Autor

Mário Campino

 

Data

Outubro de 1978

 

Secção

Enigma Policiário [31]

 

Competição

Taça de Portugal em Problemas Policiários e Torneio Paralelo

1º Problema

 

Publicação

Passatempo [53]

 

 

NÃO HAVIA MISTÉRIO

Mário Campino

 

Grande e negro o cavalo batia as grossas patas no empedrado, lançando o farto rabo em círculo para enxotar o mosquedo.

Em mangas de camisa, barrete torcido nos dedos calosos, Manel Hortelão aguardou os compadres.

O combóio ronceiro acabara de chegar à Estação da Ribeira. Aconchegou as duas malas na charrette e ficou a olhar, esperançado, a porta da taberna.

– Eh rapaz, vem molhar a goela! – Acenou compadre Casimiro.

Manel não se fez rogado.

O interior da taberna estava fresco. Convidativo. Com um copo do «branco» a borbulhar, nas grandes mãos, compadre Venâncio gesticulou convidativo.

– Então, que vai?

Uma ougardente sa s’importa

Capela, taberneiro, de beata ao canto da boca, meio mole, indiferente e silencioso encheu o copo.

Manel bebeu de um trago e deu um estalo com a língua.

Casimiro tirou uma nota do bolso, consultou Venâncio com o olhar e ordenou:

– Dose repetida para a viagem.

E foram-se.

A trote baloiçante atravessou a Ponte D. Luis sobre o Tejo de espelho, tomando o caminho de Almeirim. Os choupos esguios das bermas, abóboda viva, aprazível, tonificante, iam ficando para trás.

Venâncio esticou com deleite as pernas compridas, enchendo o alambazado peito de ar puro.

Casimiro olhava extasiado o mar verde, ora à esquerda, ora à direita.

Uma voz cristalina, do invisível, cantava:

«Ó parreira dá-me um cacho,

Ó cacho dá-me um baguinho…»

 Logo outra, desta vez máscula, respondeu:

«Ó amor, dá-me os teus olhos,

P’ra ajuda do caminho…»

Manel, matreiramente sorriu e incitou o cavalo.

– Arre, cigano…

Avô Palaló esperava-os. Trigeiro, pernas abertas em geito da sela, atarracado, vigoroso; ar grave, não desprovido de simpatia, transformara-se em riso aberto cumprimentando os compadres com abundantes palmadas.

Casimiro, major aposentado, pequeno e seco, aprumado, bom «garfo», melhor «copo», era o elo indispensável para os afilhados do avô nos «dias das sortes». Venâncio, comerciante da praça lisboeta, bonacheirão, o companheiro inseparável do último. Caçadas, matanças de porco, por tudo e por nada, com festa ou sem festa, era vê-los de procura de Almeirim. Os três juntos era festa. Manel Hortelão já havia desengatado o cavalo, afagando-lhe o pescoço a caminho da estrebaria. Era o empregado de confiança, o homem dos biscates, o tratador da horta. Pequeno e nervoso, começava a lide pelas sete da manhã com o trato do gado e não parava todo o santo dia. Todo músculos, era capaz de pegar num cacete, se lhe chegava a mostarda ao nariz, e atirar-se ao mais brigão.

Zéfa, olhos negros de cigana, blusa de chita e saia rodada, acabou de pôr a mesa e de assar as febras. Não se ficaram os compadres por conversa.

Noite dentro, no páteo, a gaita de beiços do Zé Maria era um desafio ao bailarico. Pouco depois ouvia-se o barulho dos pés, gargalhadas… o rastilho pegara… «bailarico», «o vira de quatro», o «malhão»… Às tantas rompe a música do «fandango»

Não se contiveram. Pegaram nas cadeiras.

A rapaziada, sangue na guelra, pula, bate os pés, atiram mútuas momices de troça: – «Eh home alavanta os péis!» «…toma lá qué pa seres babocas…». – «Ich… tão praqui estes senhores e a gente mal amanhados»

A um sinal do avô, Zéfa foi buscar um «cagirão», saudado com palmas. Canecas de água-pé foram distribuídas. Venâncio e Casimiro iam despejando a garrafa da saborosa aguardente, deliciados. Manel olhava guloso: aguardente era o seu viciozinho secreto.

O avô informou que a gabada tinha trinta anos de casa.

– Foi destilada para o casamento da minha filha Rita – explicou. – Ainda há duas garrafas na adega para dias de festa!

Noite cálida. O luar, alagado de luz, espiava…

 

Sol fora, o avô, como de costume, deu uma volta pela adega e demais arrecadações. Tudo em ordem. Montou o cavalo e dirigiu-se para a propriedade mais próxima – As Milheiras. Em casa ficaram o Manel e a Zéfa entregues às ocupações do dia. Não se despedira dos compadres, tencionando encontrá-los posteriormente. Voltou cerca das 10 da manhã e, com surpresa, não os encontrou. Haviam saído deixando recado à Zéfa que iam com os Andrades a Coruche, com vistas a um negócio de feijão.

Foi em seguida, na rotina dos seus hábitos, ao entrar de novo na adega, que deu pela falta de uma das famosas garrafas de aguardente. Espantado, chamou a rapariga.

Eh, Zéfa, quem veio aqui à adega?

Aninguém, q’eu visse. Ah! Deve ter sido o Manel, logo de manhãzinha p’raceu-me vê-lo atravessar o páteo. Ah! Devia ter dedo, inda tinha a camisa dos domingos que levou a buscar os compadres…

Avô ficou cabisbaixo. Foi ao quarto do empregado, deu volta à roupa, lá estava a camisa arrumadinha.

Dirigiu-se para a horta anexa ao vasto páteo cimentado, para lá do pequeno muro branco.

Manel Hortelão cavava fundo a terra negra. Parava para levar um pequeno traço sujo ao nariz, limpava o suor da testa e continuava com diligência, sem olhar o patrão que, a dois passos do cavador apreciava o trabalho. Notou-lhe o pingoso persistente do nariz. 

– Olha lá, rapaz, que tens tu?

Um rais ma quême… a «bonita» deu-me cum corno nas ventas, q’ando lha dava ração… desde o nascer do Sol que tou insopado.

Isso passa com um trago de aguardente, daquela boa, não achas?

O campónio olhou-o surpreso e duvidoso. Novos pingos de sangue negro voltaram a cair.

Humanizou-se. – Olha, vai lá à Zéfa que te ponha aí um pacho de água oxigenada. Que diabo de valente és tu que se deixa colher por uma vaca leiteira?!…

Vossemecê… Desviou os olhos envergonhado. Aprumou-se, pegou na enxada e cravou-a violentamente na terra.

Deixando o homem entregue à sua raiva surda, avô Palaló dirigiu-se da horta à estrebaria, sorrindo satisfeito à medida que avançava, depois, mudando de expressão, algo perplexo, percorre o páteo em todos sentidos, sem encontrar mais o que procurava. Voltou ao portão que dava para a horta e olhou toda a extensão do páteo soalheiro: à direita os currais estábulos do gado, depois os quartos do pessoal logo pegados à habitação principal em frente, à esquerda a adega com o seu largo portão verde.

Sorriu. Não havia mistério. Comentou entre dentes: – Quem disse: «não te fies nas aparências»? Sim, aparências?…

Não longe, um pássaro cantava o eterno hino ao trabalho e à vida.

 

1 – Quem pensa ter desviado a garrafa de aguardente?

2 – Justifique.

3 – Como se teria passado o caso?

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO