CONCURSO DE CONTOS MANUEL CONSTANTINO
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XI CONVÍVIO DA Tertúlia
Policiária de Lisboa Almeirim, 17 de Maio de
2015 CONCURSO DE CONTOS
MANUEL CONSTANTINO TREMENDA MARISCADA (JARTUR MAMEDE) Conto de índole
policiária. O telefone estremeceu com
o vibrar da campainha, sobre a minha desorganizada mesa de trabalho, e eu
atendi prontamente, recitando para o bocal: – Estou, fala James. – Senhor James. – disse a
telefonista - Está em linha um senhor, muito simpático e conversador,
como nunca ouvi, que deseja falar consigo. – Então ligue, sua grande
atiradiça, estou à espera! – Ouvi a voz doce da Rosalina a anunciar a
ligação, e logo uma voz enérgica que nunca antes ouvira, perguntou: – É o James? James
Marabuto? – Sim, sou o James! –
respondi com ar inquiridor – Sou… James Marabuto! – Olá jovem, como estás?
Estás bem?! Tudo fixe?! Como vai essa juventude?! – Eu estou bem! – respondi
um pouco à defesa – Mas quem fala? Julgo não o conhecer! Mas… se me tratas
por tu, retribuo o tratamento… mas insisto! Quem és tu? Sim, quem és tu? Óh!
voz desconhecida?! – Tens razão, pá! Nós
conhecemo-nos… permito-me dizer… de “ginjeira”, mas apenas por cartas… – fez
uma pausa significativa. – E pela leitura dos nossos escritos, nas páginas
das secções onde cada um de nós tem mostrado e dado o melhor de si. – Isso diz-me qualquer
coisa, mas não me revela nada! – esclareci, mordazmente. – Tenho dezenas de
confrades, nessa situação de… conhecidos de ginjeira…
epistolarmente! – Tens razão, pá! Comigo
passa-se o mesmo! Então, terminemos com o mistério, jovem amigo! Aí vai, sem
mais delongas nem “suspense”! Sou o Constantino. Agora já me topas? O Manuel
Constantino! Ou, mais propriamente, M. Constantino, de Almeirim! Levantei-me com um pulo de
entusiasmo, e exclamei com alegria: – Ei! Grande amigo! Que
prazer em ouvir-te! Ansiava conhecer a tua voz, que a tua caligrafia já me é
familiar. Tenho dezenas de missivas tuas, em arquivo. – Igualmente! Isso mesmo
acontece comigo! – respondeu com notória satisfação. – Quis fazer-te uma
surpresa, que me dará imenso prazer. Vim numa missão de serviço à tua cidade,
e não posso perder a oportunidade de te conhecer pessoalmente, e trocarmos
aquele abraço que já tantas vezes expressámos no papel. Temos muito que ver,
falar e relembrar, das nossas interessantes e fraternas lutas policiárias! E
das histórias da vida… Informou-me que estava em
serviço na “Repartição de Finanças”, ali ao lado do “Governo Civil”, mas que
a partir das cinco horas da tarde, já nos poderíamos encontrar. As Finanças situavam-se
próximo do meu local de trabalho, e às dezassete e dez, aproximei-me do
edifício, onde já me esperava, no limiar da porta, o másculo ribatejano, de
patilhas fartas, que eu já vira em fotografia, publicada numa conhecida
secção policial. O Constantino também terá
imediatamente deduzido, que o rapaz que se aproximava na sua direcção, era o
James. Porque ele, sorridente, abandonando a soleira da porta, já caminhava
para mim. Abraçámo-nos sem dizer palavra, calados pela alegria e emoção do
encontro, mas logo recobrámos a voz, e nos familiarizámos com os mútuos
sotaques de pronúncias acentuadamente diferentes. Instalámo-nos numa
esplanada dum café próximo, tomando uns refrescos e saboreando algumas peças
do doce tradicional da terra. E, até à despedida para jantar, foram mais de
duas horas de agradável cavaqueira. Falou-se da vida profissional, da
pessoal, e sobretudo das entusiásticas actividades policiárias, que ambos
desenvolvíamos em diversas das secções existentes na imprensa diária
lisboeta, e nos semanários regionais. M. Constantino, então com
o cargo de Inspector de Finanças, estaria ali, na minha cidade, pelo menos
