Autor Data Julho de 1981 Secção Enigma Policiário [60] Competições II
Volta a Portugal em Problemas Policiais e Torneio de Homenagem a Sete de Espadas 7ª Etapa | Lamego – Vila Real – Guimarães – Braga – Barcelos –
Famalicão – Porto Publicação Passatempo [82] |
A 7ª FOLHA… Marvel Rui
Manuel puxou a gaveta da secretária e agarrou um bloco, movimentos a que
sucedeu um ruído matraqueante alusivo ao corte de
papel pelo picotado. A sala começava a animar-se de juventude gárrula e
buliçosa. –
Ouve, Graça, não tive tempo para somas. – Como é uso da actividade
humana, a falta de tempo era usada para encapotar a inépcia, neste caso
algébrica. – Tu, com o teu jeito para as contas, fazes isso num «ai». A
jovem revirou as folhas, divertida. –
Pois sim, mas como é isso? Não deixaste espaços para os totais nem para os
transportes… –
Parece que estou a sofrer a influência das ideias do nosso presidente – sorriu-se
o companheiro. – Deixa lá, tens aí uma folha em branco… Graça
fazia os seus cálculos e Rui Manuel fumava um extra-longo
quando Gonçalo, o presidente da colectividade,
tomou lugar entre eles e bateu compassadamente na secretária. A medida, pela
sua compenetração, recebeu o benefício duvidoso duma tempestade de alegria colectiva. –
Amigos, aqui estamos! No gozo duma data única da história do clube, a cujos
10 anos de actividade ninguém poderá, com justiça,
negar o muito realizado em prol do nosso bairro. Creio que todos comungareis
da minha satisfação quando vos anuncio que, pela primeira vez, encerramos as
contas do ano com acalentador saldo positivo. –
Não apoiado! Os
aplausos foram cortados, na insipiência, pelo aparte, criando lugar a murmúrios
de surpresa e interrogação. –
Evidentemente que não foi fácil dar corpo ao objectivo
– continuou o orador, impassível. –
Confesso que se nos depararam obstáculos não previstos, que não encontrámos
adesões esperadas, que, enfim, tivemos, por vezes, de perseverar até ao
sacrifício, eu e toda a direcção. De facto, a base
dos resultados do exercício está no espírito de brio e unidade que consegui
inculcar em todos os meus devotados colegas, de modo que um só bloco… –
Respiras, logo vegetas! O
presidente voltou a dar emersão ao seu poder de encaixe: –
Presumo ter ficado claro que não colho para mim, unicamente, os louros do
sucesso alcançado. Eles dispersam-se por todos os meus queridos companheiros,
pilares sólidos da estrutura criada para o êxito que… –
Assim não falou Zaratustra! A
assembleia divertia-se loucamente, apostando em adivinhar qual o mote
seguinte que daria lugar à interferência imediata. Entretanto, Graça e Rui
Manuel embrenhavam-se num diálogo aflitivo, em que a mímica predominava. –
Não vou estragar-vos a tarde com faladura – prosseguiu Gonçalo, ainda inalterável. – Quero
somente recordar-vos que, há um ano, esta direcção
tomou posse do cargo e, implicitamente, dum passivo que rondava os 18 contos.
Pois, revelo-vos com muito gosto que fechamos o mandato com o valor à maior
de perto de 23 mil… Desta
vez, a interrupção não veio do fundo da sala nem tinha nada de jocoso. Transtornada,
Graça erguera-se e agitava as folhas que recebera de Rui Manuel. –
Espera! Isto dá 37 contos, mas, valha-me Deus! – só
tenho 22!… De
seguida a breve tumulto, averiguou-se um imbróglio curioso: contrariando o
anúncio do presidente, o balanço apurado por Graça indicava um activo de pouco mais de 37 contos. Ela, por sua vez… –
Não pode ser! – balbuciava, de olhos embaciados. –
Sabes bem, Gonçalo, que não chegava a 23… –
Com efeito, fizemos muitas vezes as contas. Mas… esta letra não é tua! –
Pedi ao Rui que o fizesse. Tem uma letra melhor. Mas ainda ontem à noite, ao
telefone, confirmámos tudo, parcela por parcela. Foi, não foi, Rui? –
Claro, não te aflijas. Deitei fora o rascunho, mas certamente que tens
apontamentos… –
Só somas não especificadas… Gonçalo
pousou as mãos nos ombros dos dois, animador. –
Pronto, não há problema. Refaz-se a escrita a partir dos recibos. –
Era bom! – lacrimejou a rapariga. – Como posso
apresentar o recibo da hora e meia de trabalho pago à mulher da limpeza… –
Vamos a ver. – Gonçalo manuseou as folhas, literalmente cobertas pela letra
perfeita e fácil de Rui Manuel. – Seis folhas. Não te lembras se fizeste
mais? –
Talvez mais uma… não sei… –
Não se terá extraviado… –
Não creio – duvidou Rui Manuel. – Pois se acabo de arrancá-las do bloco… –
Deixa-o cá ver. Pode lá ter ficado alguma. – Mas as três ou quatro folhas do
bloco mostravam-se perfeitamente imaculadas. – Portanto, uma desapareceu… –
Deixei aqui o bloco, de manhã – avisou Rui Manuel. – Qualquer pessoa lhe
poderia ter mexido… –
Portanto – concluiu o presidente –, alguém a fez desaparecer, por desleixo…
ou brincadeira! – E Gonçalo olhou
em volta, de olhos semicerrados. Houve
um remoinho na assistência, e um rapazola baixo, largo de ombros, colocou-se
diante dele, em posição nítida de desafio. –
Quero que vás para o inferno, percebes, imbecil? Antes de ocupares os ócios
lançando insinuações torpes e gratuitas devias olhar-te a espelho, a ti e às
tuas mesquinhas ideias. Ficarias sabendo, então que a culpa de quanto se
passa é, de origem, toda tua. Gonçalo,
os punhos bem apertados, parecia crescer. –
Este incidente acaba por ser oportuno (desculpa, Graça!). Comprimir despesas?
Certo, muito louvável, altamente encomiástico! Perde essas facetas, porém,
quando é olvidado o prestígio a manter e se toca as raias do que é miserável.
Vocês lembram-se de que, para poupar papel higiénico, ele nos diz para trazermos
de casa quanto papel inútil possamos arranjar? Que lindo! Querem mais? Todos
sabemos que a sede necessita de restauros urgentes, e todos oferecemos, para
o efeito, o nosso trabalho. Mas aqui o Gonçalito… comprar tinta e pregos? «Tá»
quito! O que é o nosso livro de «Actas»? Um
daqueles cadernos de significados da escola primária! Quanto ao de «Contas Correntes»,
já sabeis – e a nossa tesoureira melhor que ninguém – um bloco de duzentas
folhas de papel comum… picotadas,
que serve também para correspondência, informações e o que mais calhar.
Chafurdando nesta sovinice toda, casos como este só surpreende que não tenham
sucedido antes. Por isso, Gonçalo… desapoiadíssimo! –
Por favor, parem com isso! – Graça parecia prestes a explodir em pranto. – É
preciso ver o que se passa. Rui, pensa bem, não terás usado o químico? –
Não, Graça, não usei o químico em nada! Além da esferográfica, já se vê. Uma
mão anónima estendeu-se para as folhas. –
Quero ver uma coisa. – As folhas foram examinadas com detalhe, inclusivé à transparência. – É pena estarem escritas de
ambos os lados. Contava restituir a que falta a partir dos sulcos, mas assim
é uma barafunda indestrinçável. A
voz de Gonçalo varreu o silêncio que se seguiu: –
Parece fora de dúvida que havia mais uma folha, e desapareceu! Que lhe terá
acontecido? Uma boa pergunta, aquela última, não
acha? Que tal responder-lhe? Mas não fique por aí! |
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© DANIEL FALCÃO |
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