Autor

Sete de Espadas

 

Data

Julho de 1976

 

Secção

Enigma Policiário [4]

 

Competição

Torneio de Abertura

4º Problema

 

Publicação

Passatempo [26]

 

 

 

 

 

 

 

ELE, NÃO ATIRARA PARA MATAR!…

Sete de Espadas

 

Quando o carro negro, comprido e potente, parou ali na Rua 1.º de Dezembro, junto à porta de acesso às escadas e ao elevador do «Café Chave d’Ouro», a chuva, em bátegas cerradas, fustigava tudo e todos, envolvendo os vultos de dois ou três transeuntes apressados, e as largas janelas dos cafés vis-a-vis, com uma autêntica cortina translúcida que pouco nos deixava ver para lá de dois ou três metros… A rua, a essa hora, e devido à chuva, estava praticamente deserta. As portadas dos edifícios habitacionais, ao lado do «Café Nacional», estavam encostadas. Os vidros das amplas janelas dos cafés estavam saturados de vapor de água. Antes da chuva, o frio descera acentuadamente como se fora nevar… e logo desabaram catadupas de água.

Do pequeno patamar de entrada para o elevador e início da escada à direita que nos levava aos bilhares do 2.º piso e, mais acima, ao restaurante e ao salão de chá, havia três degraus para o átrio, onde estava o Miguel todo cheio de amarelos e galões…, que neste momento mal dizia a sua vida por a água, pingando sempre dos chapéus dos clientes que entravam, lhe tirar todo o brilho ao pavimento… O átrio tinha um degrau, para o passeio, mas a água batia neste violentamente e salpicava tudo quando alguém entrava ou saía e o Miguel abria a porta.  

O elevador, descia, e parava no patamar do rés-do-chão. O «groom» abriu a porta e o Miguel curvou-se ligeiramente ante a silhueta de gabardine azul e bem cintada do conhecido «volante» Jorge Reis. Este, sorridente, cumprimentou os dois, desceu os três degraus, passou as duas mãos pelas abas do chapéu num gesto que lhe era característico e encaminhou-se para a porta de saída, que o Miguel agora entreabria, e o vulto azul ficou nela enquadrado. Olhou para a rua e para o negro vulto do carro, e, num repente, fez dois gestos bruscos, levando a mão esquerda à altura da aba do chapéu, enquanto a direita entra e sai rapidamente do bolso da gabardina. De pés ligeiramente afastados, as pernas fletem-se pelos joelhos, na posição de ataque-defesa, enquanto soa bem nítido um tiro, e o estampido violentíssimo de um segundo logo em cima e depois um terceiro, menos barulhento, mas percebendo-se bem que fora um tiro. Uma bala faz ricochete na armação metálica do elevador, em frente da porta da rua, e vai levantar o estuque da parede à esquerda da escada.

No prédio em frente, um vidro de uma das janelas do alto primeiro andar cai, feito em estilhaços… No átrio a atmosfera satura-se com o cheiro característico da pólvora deflagrada, enquanto o Miguel, impávido e sereno, acaba por encostar a porta e o miúdo do elevador sobe agora os degraus da escada a três e três.

Um polícia que no momento aparecia na esquina das ruas 1.º de Dezembro e Calçada do Carmo, no recanto, apercebe-se de algo de insólito e corre para o enorme carro negro. Mirones aparecem, como por encanto, de todos os lados, saindo dos Cafés. Num momento é grande o ajuntamento e a balbúrdia é enorme.

Jorge Reis, de pistola ainda na mão direita, é empurrado pelos que de dentro do Café invadem o átrio de escantilhão e querem saber o que se passa. A chuva continua a cair impiedosamente, mas o espectáculo, por inédito, merece aos eternos bisbilhoteiros o sacrifício da molha. Ninguém arreda e chega um novo polícia e depois um outro. O trânsito agora, pela 1.º de Dezembro, já está interrompido, e começa a ouvir-se o barulho de um e outro «claxon». Todos querem ajudar e, como sempre, ninguém faz nada. Ninguém sabe nada. Mas todos falam!

O primeiro polícia dá voz de prisão ao «volante», enquanto o segundo e o terceiro tentam afastar todos os curiosos. Um quarto chega na altura própria e, mais experiente ou mais calmo, entre, em frente, no «Café Nacional», dirige-se ao telefone e comunica ao Comando o que se passa. Minutos depois, os ruídos das sirenes de duas viaturas.

Entretanto, um médico que ali chegara, tinha aberto a porta do lado direito do carro para prestar auxílio ao indivíduo sentado ao volante, cuja cabeça descaíra para o seu lado esquerdo, sobre as costas do banco. Recuava do carro negro no momento em que chegava a ambulância, apresentando-se ao médico desta:

– Carlos Sena, colega. A vítima «está mesmo morta». Agora só necrotério e o resto. A bala entrou-lhe na base do crânio e deve ter-lhe dado morte imediata.

 

A Investigação tomou conta do caso, o carro recolheu ao Torel e o corpo foi para o Necrotério. Poucos minutos depois, enquanto a chuva continuava a cair com insistência, já nada ali havia que chamasse a atenção dos desconhecedores da tragédia. O caso tinha passado da rua para os bastidores da Investigação. Somente às mesas dos Cafés se aventavam hipóteses e nos tampos de algumas se faziam esboços. Os detectives amadores das Tertúlias do «Nacional» e do «Chave d’Ouro» tinham um vasto campo ao seu dispôr. A tarde mal começara. Havia tempo até ao jantar. Depois, seria em casa.

O exame pericial, soubemo-lo depois, mostrara que os dois vidros das portas da frente do carro, estavam subidos e em ambos fora detectado um furo a igual distância dos bordos de borracha onde encaixavam 10 centímetros. O da esquerda a contar de baixo e o da direita a cintar de cima.

A vítima, um conhecido organizador de competições desportivas automobilísticas, tivera morte instantânea, provocada por uma bala de calibre 38, que tinha entrado na base do crânio e se alojara no cérebro. Junto do assento onde estivera o corpo, no interior do carro, e banco da frente, uma pistola do mesmo calibre, que se provou pertencer à vítima, tinha as suas impressões digitais e fora utilizada no tiroteio. No tapete, lugar dos pés, fora encontrada a cápsula deflagrada.

A Jorge Reis fora apreendida uma arma de calibre 38. Detido por tentativa de homicídio, e principal suspeito, e sem licença de porte de arma, afirmou que há dois dias tinha pedido a arma a um amigo, cujo nome indicou, em face dos avisos mortais que o organizador das competições lhe dirigira. Mais declarara, estar absolutamente seguro, e jurá-lo-ia em Tribunal, que somente tinha agido em defesa própria, porquanto, havia disparado depois do seu agressor. No meio da confusão, do burburinho que se seguiu e da chuva que caía, nada mais vira, nem sabia, alegando, cheio de sinceridade e bastante pesaroso, que não atirara para matar!

A Investigação continuou e, dias depois, ante o espanto quase geral e a indignação de alguns que se julgavam saber sempre tudo, «beber do fino» e estar dentro da verdade absoluta, Jorge Reis foi posto em liberdade, por nada se ter provado contra ele – a não ser o uso e porte ilegal de arma de fogo. E 

 

Porque não se trata de julgamento, mas sim de pesquisa de dados e provas para um suposto relatório, será o prezado leitor capaz de reconstituir a «cena do tiroteio» e responder-nos:

1 – Se fosse o detective encarregado de investigar o caso, teria dúvidas em soltar Jorge Reis? Concretize a sua resposta.

2 – No relatório há conveniência em «reconstituir a cena de tiros». É o que lhe pedimos. Faça-o!

3 – Na «pesquisa de dados e provas» algo escapou… Não nos parece necessário, mas diga do que se trata!

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO