Autor Data Setembro de 2010 Publicação Público-Policiário (2001-2005) Edição Clube de Detectives NOTA. Versão integral do problema Trágica Matança, publicado na 692ª edição da secção Policiário, no dia 17 de Outubro de 2004. |
O INÍCIO, O MEIO E O FIM Mário Campino Homenagem
ao Zé-Viseu (Gustavo Barosa), um amigo de sempre! Dedicado
a Domingos Cabral (Inspector Aranha/Zé dos Anzóis),
responsável moral pelo reaparecimento do Avô Palaló, cuja última história escrita data de Dez-91. O
INÍCIO Um largo… Um largo quadrangular.
Terra batida, calcada a pés humanos, patas das bestas e carroças, poucas, dos
dias de mercado. Chão exposto ao sol que o aquece e à noite o arrefece. Terra
e pó que o vento agita, deixando a descoberto buracos dos paus espetados
pelos mercadores e vendilhões, para apoiar os tabuleiros das mercancias,
pendurar as bugigangas. É chão que não sente… À volta do largo, solares
antigos, casas de comércio barato, tabernas com ramos de loureiro nas
portadas, argolas nas paredes para atar as arreatas dos animais. O largo, demasiado nu, não
tem alma; mas tem nome… Praça da República! Ali, onde, outrora, pura ironia!, se passeava El-Rei D. João I, frente ao então
existente Paço Real. Aos Domingos, é a “praça
dos homens”. Nova modalidade da “venda de escravos”, onde os trabalhadores
rurais se submetem ao tormento da escolha e ajuste de jorna. O aluguer do
corpo; um ajuste sem ajustantes – só o lado forte
decide. Um jogo de pega ou larga, que se aceita, sem alternativa! O sol rompeu a manhã. A
“praça” vai prolongar-se até que o velho relógio da torre badale as oito. Os
homens vão-se aproximando. Juntam-se em magotes, uns; arredios, outros.
Palavras banais. Olhos a fugir da vida; homens curvados, como se carregassem
o mundo às costas, dobrados pelo luxo da enxada, no revolver
da terra dura. Velhos, antes da idade; fatalismo consumado… Um buraco fundo,
muito fundo e largo, vai-se-lhes abrindo nas entranhas! Medo, que são garras
interiores. Medo… de não lhes caber o direito às migalhas de uma miserável
jorna, que equivale ao sonho – porca de vida! – de
um naco de toucinho rançoso para desfastio das sardinhas moídas, umas côdeas,
caldo de couves sem gosto. Sonho acordado: “Sê Jaquim,
bote meia do branco p’ra este melro, ca bem
merece”! E… se não encontrar patrão? Coçar o cu
pelas esquinas, esmolar biscates, a troco de umas moedas, que não saciam as
bocas da famelga, afogar desgostos nos copos fiados – a falta de comida, que
acelera a bebedeira – chegar a casa com o sangue esquentado pelo vinho,
tem-te não caias, pernas bambas, a desancar na mulher e no que lhe aparece
pela frente… Os capatazes, acobertados
pelos lavradores, fazem grupo à parte. Trocam impressões, riem ruidosamente.
Aproximam-se, como que a medir terreno, e voltam ao grupo. Um ou outro homem entra no
largo, “a fazer peito”. O “mata-bicho”, de um copo
da rija, emborcado na Rita Pirua, deu-lhe um alento
fanfarrão momentâneo… Aproxima-se um capataz.
Olha os homens por cima das cabeças, desinteressado. Com um ronco de
garganta, puxa um escarro e cospe no chão. Goela aclarada,
brada: “uma dúzia p’rá inxada;
cava da vinha. A seco, dois mil reis… tu” – aponta, com a ponta da verdasca,
os homens, como separando gado no curral. “Vinte na mêma” – ouve-se ao lado. – “Quinta do Caim… tu, Jaquim; Tu, aí, Toino da Bica, tu, tu. Tu, tu… milhadura no marmelo”. Os homens separam-se, aliviados,
tomam o caminho da taberna, em tropel, como ovelhas cismadas no trote do
redil, para beber o quartilho, chancela do contrato. “Bote aí an cartilho! P’ró Caim!”, dirão, como se o
mundo lhes pertencesse… Num outro momento, beiços gretados, mãos doridas dos
calos, corpo quebrado, a gemer, com as mãos agarradas às “cruzes”,
perguntar-se-ão: “Vale a pena rebentar, p’ra morrer
à fome? Raios ta partam, home”! Ele, o Manel, dezasseis
anos, baixo, mas entroncado, viera à “praça” pela primeira vez. Ficara-se a
tentar compreender e vira-se metido num grupo “p’ró
Sr. João Andrade”. Outro não tivera a mesma sorte: “Tu, nã,
Grilo. Tiraste dia p’ra fazendeiro… ele que ta dê
trabalho O mê rancho nã é o da Joana!”. – Mas, sê J´ão Cebola, com´é ca vou dar
de comer ós ganapos? Tenha dó, home… O capataz não cede. Zé
Grilo andou por ali, tonto, a oferecer-se. Uma lei não escrita, impiedosa,
afastava-o, como se tivesse lepra… Hora chegada, arrasta-se para fora do largo… ranho e lágrimas misturam-se-lhe
no rosto tisnado. Duas mãos caem-lhe nos ombros. São o Manel e o Toino da
Bica: – “anda… bebes a milhadura, quê nã bebo”, diz o Manel. O
MEIO O destino tem caprichos! A
semana decorria. Toino da Bica cuspia nas mãos calejadas, bufava e ia pensando
para consigo: “su parente Delfina m’abonasse a
burra, dós caxotes na bunda,
a ganfar sardinhas à porta do friguês!”
Conseguira a burra e uns trocos, com juros, para a mercadoria. Trocara a
burra por mula própria… e depois viera a carroça. Aventurou-se em outras
áreas. Sorria à sorte. Zé Grilo, entretanto,
andara léguas, qual rafeiro abandonado. Os poucos dias de trabalho da mulher
davam para um caldo de saramagos, umas folhas de hortelã, para dar sabor,
deixando a fome a descoberto… Em peregrinação, desceu a Rua das Faias. D.
Rosa Vieira, recém-viúva, carregada de luto, tentava esconder a solidão,
raspando as urtigas do abandonado jardim. Zé estacou. Abriu o pequeno portão
de ferro e, com um seco – “cum lincença”, tirou a
enxada das mãos da absorta senhora, que cruzou os braços e ficou a vê-lo
atacar as ervas, com genica. Recatada, foi-se
elucidando. Entrou em casa, trouxe pão e queijo. Zé encontrou coragem para
acenar negativamente, concentrando-se em acabar a limpeza. “Vossemecê nã m’agêta on
canivete p’abicar as canas pós cantêros?”
Demorou um pouco a procurar e estendeu-lhe uma faca de mato, comprida e folha
larga, que tirou de um coldre. Zé olhou, com apreço, e exclamou: – “catita,
sim sinhora”. Atirou-se à tarefa, faca na dextra,
cortou e afiou as canas, espetando-as. Quando o sol começou a esconder-se, D.
Rosa aguardava com um saco, onde colocara batatas, feijão, bacalhau e algumas
moedas. Zé pegou no saco e recusou o pagamento: – “nã
s’hôra! Nã fuim ajustado”. E escapava-se, comovido. D. Rosa fez-lhe
frente: – Escuta, Zé! Amanhã, se
quiseres, continuas. Depois, vamos recuperar a horta, podes plantar couves
para ti… Leva a faca – era de meu marido. Fica para ti, mas não a percas! E
vamos combinar uma jorna… Zé correu para casa,
abafando o alvoroço interior. D. Rosa faria mais: ensinou-o, pacientemente, a
ler e escrever, a comportar-se. Facultou-lhe a biblioteca do Doutor Vieira.
Ficou viúvo, quando os filhos estudavam, a expensas de D. Rosa. E, quando
esta, por sua vez, foi ao encontro do Criador, Zé Grilo mal acreditou que a
benfeitora, sem herdeiros directos, lhe deixara
todos os seus bens. E o Zé, a quem o rapazio apontava como “o homem da faca”,
passou a ser o “Sôr Zé Grilo”. E o Manel? Semana a findar. Enxada
acima, enxada abaixo, na terra dura e o Manel, em ritmo certo, quase sem
esforço. Atrás, o vozear, as enxadas dos camaradas. Uma voz elevou-se: “Eh, pára! Pára lá o macho! Se cavas
tudo, amanhim nã há trabalho!!!” Chico Abegão, perto, andara
de olho no moço, com uma proposta na cabeça. – “Auga! Auga! Atão?”
Reclamou uma voz rouca. – “Aí vai… nã morres da seca”… a “Julha
Carapinha”, de cântaro à cabeça e mãos nos quadris, airosa, trigueira,
distribui água. Aproximou-se do Abegão, a encher o púcaro de lata,
entornando-o, a olhar para o Manel: – “Tamém
queres, Manel”? – “Ná
quero… quero a ti!”, respondeu,
corando. A rapariga replicou, de imediato: – “Ora… ora… o Palaló!
O frango apensa ca tem crista de galo”! E foi-se,
enchendo o ar, com voz cristalina… “Coração qu’é meu, é teu Coração qu’é
meu, teu é; O meu ca ti é leal O teu ca de mim, nã é” – “Rais
partam a cachopa”, exclamou Chico Abegão. E aproveitou a embalagem para
desafiar: – “Olha lá… vais comigo p’ra Salvaterra?
O sô J’ão Andrade vai meter searas… abona p’rá gente ma leira p’ró melão…
s'arranjar uns patacos… que dizes”? Manel reflectiu um só instante: – “Conte comigo, sô Chico”. Dois anos depois, as searas
de melão deram-lhe para a compra da terra das Milheiras. Chico Abegão morreu,
em glória, nos cornos de um toiro tresmalhado. João Andrade convidou-o para
capataz… depois feitor. Casou com a Júlia. Foi pai… avô: o Avô Palaló. Chega a patrão. Rendeiro
nas Ferrarias, proprietário do Foral Velho, Milheiras. Rosto grave e coração
generoso! Íntegro, inteligente, observador e intuitivo… era respeitado. E
O FIM Quarenta anos depois do
início, o velho largo fora transformado em jardim público. Avô Palaló olhava-o, de longe. A mente, essa implacável
máquina do tempo, leva-o do passado distante ao recém-pretérito, ensombrado
por fatal nuvem negra. Toino da Bica, com estúpida cupidez, alheio a
conselho, metera-se em negócios obscuros, águas turvas, que o arrastaram na
enxurrada das dívidas, com o Zé Grilo, o confiante fiador. Toino refugiou-se
na bebida e voltou às sardinhas. Zé, pleno de angústia, abalou para Lisboa.
Perdera um filho. O outro, estudante de Engenharia, ia saber o lado amargo da
vida. Avô Palaló,
ao voltar de uma estadia na Herdade das Ferrarias, soube dos acontecimentos.
Moveu influências – em vão. O Casimiro escrevera-lhe, entretanto, para
anunciar que o Zé vivia com o filho. Este deixara o curso e empregara-se numa
tinturaria industrial de têxteis, algures em Xabregas. No dia seguinte, partiu ao
encontro do Casimiro, para procurarem o Zé Grilo. Encontraram-no, magro e envelhecido,
no armazém da empresa, onde criara simpatias, esperando a saída do filho. Avô
Palaló descortinou, por debaixo do casaco puído, a
inseparável faca, símbolo único de saudosa recordação. Comoveu-se, mas não
fez observações e abraçou o amigo, lamentando a separação do trio. Não
julgava que o incidente com o Toino criasse ódio e pediu que se lhes
juntasse, na matança do porco. Zé, de cabeça baixa, cismático, envolvido
entre “a mão que dera e a que tirara”, acabou por ceder. Para o Avô, fora um
passo positivo. Verão que se extingue,
Outono desperto… e é chegado o grande dia. No mundo rural, a matança
do porco é dia de festa. Ainda o sol se levantava, preguiçoso, por detrás das
árvores a despirem as folhas, já o Zé Maria afinava a gaita-de-beiços, a caminho
das Milheiras. Zefa aprontara, na sala de entrada,
sobre a grande mesa, garrafas de aguardente e abafado, figos secos e
torresmos, para o “mata-bicho” de boas vindas. No
quintal, o Manel Hortelão empilhava carqueja, acendera a fogueira de cepas
para o braseiro das assaduras, que antecede o almoço. Broa, canecas de barro
para a água-pé (13º, para aquecer!) sobre a tripeça. E, quando Rita chegou,
com dois canjirões cheios, Joaquim Carrapato, o matador de serviço, que já
afiara a faca “matadeira” por duas vezes,
aproximou-se: – “Memo a calhar… enche aí inté às bordas! Tô cá com uma gana!” Bebeu e foi prender
o chambaril na figueira grande, para pendurar o porco, depois de morto. Avô Palaló foi ao pocilgo dar uma palmada no dorso da vítima
em perspectiva, como que a despedir-se. Surgiram o
Firmino e o compadre Maximiano, a Emília e o Amândio, todo encasacado. O
Venâncio e o Casimiro chegaram, enfim, com o Zé Grilo – Zé e a sua faca. Este
lançou um tímido “ora viva, pessoal”! Aqueles distribuíram abraços e gargalhadas.
Quando o Toino da Bica apareceu, um tanto “carregado”, da passagem pelas
tascas, para ganhar coragem, ficou-se à porta, a mastigar uma cabeça de alho.
