Autor Data 4 de Março de 2021 Secção Policiário [61] Competição Torneio do Centenário do Sete
de Espadas Prova nº 2 – A Publicação Sábado [879] |
UM CASO ANTIGO Pedro Manuel Calvete O
inspetor-chefe Hélder Macedo – BIG MAC
para os amigos da PJ – estacionou no gasto terreiro ao lado do espampanante Mercedes
negro que já sabia pertencer à vítima e esperou que a nuvem de pó que o carro
levantara se dissipasse antes de desligar o motor e sair do conforto do ar
condicionado para o calor tórrido do Alentejo. Subiu os degraus de madeira
pausadamente, recebeu a aprumada saudação militar do guarda da GNR que já o
esperava no árido pátio fronteiro à entrada do celeiro e, percebendo a
diferença de temperatura, logo se refugiou na sua relativa penumbra, enquanto
o agente se aprestava a ir buscar a testemunha. O
celeiro, transformado no átrio de entrada/museu de lavoura da quinta – que
atraía com passeios de balão os ocasionais incautos citadinos dos alojamentos
rurais das redondezas – devia ter uns 20 metros de comprimento, com duas
largas portas de madeira em cada extremo, abertas por metade, sem janelas em
qualquer das baixas paredes mas com as telhas à vista por cima dos
intrincados travejamentos de madeira. O Sol que se escoava pelos intervalos
criava colunas oblíquas de poeiras que pontilhavam de luz o chão de terra
batida. No largo corredor central, a uns dois metros da porta, havia um largo
oleado escuro. Não precisava de adivinhar o seu propósito: protegia o local
onde a vítima se esvaíra em sangue. Desviou a atenção para o cenário: do seu
lado esquerdo, até onde distinguia a extensão do edifício, eram exibidos os
apetrechos pesados de lavoura: carros de bois, charruas, arados, cangas,
celhas, tararas, grades de tornos… Do seu lado direito, sucediam-se as pipas
e as talhas de barro de dimensões desencontradas, mais afastadas umas das
outras, a convidar a uma circulação perto da parede caiada de um branco novo
onde, equilibradas em meros pregos de suporte, eram exibidas forquilhas de
formatos sortidos, manguais pequenos e grandes, ancinhos de madeira e de madeira
e metal, enxadas grossas e finas, gadanhas simples e complexas, foices dos
mais diversos tamanhos e curvaturas. Aproximou-se destas, as mais próximas,
notando uma flutuação de cores na folha da do meio de um painel de nove, e
não evitou um esgar de nojo quando percebeu que eram causados pelas
varejeiras que se passeavam nela. Ao seu movimento de repulsa seguiu-se o
zumbido das moscas a levantar voo. Atravessou o edifício enquanto verificava
a rede do telemóvel, foi espreitar da outra porta – que dava para um pátio
calcetado com árvores frondosas nos seus quatro cantos. Avaliou a visão de
ponta a ponta do celeiro e atravessou de novo toda a sua extensão, contando
os passos até à porta por onde entrara. Estava
a pensar como seria andar num balão de ar quente com aquele calor quando,
pela porta da extremidade oposta, regressou o guarda, acompanhado do zelador
do sítio, um homem robusto e rústico que o examinou com curiosidade e que,
após as saudações, lhe foi apresentado como “Manuel Vinagre, testemunha presencial”.
O
inspetor Macedo tirou uma agenda e uma caneta do bolso, desculpou-se por
pedir a repetição do relato, e anotou o que ouviu em cerrado sotaque
alentejano: “Manuel
Vinagre +/- 10h na loja, ouviu gritos / da entrada viu vulto correr porta
oposta / só viu corpo perto golfar sangue pescoço / várias feridas / ouviu o
som de uma moto a afastar-se / não foi ver p/telef.
112 / antes não viu/ouviu nada / ainda não tinha chegado +ninguém / nunca
tinha visto a vítima.” Sublinhou a última anotação. Aproximou-se
do oleado e levantou-lhe uma ponta. O corpo já tinha sido removido, mas
descobriu por baixo uma mancha escura grande, como o centro de um malmequer,
e um conjunto de "pétalas" da mesma cor, a emanar dele, algumas
mais destacadas. Depois voltou a pousar o oleado e examinou cuidadosamente o
chão do celeiro, do pátio e das escadas, descobrindo em todos eles vestígios
de pequenas pingas da mesma cor escura, que foi fotografando com o telemóvel
enquanto sacudia as moscas. Abominava moscas, mais ainda as que zumbiam. O
guarda e o zelador tinham-no seguido calados, mas quando, na base das
escadas, deu por concluído o seguimento do rasto, o primeiro informou-o que a
arma do crime – um instrumento perfurante, segundo a equipa forense que
recolhera o corpo – não tinha sido encontrada e que não tinham protegido
depois o acesso ao celeiro porque a equipa tinha fotografado tudo
minuciosamente e recolhido amostras do rasto de
sangue até ao terreiro. E mais acrescentou que, logo que tinham recebido a
informação do crime, o oficial de dia tinha mandado colocar barreiras nas
estradas para identificar todos os motociclistas que se afastassem de Vermelhença – mesmo que, adiantava ele, fosse impossível
que tivessem ido a tempo. Depois do aparte, o inspetor-chefe Macedo observou-o
de soslaio. Não era comum encontrar agentes da GNR a partilhar com a PJ
opiniões sobre as opções dos superiores hierárquicos, muito menos quando não
eram abelhudos – e aquele ainda não tinha sido. Voltou
ao celeiro, de novo seguido silenciosamente pelos dois homens. Dirigiu-se
lentamente ao painel de foices, e tirou-lhe várias fotos com o telemóvel.
Abriu-as uma a uma, certificando-se de que as varejeiras eram de novo
visíveis na mesma foice central, e deu ordem de prisão ao Manuel Vinagre. |
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© DANIEL FALCÃO |
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