Autor Data Setembro de 1979 Secção Enigma Policiário [42] Competição 3º Problema Publicação Passatempo [64] |
MORTE NO TALHO Lumago Ampe – Que manhã clara!
O sol sorri no céu azul! É verão e a vida nesta pequena vila, aqui a dois
passos da fronteira, vai começar! No relógio da torre, batem nostalgicamente
as 9 horas. Como eu gosto de ouvir este som compassado, melódico, alegre! Seria
mesmo capaz de o ouvir dias a fio, sem parar! A
vida, aqui, decorre calma! Nunca acontece nada de relevo, tal como eu gosto!…
Fui colocado aqui, por causa do contrabando! Imaginem a alegria
que sinto por nunca ter nada com que me preocupar! Aliás, porque iriam os
contrabandistas passar por aqui os seus artigos, se têm dezenas de
quilómetros sem vigilância?… São
9 horas e 10 minutos! Vou dar uma volta pela vila… respirar ar puro! Isto
é quase um para… –
Sr. Fialho!… sr. Fialho!…
Mataram o sr. Pedrosa! –
O quê?… Pode lá ser?… O Pedrosa?… Bem, vou já! Diz-lhes para não tocarem em
nada!… (Bolas! Um crime! Céus, que hei-de fazer?…
Uma manhã tão bonita e… Ainda por
cima um crime! Quem diabo… Mas!… Aquela cara
não me é desconhecida!… Oh! É o Insp. Fidalgo!) –
Inspector! Inspector
Fidalgo! –
Meu caro Fialho! Como vai essa saúde? –
Boa!… Pelo menos até há pouco!… Imagine que mataram o dono do talho! Vou
agora mesmo para lá!… Se o Inspector… –
Bolas, homem, nem é tarde nem é cedo! Vamos a isso!… Sim,
foi assim que tudo começou! Eu, o simples agente Fialho da P. J., a ver como
o Insp. Fidalgo resolvia um caso que me parecia
indecifrável! «Não há crime perfeito! «– dizia-me
ele. «Se não se resolve por simples dedução, resolve-se cientificamente!
«Mas, vou contar tudo: Dirigi-me
com o Insp. para o local
do crime. O talho era vulgar. Um estabelecimento pequeno, antiquado, com o
chão de cimento, coberto de serradura, onde se desenhavam dezenas de pegadas.
Em frente da porta metálica, com dois grandes vidros, estendia-se um balcão a
toda a largura da loja. Do seu lado esquerdo, havia uma pequena abertura, de
acesso ao interior. No tabuleiro do balcão, com cerca de meio metro de
largura, repousavam grandes peças de carne. Do solo ao cimo do balcão distava
metro e meio. De um e de outro lado, ao longo das paredes, pendiam enormes
peças de carne, suspensas de fortes ganchos. Por baixo de cada peça,
repousavam pequenas pingas de sangue, que escorriam do que restava de animais
recentemente mortos. Ao fundo, por detrás do balcão, uma grande câmara
frigorífica, da qual não víamos senão a metade superior. Entre o balcão e a
câmara, jazia (de costas e com os pés virados para a passagem de acesso ao
interior), um homem gordo, com cerca de 1,70 m de altura. Por alturas do
coração, o enorme facalhão de cortar as carnes estava enterrado até ao cabo. Depois
de observar esta cena, vim até à porta tomar um pouco de ar (bem precisado
estava!). Foi então que surgiu a Sra. D. Arlinda, uma velha que não fazia
mais do que passar os dias a espreitar os outros! Morava em frente do talho
e, por isso, talvez tivesse algo de útil a dizer. Levei-a para dentro do
talho, chamei o Insp., e ouvimo-la: «– Eu vi tudo o que
se passou! Bem entendido que não vi quem o matou, mas vi quem aqui entrou! O
primeiro foi o Armando, o distribuidor de carne… Entrou 3 vezes, sempre
carregado!… Foi entre as… 8 e 30 e as 8 e 35. Mas não pensem que costumo
espreitar outras pessoas!... Calhou!... Mas, ia a dizer… Ah! Sim… Depois
entrou o Sr. Carlos, o sobrinho do morto. Eram 8 e 45! Demorou-se cerca de 10
minutos! Ao sair, cruzou-se com um senhor baixinho. Para aí… 1,60 m, não
mais! Demorou-se 2 ou 3 minutos. Intrigou-me, porque foi à porta 3 vezes! As
9 horas, entrou a Sra. D. Teresa, a esposa do
boticário!... Foi ela que deu o alarme!... Por sorte, ia a passar o Sr. Manuel,
o polícia, que veio cá espreitar dentro e não deixou entrar mais ninguém!
Sim, posso descrever-lhe o desconhecido… Usava um fato cinzento claro e uns
sapatos brancos e pretos, daqueles que têm furos por cima!…» Despedimo-nos
da D. Arlinda e, enquanto o sr. Manuel ia procurar
os intervenientes, assisti a um estranho ritual, em que o principal
intérprete foi o Insp. Fidalgo. Começou por tirar
de uma máquina fotográfica (tirada da sua grande mala) e disparou-a, de todos
os ângulos possíveis, captando imagens do corpo. Calçou umas luvas pretas,
pegou num frasco de pó branco e num pincel de pelos de tamanho médio. No
frasco, li «Carbonato de chumbo». O pincel, vim a saber mais tarde, era de
pelos de camelo. Introduziu o pincel no frasco e passou ao deleve sobre o cabo da faca. Surgiram então cristas
papilares, que se foram tornando mais nítidas à medida que se ia passando o
pincel, até que apareceram impressões digitais. Seguidamente, passou uma
esponja embebida em tinta preta pelos dedos da vítima, marcando-os, então,
num papel. Demorou alguns minutos nas comparações… Por fim, virou-se para mim
e disse um lacónico NADA. Eram impressões digitais do sr.
Pedrosa! Voltou-se, em seguida, para as pégadas
(ambos tínhamos tido o cuidado de não as destruirmos). Mantivemos uma de cada
tipo das existentes do lado de dentro do balcão. Por comparação, notámos que
um dos tipos de pégadas era dos sapatos da vítima.
Outro, da Sra. D. Teresa (os saltos altos e finos, assim o indicavam), como
mais tarde confirmámos. Aliás, esse tipo, não aparecia além da esquina
interna do balcão. O terceiro tipo é que nos intrigava! O Insp.
debruçou-se sobre ele. Viu a posição da pégada. Colocou ao seu lado uma régua graduada. Tirou
várias fotografias verticalmente, de modo a apanhar não só a pégada, mas também a régua. Após isso, foi à rua, pegou
numa mão cheia de terra, molhou-a e dispô-la em volta da pégada,
formando como que um muro! Posto isto, pulverizou-a com «SOLUTO ALCOÓLICO DE
GOMA» (conforme li no rótulo). Enquanto secava, deitou num almofariz, água, a
que foi adicionando gesso em pó, a pouco e pouco,
mexendo bem. Concluída a operação, espalhou o gesso sobre a pégada. Enquanto solidificava, chegou o sr. Manuel com os intervenientes (salvo o desconhecido).
Fomos ouvi-los: ARMANDO
(rapaz alto, com mais de 1,85 m de altura. Vestia uma bata branca, toda suja
de sangue, calças azuis e uns sapatos de sola de cabedal, pretos) – «Eu… vim
aqui trazer carne. O sr. Pedrosa estava atrás do
balcão e… não saiu de lá… Sim, já havia serradura… o Sr. Armando punha-a
antes de eu vir, para o sangue não secar no cimento… Fiz… 3 viagens da
camioneta até aqui… Não! Não vi nada de anormal!» CARLOS
– (rapaz de 1,80 m de altura, sobrinho do morto. Vestia uma camisa de manga
curta e umas calças de ganga, de cor azul. Calçava uns sapatos castanhos, de
sola de cabedal) – «Não sei de nada!… Quando entrei, o meu tio estava a
cortar carne… Estive a discutir com ele! Mas, pacificamente, nada de
confusões!… Sabe, ele queria que eu viesse trabalhar com ele, mas… só a visão
de sangue horroriza-me!… Isso é fácil de responder… vim pedir dinheiro
emprestado… Sim, deu-mo! Vi um homem pequenino. Não reparei muito bem nele.
Mas, se o ver reconheço-o! Andava de claro e usava sapatos brancos e pretos,
de sola de cabedal… lembro-me dos sapatos, porque eram os dos meus sonhos!… Até… mas… olhe!… ele vai ali… é aquele que ali vai! Saí pela porta fora e
pedi ao sr. que me
acompanhasse. Não fez objecções. O Carlos saiu e
escutámos o estranho e curioso indivíduo: Senhor
CARNEIRO – (correspondia exactamente às descrições
feitas) – «Sabe, eu era muito amigo do Pedrosa. Desde garoto! Passei por aqui
e lembrei-me de o vir ver!… Quando entrei, não
estava cá o meu amigo. Olhe, ia a sair aquele rapaz que ali está! Resolvi esperar!… Fui duas ou três vezes até à porta, não fossem
pensar que eu estava a roubar o homem… Como não aparecia, fui dar uma volta
pela vila… Agora, vinha para cá, quando… soube a… triste notícia!… Sim,
reparei que o rapaz que está ali (o Carlos) entrou naquele café (e apontou
para o outro lado da rua)… O quê?… na manga do casaco?… esta mancha
no botão?… mas… eu não tinha dado conta… SANGUE?… mas… então… então julga que fui eu que matei o meu amigo!!! De bom grado!…
AQUI TEM O CASACO!!!». SRA.
D. TERESA – (baixa, 1,65 m de altura. Vestia um casaco de malha branca e uma
saia castanha. Calçava uns sapatos de salto alto de cor branca) – «Estranhei
não ver o sr. Pedrosa!…
Mas, como podia ter ido a casa, ou outro lugar, dirigi-me directamente
para o lado de dentro do balcão… Sabe, é que o sr.
Pedrosa costumava guardar a carne que eu lhe pedia de véspera, ali, atrás do balcão
(e apontou para um local, junto da abertura) e, por isso, fui lá para ver se
ele ma tinha posto lá?… Nem reparei se lá estava,
porque fugi logo lá para fora!…Por sorte ia a passar o sr.
Manuel, que correu cá para dentro, empinou-se no balcão e espreitou por cima
dele (ele tinha quase 2 metros de altura e por isso podia dar-se a esse luxo!!). Veio logo a correr para a porta, e… não deixou
entrar ninguém?… Depois mandou chamá-lo a si…» O
Insp. ficou pensativo…
olhou o balcão… esfregou os olhos… endireitou as costas e caminhou,
lentamente, para junto da «sua» pégada! Com um
pequeno palito mediu a consistência do gesso… vagarosamente, retirou-o,
ficando com um molde exacto da pégada!
Mediu-a cuidadosamente… 30 cm de comprimento... fechou
os olhos… os lábios mexiam-se a um ritmo assustador! De repente…
escapou-se-lhe uma palavra esquisita, algo como «PARVILE»! Pensei que fosse
francês! Talvez um desabafo! Só sei que pegou numa folha de papel e começou a
escrever números sobre números! Subitamente, deu um salto e começou a falar
alto: –
«Senhor Manuel! Mande levar o corpo daqui! E… diga aos intervenientes que nem
pensem em sair da vila!… Caro Fialho, venha comigo!… » Saímos
do talho. Todo o caminho fomos em silêncio. Não percebi se era por ter já uma
pista, se por estar no zero! Quando chegámos ao meu escritório, o Insp. colocou o casaco do Sr.
Carneiro sobre a secretária e olhou demoradamente a mancha castanha que
cobria todo o botão da manga direita. Abriu a sua «milagrosa» mala. Pegou num
canivete e raspou a película castanha. Pequenos fragmentos cairam sobre uma folha de papel, colocada anteriormente.
Isolou um dos fragmentos e sobre ele verteu uma gota de um líquido,
cuidadosamente retirada por um conta-gotas, dum frasco castanho, cujo rótulo
indicava «SOLUTO ALCOÓLICO DE BENSIDINA»! Seguidamente, adicionou-lhe uma
gota de «PERÓXIDO DE HIDROGÉNIO), e, como por encanto, surgiu… um belo
líquido de cor azulada! Ouvi o Insp. exclamar um «Ah», que me soou a falso! Correu para a mala,
tirou uma lâmina de vidro, onde colocou mais um pedacinho da película
castanha, cobrindo-a com uma lamela. Após isso, introduziu entre a lâmina e a
lamela uma gota de «ÁCIDO ACÉTICO». Aqueceu com o próprio isqueiro, durante
alguns segundos, após o que colocou a lâmina num microscópio. Regulou-o… Olhou
atentamente… pareceram-me séculos!… De repente…
soltou mais um «Ah», que me pareceu ainda mais falso que o outro!…
Com um gesto, convidou-me a ver… Confesso que nada vi de especial que
merecesse, sequer, a nossa atenção. Apenas uns cristais prismáticos, alongados,
de cor castanha, nos quais vi montes de células, umas brancas, outras
avermelhadas, com uns pontos escuros no centro… Cada vez percebia menos por
que diabo o Insp. fizera
todas aquelas experiências! Levantei os olhos para ele, em busca duma explicação!
Fui dar com um sorriso alegre, talvez irónico!… Devo
ter feito uma cara patética, porque ele lançou uma gargalhada e disse: –
Caro Fialho, não me olhe assim!… Já sei quem matou o
dono do talho! Fiquei
estupefacto!!… Espetei os olhos no microscópio, como que
procurando resposta para as dezenas de perguntas que me afluiam
ao cérebro!… Fiquei a aguardar! Tinha resolvido
esperar!… –
Vamos, caro Fialho! Você correu os mesmos sítios que eu,
fizemos tudo juntos… Logo, deve saber também quem é o criminoso!…
Vamos,
faça lá um esforço! Só quero que… –
Pronto… pronto… desisto… diga lá quem é o criminoso e porquê respondi eu, de
má catadura! –
Está bem… está bem… vou-lhe então dizer, subordinando a minha exposição aos
seguintes tópicos: 1º
– Quem é o criminoso? 2º
– Porquê? |
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© DANIEL FALCÃO |
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