uma semana, procedendo a investigações profissionais. Fora das horas
laborais, teríamos todo o tempo disponível, e logo estabelecemos a agenda dos
nossos futuros encontros, também para visitas aos pontos mais típicos da
cidade e dos arrabaldes, com atractivos lugares turísticos, sem igual na
paisagem do litoral lusitano. Apresentei-lhe algumas
amigas e amigos que foram aparecendo pela esplanada. Eram jovens como nós,
praticantes de artes e letras, e com quem desde logo, entre eles e o
visitante, se notou uma evidente empatia, motivadora de interessantes
conversas. Mas, no dia seguinte, foi
ele, atraente forasteiro, bem vestido e bem colocado na vida, quem me
apresentou as mais vistosas e apetecíveis moçoilas, que conhecera nas salas e
nos corredores da “Pensão Dona Zita”, onde estava instalado. E a esse já
notável conjunto, acrescentou-lhe ainda algumas colegas de trabalho. Nas
Finanças, não faltavam giríssimas contabilistas e dactilógrafas. E foram duas
dessas, a Cristina e a Laurinda, que se tornaram as nossas principais
companheiras, nas caminhadas turísticas e culturais, naquele curto mas
agradável e plenamente preenchido, período de prazer e ócio. Chegou, o antepenúltimo
dia daquela saborosa estada do Constantino. No nosso passeio de fim de tarde,
acompanhados das duas jovens que nos eram mais constantes – a Laurinda e a
Cristina – quando passávamos junto da “Praça do Peixe”, um conhecido e típico
marisqueiro da zona, veio aliciar-nos com uma apetitosa cesta de camarões,
recentemente apanhados e já preparados para consumo, a um preço deveras
tentador. O Constantino olhou para
as moças, para os camarões e para mim, com um enigmático piscar de olhos.
Depois, voltou a olhar para o rapaz que continuava a segurar na sua frente o
cheiroso marisco, levou a mão à algibeira do casaco, e pagou de imediato o
lote de camarões, acrescentando mais umas moedas para poder ficar com a
embalagem. – Maravilha! – exclamou
ele, lançando às jovens um olhar convidativo. – Agradável companhia! Camarões
apetitosos! – e virando-se para mim. – James, tu que conheces a zona, vai em
busca de meia dúzia de carcaças, umas tantas cervejas, e alapamo-nos numa das
mesas de pedra do jardim, para nos regalarmos com um farto lanche ajantarado. – Isso é que era bom! –
interrompeu a Laurinda. – Seria maravilhoso, mas temos que estar na pensão
antes das sete, por que a minha madrinha vai-me telefonar de Paris. – Mas… realmente esses
camarões, estão mesmo a querer saltar-nos para a boca! – adiantou a Cristina,
com um ar malicioso. – Vocês podem oferecer-nos uma porção desses bichinhos
apetitosos, e nós vamos dar cabo deles, mesmo no sossego da nossa sala comum. E assim foi. Comprei meia
dúzia de “pães da avó”, seis cervejas, e pedi uns sacos de plástico, para
dividir os crustáceos e embalar duas garrafas para as nossas amigas. E não me
esqueci de comprar guardanapos de papel e toalhetes, levemente perfumados,
para, no fim da comezaina, procedermos às necessárias limpezas pessoais e
ambientais. Quando voltei para junto
do trio, já o Constantino tinha definido, com as raparigas, o programa para o
resto do dia. Ele e eu, depois de acompanharmos as raparigas ao “hotel”,
realizaríamos o nosso “pic-nic” num banco do jardim próximo. Mais tarde,
cerca das oito e meia, reencontrar-nos-íamos na porta da “Pensão Dona Zita”,
e caminharíamos até ao Cine Teatro Avenida, onde se exibia o filme: “A mulher
que viveu duas vezes”. Após uma paragem próximo
da “Drogaria Moderna”, onde a Cristina, com um certo ar de mistério, entrou a
comprar um produto, cuja natureza não nos revelou, mas trouxe num saco
publicitário do estabelecimento, deixámos as raparigas, na companhia de um
cento de camarões e duas garrafas de cerveja, na entrada do seu alojamento.
Situava-se, este, num grande e característico edifício da cidade, com a
fachada revestida de azulejos, com painéis temáticos, representando as quatro
estações do ano. Então, tomámos o caminho
do sítio apropriado para o nosso repasto, não muito longe dali. Sentámo-nos a
uma mesa de granito, para apoio aos turistas, no jardim público do município,
mesmo ao lado do coreto, e estendemos o farnel. Mau grado a ausência das
companheiras, foi uma agradável refeição ao ar livre, com o saboroso mastigar
do rosado alimento, que cada um de nós descascava e regava a seu gosto, com a
refrescante e saborosa cerveja bebida pelo gargalo. Em alegre convívio, com
antevisões hipotéticas para o final de noite, recordações do passado e
projectos para o futuro, deglutimos o petisco, ao longo duma vagarosa hora,
tendo o cuidado de guardar o vasilhame e as cascas dos camarões, utilizando
um dos sacos esvaziados, para não conspurcar o local, e levar os detritos
para o recipiente destinado ao lixo, onde também abandonámos os guardanapos
de papel e os toalhetes utilizados. Às oito e meia – ou, mais
correctamente, vinte e trinta – já o M. Constantino e eu aguardávamos as
raparigas na portaria do monumental edifício. Vimos, através da vidraça da
porta, que elas se aproximavam, e quando chegaram à rua ficámos ambos
intrigados e preocupados com o aspecto da Laurinda. O seu rosto tinha uma cor
doentia, de um pálido esverdeado, como se estivesse agoniada. Vinha
caminhando tropegamente pelo braço da colega. Deu mais alguns passos
inseguros, fraquejaram-lhe as pernas, e se o Constantino não a tivesse puxado
contra o seu corpo, ela ter-se-ia estatelado na pedraria do passeio. Julgámos, inicialmente,
que a indisposição da rapariga se devesse ao consumo de cerveja, que teria
servido para acompanhamento do marisco. Mas a Cristina esclareceu, de imediato,
que fora ela quem esgotara as cervejas. A Laurinda, não estava de modo algum
etilizada. Não gostava de bebidas alcoólicas, e por isso acompanhara os
camarões, somente com abundante sumo de laranja. Ouvindo isto, o
Constantino, que até ali só tentara acalmar a debilitada amiga,
esfregando-lhe os pulsos e o rosto, e aligeirando-lhe o aperto da gola, deu
um grito de desespero, ao mesmo tempo que inclinava a rapariga para a valeta
e lhe metia dois dedos pela boca dentro, para lhe provocar um vómito. A nossa
amiga teve dois ou três estremecimentos de agonia, e por fim expulsou, em
sequência, alguns jactos de um líquido espesso e avermelhado, de cheiro
desagradável. Agora algo mais tranquilo
pelo resultado da sua actuação, mas ainda ciente da gravidade do estado da
colega, Constantino gritou-me com vivacidade: –Rápido, James! Pede
ajuda! É forçoso correr para um hospital! Não precisei que ele
repetisse o apelo. Sabendo que eu apenas serviria para atrapalhar os
primeiros socorros do meu amigo, corri para o Quartel dos Bombeiros, que se
localizava a não mais de duzentos metros, no quarteirão que ladeava o jardim.
O Saul, que escutou os
meus berros, e leu nos meus olhos a aflição que me fizera correr tão
desalmadamente, gritou pela presença dum enfermeiro, saltou para o volante da
ambulância e, com a anuência do chefe, indicou-me o lugar a seu lado. Em
breves minutos chegámos ao local onde o Constantino, prosseguia com manobras
que provocassem a reacção da Laurinda, que embora tivesse já, pela imundice
que se via no chão, posto fora todo o conteúdo do estômago, continuava com
uma cor desagradável, anormal e doentio. Contrariando as instruções
do voluntário que queria que a doente fosse deitada na maca, o Constantino
preferiu que fosse sentada a seu lado, com o tronco flectido, na esperança de
que novos vómitos expulsassem todas as partículas do alimento que provocara
aquela malfadada crise. A Cristina, frente a ela, segurava as mãos frias da
sua amiga, massajando-as suavemente, e proferindo algumas frases de preocupação
e carinho. O Hospital não estava
muito longe, e em cinco minutos chegámos à “Recepção” das “Urgências”.
Rapidamente, a equipa médica tomou conta da paciente. A partir daquela porta,
ela já não precisaria de nós. Mas a amiga da Laurinda, foi solicitada para as
informações protocolares, acompanhando-a até ao interior das “Observações”,
para fornecer a identificação da doente e relatar em pormenor, os motivos da
ocorrência. Durante cerca de uma hora
e meia, o Constantino e eu esperámos nervosamente, impotentes, reflectindo
sobre as mais recentes três horas da nossa existência, e vaticinando sobre o
futuro próximo que, no dizer do meu amigo, se apresentava algo nebuloso. Por fim, a porta da
“Recepção”, que felizmente se mantivera pouco activa, abriu-se para dar
passagem à Cristina. Vinha acompanhada dum polícia que prestava serviço no
“Hospital”, o que, em princípio, nada tinha de anormal. Mas, aquele rosto
sempre gracioso, apresentava-se com um aspecto nitidamente choroso, mas ela
logo tentou sossegar-nos: – A Laurinda está livre de
perigo! O médico que a atendeu já vem falar convosco, num “gabinete
reservado”, para onde este senhor guarda nos irá acompanhar. O mais estranho,
é que o doutor me disse que chamou a Polícia Judiciária, que vem a caminho! – É verdade! – corroborou
o agente. – Desculpem, mas há um mistério qualquer que precisa de ser
esclarecido. Foi chamado o Inspector Palaló, e os senhores terão que aguardar
a sua chegada, para serem submetidos a um pequeno interrogatório.
– O quê?! – perguntei
intrigado. – A Judiciária?! Um interrogatório?! O Constantino, que ouvira
tudo aquilo com um ar calmo, aparentemente abstracto, mas parecendo senhor da
situação, deu-me no ombro uma pancada significativa e disse: – Amigo James, não te
preocupes. Vais ver que tudo se esclarecerá plena e rapidamente. Já tenho uma
firme ideia sobre os acontecimentos. – fez um sorriso, discreto, mas bastante
expressivo e rematou: – O que importa… é que a Laurinda vai ficar boa! Efectivamente, de seguida,
os esperados acontecimentos precipitaram-se. Poucos momentos depois de sermos
introduzidos no “gabinete reservado”, entraram seguidamente o doutor e o
inspector. Apresentaram-se e cumprimentaram-nos cordialmente. Depois de nós
dizermos quem éramos, o que fazíamos e por que motivo estávamos ali, o doutor
iniciou a conversa, duma forma serena, esclarecida e convincente: – Meus senhores, a doente
que vocês acompanharam, a menina Laurinda, está livre de perigo. Fizeram-se
as indispensáveis análises, foi medicada, e neste momento é lhe ministrado o
soro conveniente. Mas o mais grave, é que ela foi vítima de envenenamento.
Por esse motivo, foi indispensável e obrigatória, a participação à Polícia
Judiciária. Ela tinha uma pequena quantidade, felizmente pequena, de arsénico
no sangue. É evidente que se procedeu de imediato a uma lavagem ao estômago,
que não resultou absolutamente conclusiva, por ausência quase absoluta de
restos alimentares sólidos, tendo sido observadas apenas migalhas dum
alimento que o analista identificou como sendo de camarão, e uma certa
percentagem de vestígios de vitamina C. Trocando discretos olhares
com o médico, foi a vez do inspector se pronunciar, com firmeza, duma forma
serenamente regulamentar, precisa e metódica: – Meus senhores… e minha
senhora! Na certeza, evidente, da existência de arsénico no sangue da vítima,
resulta, de forma categórica, que ela foi alvo duma tentativa de
envenenamento criminoso, ou teve a tentação de pôr termo à vida. Compete-me,
portanto, esclarecer com verdade, e sem qualquer margem para dúvidas, de que
forma o arsénico entrou no sangue da vossa amiga. E para isso, preciso da
vossa ajuda. Com um sinal gestual ao
inspector, como que a pedir permissão para falar, o clínico estendeu sobre a
mesa uma folha de relatório, e declarou: – Ao que sei, pela voz da
vossa amiga aqui presente, um dos senhores teve uma actuação essencial para o
salvamento da doente. Fazê-la vomitar o mais rapidamente possível, após a
ingestão do veneno, foi decisivo para o salvamento da sua vida. – e
voltando-se para nós inquiriu: – Qual de vós foi o herói? – Herói, coisa nenhuma,
senhor doutor! – adiantou o Constantino com toda a clareza: – Quando a
amparei e soube de que se alimentara, pensei logo numa possível intoxicação
e, para isso, o indicado era o que fiz… e qualquer outro poderia ter feito! – Meus amigos! – atalhou o
inspector: – O que está feito, feito está! Mas a verdade, é que houve um
envenenamento, e torna-se necessário esclarecer o mistério: – e com a entoação
adquirida nos longos anos de prática, proclamou: – Crime ou suicídio?! Olhando o veterano
inspector, com um olhar amigável mas firme e convicto, o Constantino, jovem
perito em finanças, com uma voz inflexível e bem modulada, todavia doce e
terna, como se ao seu respeitável avô se estivesse a dirigir, começou: – Senhor inspector Palaló!
– e pronunciou este “Palaló” com uma certa emoção na voz. – Talvez eu possa
ajudar a fazer luz sobre o misterioso assunto. É que, quanto a mim, não são
duas… mas sim, três, as possíveis alternativas: crime, suicídio ou acidente?! – Como assim? – alterou-se
o experiente inspector. – Eu vou continuar, se me
permite! – interrompeu o Constantino: – Que eu saiba, a Laurinda, por aquilo
que nos últimos dias conversámos, jamais, por motivo algum, atentaria contra
a própria vida. Eu não me quero intrometer no seu melindroso trabalho,
inspector, mas, se me quiser acompanhar ao lugar onde forcei a rapariga a
vomitar, e se o doutor nos acompanhar ou mandar alguém, com um recipiente próprio
para a colheita de vestígios, talvez os serviços de patologia, esclareçam,
pronta e capazmente, o imbróglio da hipotética tripla dúvida, crime, suicídio
ou acidente. O inspector trocou algumas
palavras com o médico, e este mandou chamar um técnico analista, para os
acompanhar ao local indicado e proceder à sugerida colheita. Em menos de vinte minutos,
regressava o carro de serviço com o pessoal que se havia deslocado à entrada
da “Pensão Dona Zita”. E, meia hora depois, já se conhecia o resultado da
análise àquele malcheiroso produto, aliás condizente com o resultado das
análises elaboradas após a lavagem ao estômago. Havia realmente arsénico,
naquela mistura de restos de camarões meio digeridos e sumo de laranja com
suco gástrico. Tudo voltava ao ponto de
partida. Houvera envenenamento. E mantinha-se a enigmática dúvida: crime ou
suicídio? A que o Constantino teimava em juntar: Acidente! Com um leve toque no
cotovelo da Cristina, sugeri-lhe que se afastasse um pouco para me escutar, e
discretamente disse-lhe: – Minha querida, eu sei
que não tens qualquer tipo de animosidade pela tua amiga, que te pudesse
levar a cometer algum acto menos digno. Mas, as investigações concluirão que
tu foste à drogaria, e vão querer saber o que compraste. – e perante o seu
espanto, acrescentei sorrindo: – Terá sido arsénico?! – Tens razão, James. –
Atirou-me com um ar de irónica animosidade. – Vou já pôr esse melindroso
assunto em pratos limpos. – E, voltando-se para o grupo de entendidos que conversavam,
observando e comentando as incidências do caso, aclarou a voz e disse: – Se me permitem, devo
desde já esclarecer que, quando vínhamos a caminho da pensão, eu entrei na
“Drogaria Moderna”, mas não foi para comprar qualquer tipo de drogas. Se forem
investigar, como certamente irão, serão informados de que apenas comprei um
produto descartável, de higiene íntima e periódica. – Todos nos entreolhámos
e sorrimos, pela forma como a moça, desenvolvera, duma forma bastante
esclarecedora, a natureza da misteriosa compra efectuada. O inspector consultou a
lista, pegou no telefone e ligou para o estabelecimento comercial referido,
mas ninguém atendeu. Estava encerrado, sem dúvida. Esse pormenor seria
aclarado no dia seguinte. E mantinha-se o mistério: crime ou suicídio? Mas Manuel Constantino,
que expressara de forma mais visível, a apreciação ao esclarecimento da
Cristina, pediu ao doutor Luciano que nos levasse para um lugar mais
sossegado, pois sabia e queria explicar de forma peremptória, o que afinal se
passara para provocar o envenenamento da Laurinda, pois defendia, a pés
juntos, a versão de acidente. O inspector lançou-lhe um
olhar de admiração e indisfarçável despeito, mas fez ao clínico um gesto de
concordância, dizendo: – Vamos a isso, doutor! Este
jovem parece-me bem esclarecido… e ousado, pronto para ocupar o meu lugar.
Deixemo-lo expressar-se. Estes jovens aprendem muito na literatura policial,
e a brincar aos detectives nas secções policiárias. De seguida o médico
conduziu-nos ao seu gabinete, ocupando o lugar habitual de trabalho, e
indicando-nos as cadeiras disponíveis. – Vamos a isto, doutor! –
Disse o Constantino, sorrindo. – A Laurinda não ingeriu, nem foi forçada a
ingerir, “arsénico”. O “arsénico” foi produzido no seu estômago. Em ocasião e
publicação que por agora não saberei especificar, mas num artigo científico
de que guardo alguma memória, fiquei a saber que, na realidade, o camarão
contém uma concentração de compostos de “potássio-arsénico 5”, que por si só
não são tóxicos. – ele terá reparado na estupefacção dos circunstantes, à
excepção do médico, que parecia seguir com interesse a sua explanação, e após
uma imperceptível pausa para respiração, prosseguiu: – O inicialmente não
tóxico ”potássio-arsénico 5”, existente nos camarões, em mistura com a
vitamina C, converte-se no tóxico “potássio-arsénico 3”, anidrido arsénico,
também designado, se a memória me não falha, por “trióxido de arsénico”,
vulgarmente conhecido como o venenoso “Arsénico”. Resulta, dessa curiosidade
científica que eu talvez não esteja a descrever com todo o rigor, não é
recomendável comer mariscos acompanhados por laranjas, sumo de laranjas ou
vitamina C. Portanto, quanto a mim, e o inspector certamente vai desenvolver
as convenientes investigações, posso declarar, com toda a convicção. Não
houve crime! Nem houve tentativa de suicídio! O que aconteceu, foi um
lamentável acidente, que não ocorreria, se a Laurinda se tivesse empanturrado
de camarões na minha presença. Não a deixaria adulterar essa apetitosa iguaria,
ingerindo conjuntamente copos de sumo de laranja, que contém grande
quantidade de vitamina C. Eu olhava o Constantino de
soslaio, pasmado, mas ele sorriu-me e continuou: – Quando a Laurinda surgiu
à porta da pensão, de cor alterada, amparada pela Cristina e me ia a
desfalecer nos braços, pensei que isso se deveria ao mal-estar provocado pela
bebida, que eu julgava ter sido cerveja. Mas, quando a Cristina nos disse que
a Laurinda não gostava de bebidas alcoólicas e que acompanhara os camarões só
com sumo de laranja, recordei-me daquele artigo, e tive a percepção de que
deveria fazê-la vomitar, numa tentativa para que expulsasse, do organismo,
aquela mistura intoxicante. – Realmente! – atalhou o
médico – Isso é cientificamente conhecido, e o “Hospital”, com base nos
conhecimentos, declarações e análises de que agora dispomos, irá proceder à
elaboração do conveniente relatório de medicina legal, para esclarecer o
sucedido.. – Quanto a mim – adiantou
o respeitável inspector Palaló. – Admito e aceito as achegas deste jovem – e
acrescentou com certa ironia – “sherlock”! O doutor sorriu e pronunciou-se
com admiração, pois conhecia a veracidade da teoria expendida pelo
Constantino. Pediu-nos licença, pois necessitava de ir confirmar o actual
estado da enferma. Voltou dez minutos depois, com a agradável notícia de que
a Laurinda ficaria naquela noite a repousar num quarto particular, onde desde
já a poderíamos visitar, e que teria alta a partir das dez horas da manhã que
se aproxima. Fomos saudá-la, e no dia
seguinte já podemos acamaradar como era costume. Mas chegou o dia das
despedidas. Acompanhámos o Constantino à estação do Caminho-de-Ferro. Vocês
sabem, ou imaginam, o que é habitual nestas circunstâncias. Demonstrámos a nossa
sincera amizade pelo amigo que ia regressar ao seu querido Ribatejo. E antes
que a porta da carruagem se fechasse, ele ainda nos gritou com um certo
timbre, já de sentida nostalgia, na voz: – Lembrem-se de mim! “QUEM
RECORDA NUNCA ESTÁ SÓ!” |
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©
DANIEL FALCÃO |
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