime, quem terá sido o criminoso? Porquê? |
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© DANIEL FALCÃO |
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