Autor

Rigor Mortis

 

Data

31 de Março de 2021

 

Secção

Policiário [65]

 

Competição

Torneio do Centenário do Sete de Espadas

Prova nº 3 – A

 

Publicação

Sábado [883]

 

 

VINHO, CIÚMES E MORTE

Rigor Mortis

 

O calor era intenso, apesar de já passar das seis e meia da tarde. O verão estava a primar por dias limpos e soalheiros, com temperaturas bem elevadas.

Chamado por um telefonema daquela quinta, pelas cinco e meia, o inspetor Pedro Malcato estacionou o carro ao lado do edifício de dois pisos, duas centenas de metros à frente do portão da quinta, logo atrás de outro também parado em contramão, um Land Rover de aspeto pesado e sujo, ao lado de um bonito jardim, carregado de flores, que bordejava todo o flanco da casa. Atrás dele parou a carrinha que trazia dois agentes e o médico-legista. Uma mangueira, ligada a uma torneira na parede, espiralava pelo chão, pisada pelas rodas da frente do Land Rover e desaparecendo na esquina da casa. Malcato espreitou à esquina: o bonito jardim envolvia completamente a casa, as flores e folhas de cores vivas com pequenas gotas de água brilhando ao sol.

Um caminho em saibro, bem tratado, levou-o até uma das portas, aberta. Entrou, descendo seis degraus.

– Boa tarde. Sou o inspetor Pedro Malcato, Polícia Judiciária.

– Ah! Senhor inspetor, fui eu que chamei a polícia – exclamou um homem de aspeto vulgar, 40 e poucos anos, cabelo castanho escuro, óculos de aros metálicos, muito magro e franzino, de jeans azuis e camisa de manga curta aos quadrados por fora das calças. – O meu nome é Aniceto Cardoso. Trabalho nesta quinta como enologista.

Malcato observou o homem por uns segundos, depois passeou os olhos pelo local onde tinha entrado – uma sala grande, abobadada, com colunas, sem janelas, fresca e escura, mas iluminada por várias lâmpadas de néon – desviando a seguir o olhar para as outras duas personagens que ali estavam.

Um homem forte, cinquentão, bem-parecido, envergando umas calças de jardineira azul-escuras e uma camisa amarelada, algumas brancas a aparecer nas fontes manchando o cabelo preto. E uma jovem, esbelta, escassos 20 anos, saia curta e justa em bombazine creme e blusa folgada, azul-celeste, cabelos aloirados com nuances, numa postura muito sexy mas denotando um ar enfadado.

Alinhados em filas, intercalando as colunas, vários cilindros metálicos com o topo abaulado. Cubas de vinho, manifestamente. Entre duas das cubas, parcialmente visível do sítio onde estava Malcato, jazia um corpo feminino.

– Os senhores, são…

– António Rodrigues, capataz desta propriedade – disse o outro homem. – Esta menina é a Anabela Gomes, filha da proprietária, Clara Gomes… – os olhos do homem incidiram sobre o corpo feminino que jazia no chão.

Deslocando-se até junto do corpo, Malcato observou por alguns segundos o cadáver de Clara. Tinha certamente sido uma mulher atraente, alta e de corpo bem delineado. O cabo de uma faca de grandes dimensões saía-lhe do baixo ventre.

– Quem descobriu o cadáver?

– Fui eu – disse o António. – Vim da encosta, onde estive toda a tarde a ver as vinhas que iremos vindimar primeiro. Estacionei o jipe aqui ao pé de casa, disse olá à Sónia, que estava à janela, e fui até ao portão ver se tinha chegado algum correio. Havia sim, e uma pequena encomenda, estão ali na mesa à entrada. Como sempre, depois vim até aqui à adega, verificar se estava tudo bem com as cubas. Foi então que vi o corpo da Clara… O Aniceto chegou a seguir, não pela entrada que eu e o senhor inspetor usámos, mas pela outra, do outro lado da casa.

– É… – completou o Aniceto. – Tinha ido regar os canteiros desse lado, com a mangueira. Com o sol que tem feito, há que os regar de manhã e ao fim da tarde. Já estávamos aqui os dois quando a Anabela chegou, estava eu a fazer a chamada para a polícia.

– A faca é de algum de vós?

– Pelo cabo… – disse o António – acho é uma das que estão arrecadadas naquele armário ali ao fundo.

– Quem tem as chaves daquele armário.

– Eu, senhor inspetor – respondeu o António, olhando para os sapatos. – Mas o armário está quase sempre aberto…

– E você, Anabela, por onde andou?

– Estive a passear no sopé da encosta, onde os castanheiros dão sombra… E fiquei-me a conversar com o Rui e o Beto, dois dos homens que aqui trabalham!

Malcato não pôde deixar de perceber o tom provocatório das palavras.

– Vive mais alguém aqui?

– Eu, o António, a Clara, a Anabela e a Sónia, a cozinheira, moramos na quinta. Os outros empregados só cá estão durante o dia de trabalho – respondeu o Aniceto.

O inspetor interrogou a Sónia na sala de entrada da residência, situada por cima da adega. A mulher, 64 anos de idade e 35 de viuvez, era a cozinheira daquela casa desde antes de Anabela ter nascido, desfrutando da amizade quer de Clara quer do marido desta. Sónia confirmou ter visto o António chegar com o jipe, às cinco horas, e dirigir-se a seguir, a pé, para o portão. Por ela ficou a saber que Clara Gomes, proprietária daquela quinta, viúva desde há meia dúzia de anos, estava em sérias dificuldades financeiras. O vinho produzido continuava a ser de boa qualidade, mas o mercado não o estava a acolher como antigamente, quando o marido era vivo. Razão por que a filha queria vender a propriedade e gozar o dinheiro numa cidade como o Porto, ou Lisboa. O capataz e o enologista apoiavam a proprietária no seu desejo de continuar com a produção, mas, segundo Sónia, os dois andavam com os olhos postos em Clara, o que provocava frequentes disputas…

– Façam-me o favor de se despirem e de dar as vossas roupas exteriores, calças, camisas, saia, blusa, a um dos agentes. Ser-vos-ão devolvidas daqui a dois ou três dias, claro – ordenou o inspetor aos quatro residentes na quinta.

Intercetando o médico-legista, que se preparava para levar o corpo da Clara para a carrinha, Malcato interrogou-o com o olhar.

– A facada foi mortal. De baixo para cima, mas a faca é tão longa que lhe atingiu o coração. A morte foi praticamente instantânea. – Perante o olhar ainda interrogador de Malcato, continuou: – Diria que entre as cinco e as cinco e meia da tarde…

Perspicaz, Malcato já tinha uma ideia bem formada sobre o caso. Mas ia deixar todos em liberdade, por enquanto, até que outras investigações que ia fazer comprovassem o que tinha sabido por aqueles quatro…

Caro leitor, qual é a sua ideia? Alinhe as suas deduções e aponte quem acha que matou Clara, justificando-o com as suas conclusões.

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO