CONCURSO DE CONTOS MANUEL CONSTANTINO
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XI CONVÍVIO DA Tertúlia
Policiária de Lisboa Almeirim, 17 de Maio de
2015 CONCURSO DE CONTOS
MANUEL CONSTANTINO A PRIMEIRA VEZ (DETECTIVE JEREMIAS) … o conto, pela sua
dimensão peculiar, tem de encerrar a sua unidade de efeito, isto é, tem de produzir um
efeito narrativo, ênfase, com economia de palavras. Cada palavra deve contribuir
para o efeito final. M. Constantino “O Conto como Expressão
Literária” Lisboa, 1941. Em plena
guerra mundial, Lisboa vive dias singulares. Inundada por vagas de
estrangeiros – refugiados ou simples aventureiros – numa Europa destruída e
insegura, a capital de um pequeno país, hipocritamente neutro, é uma porta
para a esperança. Por todo o lado, −
ruas, jardins, hotéis, cafés, esplanadas e lojas − milhares de pessoas
compõem uma invulgar teia multicultural, com uma babel linguística como pano
de cena. Em Lisboa misturam-se
nacionalidades, credos e religiões. As práticas trazidas pelos estrangeiros
alteram o quotidiano, fazem cair tabus e levam a uma mudança de mentalidade
nos alfacinhas, pelo menos a julgar pelas aparências. Cruzam-se os tempos difíceis
com as oportunidades de ouro. A miséria e a fome convivem com a riqueza e com
os restaurantes de luxo. Os altos funcionários e os diplomatas confraternizam
com mercenários e espiões, em obscuros tráficos de influências e de segredos. Quase ninguém é quem
parece ser. Uns estão preocupados em
não deixar transparecer alguma particularidade que denuncie origem, fortuna,
religião ou cor política. Outros vão mais longe e aplicam finos truques de
camuflagem: os mais ricos vestem-se de forma mais discreta para não atrair os
amigos do alheio, e os mais modestos ostentam riquezas, que não possuem, para
obterem benefícios. É neste agitado ambiente
cosmopolita que Margaretha vive o seu dia-a-dia, tenta construir o seu futuro
e concretizar os seus sonhos. A jovem, apesar do nome e do aspecto nórdico,
não anseia embarcar para a América e nem sequer é refugiada. ***** Como, quando e porquê Margaretha veio parar a
Lisboa?
Eis aqui então a história
passada de Margaretha, recheada de acasos e que se conta em duas penadas. O pai era não só muito inteligente
e um músico exímio, mas também um homem muito à frente do seu tempo. Nascido
em Portugal, na viragem do século, cedo percebeu que ele e o país não tinham
futuro comum. Sem laços familiares fortes, partiu mundo fora, trabalhou,
estudou e foi reconhecido internacionalmente pelo seu talento musical. A mãe
de Marga, natural de Amesterdão, apesar de muito jovem, era uma jornalista
talentosa quando por acaso, se cruzou com um português bem parecido.
Apaixonaram-se, casaram e nasceu Marga. Durante vários anos usufruíram dos
benefícios de uma vida nómada, com passagem pelas principais cidades
europeias, onde se fixaram por períodos mais ou menos longos. Portugal servia
apenas como refúgio de férias. Marga cresceu em circunstâncias sociais e
culturais peculiares, teve uma educação privilegiada e multifacetada, uma
amálgama especial que lhe desenvolveu a mente, contribuiu para um carácter
forte e lhe conferiu confiança e autonomia. Esta realidade de sonho
estava destinada a receber um golpe de pesadelo. Os pais de Marga e o seu
único tio, materno, morreram num violento desastre ferroviário, deixando-a
sozinha, sem familiares ou amigos próximos que pudessem assegurar a sua
guarda – a vida errante, como tudo o resto, tem também uma face daninha. Sem apelo nem agravo,
Margaretha viu-se em Portugal numa vila perdida das Beiras, entregue aos
descuidados de uma velha prima afastada, seca de carnes e de feitio. Arrastaram-se quase dois
anos, penosos, monótonos, até à altura em que Marga, prestes a fazer dezoito
anos, em Agosto de 1940, decidiu mudar-se para Lisboa e procurar trabalho
para garantir o pagamento do curso de literatura, um dos seus desejos
interrompidos. Deixou para trás o isolamento, a tacanhez e a prima beata, sem
saudades de parte a parte. Na capital conseguiu
trabalho facilmente. A Bertrand, no Chiado, sensível à nova clientela
internacional, deixou-se cativar pela figura, pela educação e pelos
conhecimentos de diferentes idiomas de Margaretha, e esta sentia-se fascinada
pelos livros e pela atmosfera cultural e literária da livraria. Apenas um senão ensombrava
o futuro da Marga: o dinheiro que recebia no final de cada mês parecia
sumir-se como água entre os dedos, e a concretização do seu futuro como
estudante universitária estava comprometida. Era urgente e imperioso arranjar
uma saída, um outro trabalho ou actividade que trouxesse uma entrada rápida
de capital. ***** Qual foi a solução encontrada por Margaretha? Regressemos agora ao
presente. Lisboa, sexta-feira, 4 de
Abril de 1941, 8 horas da noite, ainda em plena guerra mundial. Marga acaba de sair da
Bertrand, felizmente não chove e a noite está amena. Sem pressas, apesar de
ter os nervos em franja, tenta manter a serenidade, os gestos calmos e uma
marcha que não denuncie a sua inquietação e ansiedade. Marga revê mentalmente
instruções, preceitos, aspectos indispensáveis, porém o seu pensamento é um
emaranhado e o cérebro parece paralisado. Calma, calma, calma, repete para
si, como uma ladainha fracassada. Na esquina, um longo
cartaz colado sobre muitos outros desvia-a da sua preocupação. A figura
esguia da vedeta ocupa quase todo o espaço onde se anuncia a “Trindade,
Despedida da Formosíssima e Incomparável Josephine Baker, a Alma Ardente da
Selva, Hoje às 21 e 45”. Marga esboça um sorriso, o “último espectáculo” da
artista tinha sido sucessivamente anunciado, mas havia sempre uma nova sessão
no dia seguinte. Estranhamente, ou não, a vista do cartaz tranquiliza-a, tem
a consciência que o plano está arquitectado com cuidado. O local para onde se
dirige ficará quase deserto. Dentro em pouco todos iniciarão o jantar e, de
seguida, um grande grupo começará a debandada para garantir a chegada com
pontualidade no Teatro da Trindade. De forma mecânica, Marga
verifica as horas no relógio pequenino, prenda de “X”, um homem decisivo na
sua vida e no seu futuro. Ao pensar nele, deixa-se envolver e levar pela
felicidade. Sem deixar de seguir o seu rumo, percorre devagar as ruas da
Baixa e recorda com ternura alguns momentos com “X”. Um dia reparara nele, na
Bertrand, pela primeira vez. Mais tarde Marga
surpreendeu-se ao saber que “X” era cliente diário da livraria, mas a forma
subtil como ele cultivava o anonimato – uso de óculos para esconder o olhar
perspicaz, roupas neutras, pose monótona – tinham-no tornado invisível até
aquele dia. Trocaram opiniões e ideias
no início do ano, durante a première do filme Rebecca, um sucesso de
Hitchcock que, de acordo com os jornais, tivera estreia europeia em Lisboa. Mais tarde, Marga ficara
surpreendida de novo ao ter conhecimento que fora “X” a planear tudo quando
entregara na Bertrand dois bilhetes, para Marga e outra colega, como “Oferta
de um cineasta”. Conheceram-se,
fortaleceram laços e cumplicidades até que “X” abriu o jogo e lhe lançou um
desafio aliciante, irrecusável e rentável. Seguiu-se o treino intenso de
Marga durante semana. E saliente-se aqui, em
abono da verdade, que foi a vez de “X” ficar espantado com a rapidez de
raciocínio, a memória e a perspicácia da jovem. ***** Dentro de uma hora terá lugar a sua primeira
vez. Marga faz um esforço para
voltar a realidade. Sabe que tem de estar concentrada. Tenta relembrar todos
os passos para que nada fique esquecido. Ela sabe que fora escolhida, mas que
escolhera também. Ela e “X” estão sozinhos e por conta própria. Têm autonomia
que garante a ausência de traições e é mais lucrativa. Conforme planeado Marga
segue pela Rua do Príncipe, menos movimentada, para aceder à entrada no
Grande Hotel de Inglaterra, nos Restauradores. A escolha deste hotel fora exemplar.
Os hotéis de Lisboa são ninhos de redes de espionagem que “X” conhece como a
palma das mãos. Espiões, espiões duplos e triplos acoitam-se em verdadeiros
quartéis-generais conotados com os aliados ou com os alemães. O Avenida
Palace, frente ao hotel onde Marga pretende entrar, tem até no último andar
uma passagem directa para estação do Rossio, facilitando o trânsito de
espiões e dificultando fiscalização da polícia. O Grande Hotel de Inglaterra,
onde “X” se instalou como hóspede, não é dos mais badalados, mas tem os
personagens ideais para o fim em vista. Antes de entrar Marga,
observa-se reflectida num vidro: vestuário sóbrio, cara serena, cabelos
loiros vistosos, devidamente tapados com um chapeuzinho vulgar, em suma, um
aspecto anónimo como convém. Marga entra confiante,
como se fosse uma frequentadora regular, aproveitando a ausência do porteiro
para o habitual cigarro em alturas de pouco movimento. A entrada está
deserta, já saíram todos para ver a Baker. Ao passar pelo sonolento
recepcionista, Marga atira um “Boa noite… Bar” como se fosse para um
encontro amoroso clandestino ou tomar uma bebida inadiável. Mas dirige-se ao
ascensor onde entra sozinha, sem esperas. Apesar da tensão, pela
segunda vez esta noite Marga esboça um sorriso perante um cartaz: o Grande
Hotel de Inglaterra, em Lisboa, anuncia com destaque, e sem qualquer pudor
patriótico, a excelente “Cuisine Française” do seu serviço de restaurante e
realça ainda que é recomendado pela “Propaganda de Portugal”. Marga sai no segundo piso.
Na mesinha do átrio de acesso aos quartos, a mais recente revista “Mundo
Gráfico” mostra um latoeiro, a fotografia que ganhou o primeiro prémio do
concurso. Na contracapa da revista, em baixo, uma frase manuscrita em letra
bem desenhada, é o sinal deixado por “X” para a missão prosseguir: "QUEM
RECORDA NUNCA ESTÁ SÓ". Mais nada, nem códigos,
nem números de quartos, nem informação sobre locais a vasculhar. Marga tem
tudo bem memorizado: trinta e três quartos, cinquenta e sete esconderijos.
Cerca de três horas a trabalhar para conseguir uma fortuna excepcional,
merecem qualquer risco. Corada devido à excitação,
Marga retira com cuidado, dos cabelos, um gancho fino especial − a
chave mestra para aceder aos quartos. Respira fundo, introduz o gancho na
fechadura da porta e entra facilmente − fruto da habilidade e do
treino. Marga inicia, aqui e
agora, um part-time que lhe garante um futuro desafogado e livre. Marga inicia, aqui e
agora, uma actividade arriscada, digna de um filme de acção. Marga, ladra profissional,
é a partir deste momento especialista internacional em furtos de jóias em
hotéis. É a sua primeira vez. |
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DANIEL FALCÃO |
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