Foi o vizinho Serôdio que o empurrou para dentro, murmurando entre dentes: –
“Havera qu’im t’abrisse
os cornos”! Foi Zé Grilo quem salvou o momento de embaraço, estendendo ao
Toino um copo da “rija”. Este retribuiu com um punhado de passas. “Tudo em
paz”, pensou o Avô, satisfeito. E, em voz alta: – “vamos ao bicho,
rapaziada!” Abre o cortejo o Zé Maria,
soprando, furiosamente, na gaita. O porco é laçado pela pata traseira, à
saída do pocilgo, derrubado e atado de pés e mãos, em berraria infernal, do
bicho e dos homens, e atirado sobre a banca. O focinho é amarrado com um
arame, para evitar que morda, e a zona onde vai ser cravada a faca lavada e
limpa. O Carrapato espeta a “matadeira”, certeira e
profunda! A torrente de sangue cai no alguidar de barro, onde se colocara um
pouco de sal, vinho e água, que a Zefa mexe, com a
colher de pau. A faca entra mais funda… a vida do animal extingue-se. O
sangue deixa de correr e Zefa tira o alguidar, de
cujo conteúdo sairão as morcelas. Transportado para umas tábuas, o porco é
musgado, de um lado para o outro, com carqueja ardente. Raspados os pelos,
arrancadas as unhas, volta à banca para lavagem do coirato, com água e sal,
esfregando com bocados de cortiça. Limpo, “faz-se o rabo”, é pendurado pelas
patas traseiras no chambaril e começa a ser aberto e desmanchado, tirando-se
as vísceras, extraindo-se o fel, as tripas, o fígado… Os rins são recolhidos
num tabuleiro de madeira, que as mulheres escolheram e tratam. Os homens
andam à volta, até que o Carrapato retira umas febras. – Tira uma febra para dois…
para mim e o Toino, pede o Zé Grilo. – Recebida a carne, o Toino polvilha-a
com sal e é posta nas brasas. O Zé tira a faca do coldre, retira o papel
vegetal que a protege e queima-o nas labaredas da carqueja sobrante. Assada a
carne, tira-a com uma vide e volta-se para o Toino: – Que lado queres? Toino responde: – “o mais
gordo”! E, sem se importar com a quentura, pega no pedaço de carne escolhido.
O Zé experimenta o fio da faca no polegar esquerdo, segura a outra ponta da
febra, queima-se, lambe os dedos e volta a agarrá-la, utilizando a faca de
baixo para cima, como um canivete. Lentamente, corta a carne em duas metades.
Comem com deleite. Toino devora a sua parte, quase sem pão. Pega numa das
canecas que o Serôdio acabara de atestar, bebe e deixa-a cair, com um grito…
um urro de vómito não consumado. Vacila, com a respiração estertorosa. Ia
cair, se o Avô Palaló, que observara com agrado a
partilha da carne, o não amparasse. Em convulsões intensas, foi levado para
um quarto e estendido na cama. As mãos estavam frias, os olhos muito abertos,
de pupilas dilatadas pela perturbação respiratória. – Ca ganda carraspana –, comentou o Serôdio, que não morria de amores
pelo Toino. O patrão Palaló pediu que trouxessem café bem forte. Mas, quando
chegou, foi impossível dar-lho a beber – o homem espumava e debatia-se, como
de crise epiléptica. Sossegou, depois, abatido pelo
esforço. Sombriamente, o dono de casa pediu para saírem e mandou o Manel
Hortelão buscar o Dr. Chico Godinho, muito depressa. Foi encontrar o Zé
Grilo, muito pálido, junto do tanque grande, enxugando as mãos com as mangas
da camisa. Este perguntou pelo Toino e comentou: – “começou muito cedo a
enfrascar-se no álcool”… Foram os dois ao quarto.
Toino estava em coma. E, quando o Dr. Chico chegou, meia hora depois,
limitou-se a anunciar: – “O homem está morto, Manel! É preciso chamar o
Sargento Ambrósio.” – Intoxicação alcoólica? –
Indagou o Sargento, quando chegou. – Possível, mas não certa.
É preciso tirá-lo daqui, para uma autópsia. Cheira a vinho e alho que baste,
para descortinar qualquer outro cheiro. Quero saber o que significa aquela
banha curada, na boca do morto. Naturalmente que ainda se
comeu e bebeu; porém, sem fome, sem sede, sem alegria. E, quando o Avô Palaló, na manhã seguinte, foi ao tanque, para mudar a
água, como habitualmente, enterrou duas pequenas rãs, que encontrou mortas,
na pequena pia, debaixo da torneira de escoamento. Pouco depois, ouviu a voz
do sargento Ambrósio, que se aproximava com dois companheiros: – Olhe, Manel,
estes senhores são da Judiciária. Vêm fazer uma investigação… – Não há nada a investigar.
Eu sei o que se passou – interrompeu o Avô Palaló. E vós, leitores, também
sabeis? |
|
© DANIEL FALCÃO |
||
|
|