Autor

Paulo

 

Data

6 de Maio de 2021

 

Secção

Policiário [70]

 

Competição

Torneio do Centenário do Sete de Espadas

Prova nº 4 – A

 

Publicação

Sábado [888]

 

 

O ASSALTO

Paulo

 

Dona Miquelina era daquelas pessoas de ideias muito fixas. Não gostava de discutir opiniões porque achava que apenas as suas estavam corretas. Não adiantava entrar em diálogo com ela, pois a dona Miquelina não ouvia; só falava, falava, sem parar. Entre as suas muitas certezas achava que as mulheres não deviam usar calças e geralmente virava costas se alguém do género feminino com esse vestuário lhe dirigisse palavra; achava que só se comiam laranjas de manhã, baseada num velho adágio popular, pelo que criticava qualquer um que comesse essa fruta depois do meio-dia; considerava que qualquer pessoa que lhe fizesse um serviço, ganhava demasiado, e regateava qualquer preço para fazer baixar o seu pagamento. Não gostava de ver gente sem trabalhar, nem queria saber por que motivo isso acontecia, pois a culpa era de quem não trabalhava. As autoridades tinham um rol de queixas, sem fundamento, sobre as mais variadas pessoas que não tinham emprego, com quem ela em qualquer momento da vida se cruzava.

Dona Miquelina tinha um carro, com mais de 20 anos, em que a matrícula apresentava a data de outubro de 1999. Um velho Renault Clio no qual se transportava para todo o lado.

Foi ao volante da sua viatura que dona Miquelina se apresentou no posto da GNR, de máscara posta, como mandavam as normas em vigor com a pandemia.

– Senhor polícia (ela tratava por polícia qualquer autoridade fardada) –, ia para o cabeleireiro, estacionei a alguns metros do local, num beco pouco movimentado, aqui na vila, quando fui assaltada.

Respirou fundo, olhou o cabo da GNR que a atendia e continuou.

– Estacionei o carro e saí, com a minha malinha onde tinha tudo o que era preciso: um pacote de lenços, telemóvel, carteira com 22 euros em notas e mais uns trocos em moedas, um frasquinho de gel desinfetante, uma máscara e mais umas miudezas. Como dizia, fechei a porta do carro, pus a chave do meu veículo na mala, dei dois ou três passos e apareceu-me aquele bandido.

– Homem ou mulher? – perguntou o cabo, com voz indiferente.

Dona Miquelina pensou uns instantes, olhou severamente o agente da autoridade, como se achasse a pergunta impertinente.

– Não faço a mínima ideia. Agora andam todos de máscara e, como qualquer um ou qualquer uma usa calças, uma pessoa nunca sabe. Agarrou-me na mala e fugiu a correr. Só pode ser um daqueles vadios ou vadias que andam ali naquele café junto de onde eu estacionei e que nunca fazem nada. Disso tenho a certeza absoluta. Foi um deles… – e acrescentou – ou delas. É só malandros a fazerem a sua própria desgraça e a quererem desgraçar as pessoas de bem – terminou com convicção.

– Não consegue descrever melhor quem a assaltou?

– Não! Não consigo! – afirmou. – Tinha máscara e não reparei em mais nada, a não ser numas calças de ganga azul. Só sei que fugiu e eu vim logo para aqui.

O cabo já conhecia bem a queixosa, mas desta vez até lhe parecia que ela tinha razão. Preencheu os devidos documentos, deu-lhos a assinar e acompanhou-a até ao automóvel, que ela tinha parado junto da esquadra, na tentativa de a acalmar, o que definitivamente foi impossível.

Ainda durante aquela tarde foi possível interrogar alguns jovens suspeitos, que rondavam regularmente aquela zona, e que foram informados do objetivo da investigação.

Marcos já tinha sido apanhado uma vez a traficar droga, estivera preso, mas saíra com a pena cumprida. Vestia calças de ganga azul.

– Estive toda a tarde em casa e não tenho ninguém que o confirme. Não roubei nada, nem faço ideia de quem seja essa senhora que me está a dizer que foi assaltada. Não sou ladrão!

João era um jovem desempregado que nada fazia. Não tinha cadastro, embora já algumas vezes tivesse estado metido em confusões. Saíra sempre das trapalhadas sem qualquer detenção. Vestia calças de ganga azul.

– Passei a tarde entre o café e o parque, onde fui encontrando alguns amigos. Fomos bebendo e conversando, sempre de máscara, porque não quero adoecer. Nunca roubei nada a ninguém e se essa senhora diz que fui eu, está a mentir com a dentadura toda. A que tem na boca e a suplente que deve ter numa gaveta em casa.

Rita era também uma jovem desempregada. Alguns empregos temporários, mas nunca conseguira nada fixo. Estava em casa, perto do local do assalto, quando a foram procurar, embora frequentemente fosse vista a passear pelo parque que se localizava perto do local onde ocorrera o assalto referido pela dona Miquelina. Também vestia calças de ganga azul.

– Eu estive toda a tarde em casa, sozinha. Muitas vezes costumo andar pelo parque, mas hoje não saí. Acho que sei quem é essa dama. Deve ser uma que vai muitas vezes ao cabeleireiro e me olha como se eu tivesse lepra.

Ainda durante essa tarde, num caixote do lixo, a alguns metros do local onde a dona Miquelina se queixava de ter sido assaltada, apareceu a mala de mão. A carteira que contivera desaparecera. Ao lado estava também um telemóvel, de um modelo já bastante antigo. Este aparelho veio a verificar-se ser o de dona Miquelina. As impressões digitais dela eram as únicas que existiam naquele dispositivo de comunicações.

Quando o telemóvel foi analisado verificou-se haver a indicação de uma chamada feita nessa tarde. Seguindo o rasto do telefonema chegou-se à irmã da vítima, dona Cremilde.

A senhora vivia com a irmã, mas parecia ser o oposto desta. Uma mulher de palavra simples e afetuosa.

– Sim, sim! Recebi uma chamada da minha irmã. Disse-me que estava junto ao cabeleireiro, que tinha acabado de ser assaltada e ia apresentar queixa na polícia. Eu sei que é na GNR, mas para ela são todos polícias. Nem consegui saber se ela estava bem, porque desligou logo.

Do dinheiro não houve mais registo, mas D. Miquelina também não parecia muito preocupada com esse pormenor.

– Quero justiça! Justiça! Prendam aqueles malandros que passam a vida sem fazer nada e me assaltaram.

Deixamos a dona Miquelina com o seu discurso de reclamação e pergunta-se aos leitores o que acham que sucedeu e vos levou a essas conclusões.

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO