CONCURSO DE CONTOS MANUEL CONSTANTINO
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XI CONVÍVIO DA Tertúlia
Policiária de Lisboa Almeirim, 17 de Maio de
2015 CONCURSO DE
CONTOS MANUEL CONSTANTINO JANTAR DE FAMÍLIA (RIGOR MORTIS) A casa erguia-se,
elegante, no meio do arvoredo e rodeada de um relvado bem tratado. Conhecida
por “casa Saavedra”, do nome da família que lá vivia há mais de 40 anos. Nos últimos anos tinha
apenas dois habitantes, o dono, Aparício Saavedra, e o seu mordomo de longa
data, Gaspar. Mas tempos houvera em que lá morava uma dezena de membros da
família, entre adultos e crianças. Aparício Saavedra, 75
anos, estatura mediana solidamente constituída, grisalho, suíças fartas,
sempre impecavelmente escanhoado, era um self-made man. Começara a
trabalhar aos 15 anos, moço de entregas de um talho, para ajudar os pais
quando do nascimento da segunda irmã, mas aos 20 era sócio de um pequeno
café, aos 25 dono de um restaurante, aos 30 co-proprietário de uma empresa de
intermediação de frutas, aos 40 proprietário de uma grande empresa de
importação e exportação de produtos alimentares. Pelo meio, obtivera uma
licenciatura em Finanças, que lhe daria uma base sólida para uma gestão
profícua dos seus negócios. Muito rico, nunca casara, não obstante se dizer
que tinha conhecido e privado com várias mulheres, em tempos idos. As suas três irmãs, já
falecidas, tinham nascido entre os seus 14 e 16 anos. Casadas tarde, depois
dos 30, nunca tinham sido felizes nem saudáveis. Viúvas poucos anos depois
dos casamentos, viriam a falecer pouco tempo depois, deixando cada uma delas
um filho – Luís Miguel, Carla e Teobaldo – de cuja educação Aparício Saavedra
se encarregara. Aparício era um homem
afirmativo e persistente, mas severo e rigoroso, exigente até ao limite da
maldade com os outros. Dessa maneira de ser se ressentiu a sua relação com os
sobrinhos. Ternura era um sentimento inexistente, quer entre eles, quer em
relação ao tio. Luís Miguel, 27 anos,
alto, olhos perscrutantes e cabelos castanhos, tinha sido um enfant
terrible. Mulherengo, de sorriso fácil e conversa fluente, esperto e
oportunista, cedo revelara a sua personalidade aventureira, em detrimento dos
estudos. Não fora isso e teria sido o sobrinho favorito, pelo seu estilo
afirmativo. Assim, o tio nutria por ele um certo desprezo, ainda que mesclado
de inveja. Carla, 26 anos, licenciada
em Relações Internacionais, era alta, bonita e solteira, nem se lhe
conhecendo namorados. Ruiva, de cabelo farto e ondulado, tinha uma
personalidade forte. Tal como o tio, era inteligente, reservada, fria,
calculista e distante. Aparício tivera sempre um fraquinho por ela, sem que
tal o fizesse abrandar as exigências. Pelo contrário, era dela que ele mais
exigia, sempre. Teobaldo, 23 anos, era
totalmente diferente. Baixo, gordo, flácido de corpo e de personalidade,
tímido, receoso e acanhado, era estudante de Matemáticas, faltando-lhe ainda
2 anos, no mínimo, para terminar a licenciatura. Era desprezado pelo tio, que
o considerava como fraco e incapaz. Gaspar, o outro residente
na “casa Saavedra”, um homem alto e forte na casa dos sessenta, estava há 35
anos ao serviço de Aparício Saavedra, tendo começado como seu motorista
quando fundara a sua empresa de import-export. A sua história
sentimental tinha um único episódio, um casamento e divórcio já como
empregado de Aparício Saavedra, com uma antiga criada da casa. Dizia-se na
altura que a mulher, atraente e sensual, o teria traído poucas semanas depois
de casar, e que teria sido o Aparício a suportar as despesas do divórcio.
Apesar da severidade com que era tratado por Aparício Saavedra, unia-os uma
longa e profunda relação, temperada com uma cumplicidade mútua. …………………………………. Naquela noite os três
sobrinhos tinham regressado à “casa Saavedra”, chamados pelo tio para os
informar das modificações que tinha feito nas suas disposições
testamentárias. O convite era para o jantar mas estendia-se para a pernoita,
já que o Gaspar lhes tinha preparado os seus antigos quartos, no primeiro
andar da moradia. Servidos pelo Gaspar, os
quatro sentaram-se na velha, mas imponente, mesa de carvalho da sala de
jantar. Sopa de vegetais, rosbife com puré de batata e fruta da época,
regados com um vinho chileno de que Aparício muito gostava. Apreciador de
vinhos e bebidas generosas, Aparício bebia com um ritual sui generis,
muito seu. O primeiro gole, antecedido de um grande espaço de tempo em que
apenas contemplava o copo e aspirava profundamente os aromas, era mantido na
boca por largos segundos, para completa submersão das papilas gustativas. Os
goles seguintes, de grande volume, eram rapidamente engolidos. As conversas foram
agressivas, como era timbre entre eles desde há muito. – Qual a tua última
aventura, Luís Miguel? – Colômbia. Terra de
grandes oportunidades, sabe? – É… Droga, corrupção,
crime… É só escolher… – comentou a Carla. – Não é bem assim! Já foi,
agora não. Tu, mestre em relações internacionais, devias bem saber como as
coisas mudaram por lá… – Então por que não
ficaste lá?! O ambiente dava bem contigo, de certeza… – A verdade é que
segurança e confiança não são as palavras de ordem por aquelas bandas – disse
o tio – mas isso nunca te fez hesitar, de facto. – Ora! Diga-me lá onde é
melhor! Aqui, não?... Por lá terias excelentes possibilidades de finalmente
arranjar um marido! Até tu, Teobaldo, te safavas!... – Eu?!... Er… Quer dizer…
achas que sim? – atreveu-se Teobaldo a perguntar. – Vai-te lixar! – explodiu
a Carla ao mesmo tempo. – Deixa-te de parvoíces,
Luís Miguel – interrompeu Aparício – aquilo é terra onde só vingam
aventureiros sem escrúpulos como tu. Quanto a ti, Teobaldo, mais vale que
procures terminar o teu curso, ao menos para teres alguma coisa em que
assentar o teu futuro. Nunca terás grande futuro, sendo como és, mas enfim… E
tu, Carla, já vai sendo tempo de pensares em família! – Só se for com algum
japonês, chinês ou vietnamita que tenha jeito para cozinhar – retorquiu Luís
Miguel, sarcasticamente. – Nunca te vi satisfeita senão a comer pratos
orientais!... – Chega! Depois do jantar
– continuou Aparício – quero conversar com cada um de vocês na biblioteca. A seguir ao café, pelas
dez e meia, Aparício Saavedra dirigiu-se para a biblioteca, dizendo ao Gaspar
para lhe levar o cognac e para fazer entrar cada um dos sobrinhos – o
Luís Miguel, a Carla e o Teobaldo, por essa ordem. – E não quero ninguém a
escutar à porta! Foram três conversas
rápidas, meia dúzia de minutos com o Luís Miguel e depois com a Carla, apenas
dois ou três minutos com o Teobaldo. Foi o tempo necessário para o Gaspar
levantar a mesa. Quando Teobaldo saiu, os
três sobrinhos retiraram-se para os respectivos quartos, no primeiro andar,
sem sequer dar as boas noites. Pouco depois, Gaspar entrou na biblioteca para
perguntar se o patrão precisava de mais alguma coisa. Ao sair fechou a porta
e dirigiu-se para o seu quarto, junto à cozinha. …………………………………. Na manhã seguinte, pouco
depois das sete, Gaspar dirigiu-se novamente à biblioteca, para guardar a
garrafa de cognac. Encontrou Aparício Saavedra na mesma poltrona em
que o vira na noite anterior. Esgar pronunciado da boca, evidência de vómitos
sobre o peitilho da camisa, rosto fortemente contraído, nariz, orelhas e
dedos arroxeados, fizeram-no crer que o seu patrão teria sido envenenado. Pegando no telefone, ligou
imediatamente para a polícia e reportou o facto. Depois subiu ao primeiro
andar, acordou e avisou os três sobrinhos, instando-os a esperarem pela
polícia na sala de jantar. …………………………………. A polícia chegou à “casa
Saavedra” pouco depois das oito horas – dois agentes, o médico-legista e o
inspector Francisco Campos. Conduzidos pelo Gaspar à
biblioteca, o inspector observou rapidamente o cadáver, grotescamente
contorcido numa das duas excelentes poltronas de cabedal, à entrada da sala,
tomando nota mental dos sinais evidentes de envenenamento e da mesinha de
apoio ao seu lado, onde estava uma garrafa de Courvoisier e um balão.
Dedicou depois a sua atenção, com evidente prazer, à impecável ordenação da
enorme e cuidada colecção de livros. Sem dificuldade encontrou secções de
livros de viagens, de romances históricos, de mistérios policiais, de
história da Europa e de Portugal, de astronomia… E, ao fundo da biblioteca
mas com evidente realce, de edições antigas, muitas manifestamente valiosas. Deixando os agentes e os
sobrinhos na sala de jantar, fechou a porta da biblioteca atrás de si, foi
para um recanto da biblioteca no extremo oposto à entrada, e começou os
interrogatórios pelo Gaspar, enquanto o médico-legista examinava o cadáver. – Entrou alguém nesta
sala? – perguntou. – Apenas eu, inspector –
respondeu Gaspar. – Entrei pouco passava das sete, vi como estava o senhor Saavedra
e decidi chamar imediatamente a polícia, ali daquele telefone. Não mexi em
mais nada, fechei a porta da biblioteca e não deixei aqui entrar mais
ninguém. – Aquela garrafa de brandy?... – Cognac,
inspector. Como habitualmente, o senhor Saavedra tomou um cognac
depois do jantar. Aqui na biblioteca, enquanto conversava com cada um dos
sobrinhos. – A que propósito estavam
cá os sobrinhos? Ou viviam aqui em casa? – Não, já há alguns anos
que aqui não vivem. Mas ontem o senhor Saavedra chamou-os cá para jantar e
pernoitar, porque os quis informar das alterações que tinha feito no seu
testamento. – Testamento? – inquiriu o
inspector – E o que é que ele deixou a cada um dos sobrinhos? – Não faço ideia,
inspector. Nem ele nem os sobrinhos me disseram fosse o que fosse. – E você? Coube-lhe alguma
parte da herança? – O senhor Saavedra
disse-me em tempos que quando morresse me deixaria o suficiente para o resto
da minha vida – respondeu Gaspar. – Aprendi há muito que ele nunca fazia uma
falsa promessa, por isso nunca lhe perguntei nada sobre o assunto. Instado pelo inspector,
Gaspar retratou em pormenor a personalidade de Aparício Saavedra e de cada um
dos sobrinhos. Referiu, com profusão de detalhes, que o relacionamento entre
eles tinha sido sempre tenso e agreste, por força da maneira de ser do tio.
Mas acrescentou que nunca ele tinha desleixado as suas responsabilidades como
único parente dos “pequenos”. – Num homem aparentemente
solitário, como você, parece-me estranho conhecer tão bem as vidas dos
Saavedra – comentou o inspector. – Quem recorda nunca está
só, inspector… Relatou depois as
conversas havidas ao jantar, com igual minúcia e precisão, em particular os
“mimos” trocados entre os primos e entre estes e o tio Aparício. – Foi depois do jantar que
o senhor Saavedra foi para a biblioteca, pedindo-me que ali lhe servisse o cognac,
onde teve as conversas com os sobrinhos, penso que sobre o testamento. Por
ordem expressa dele, as conversas foram em privado, com a porta fechada,
primeiro com o Luís Miguel, a seguir com a Carla e por fim com o Teobaldo.
Foram conversas curtas, apenas alguns minutos com cada um. Mas a mais curta
de todas foi a última, com o Teobaldo. Acho que não terá durado mais que dois
minutos. Quando os sobrinhos subiram para os quartos, entrei na biblioteca
para ver se o senhor Saavedra precisava de mais alguma coisa. Depois fui-me
deitar. – Ele pediu-lhe mais
alguma coisa? E como o achou? – Disse-me apenas que não…
– Gaspar hesitou – mas fê-lo com um certo esforço, como se estivesse em
sofrimento. Imagino que as conversas com os sobrinhos não tivessem sido
agradáveis… – Está bem – disse o
inspector. – Faça-me entrar o Luís Miguel para aqui. Ao entrar na biblioteca,
Luís Miguel olhou intensamente para o corpo do tio, à volta do qual se afadigava
o médico-legista, e seguiu para o recanto de onde o inspector o observava. – Diga-me tudo o que
aconteceu quando você e o seu tio, ontem depois do jantar, tiveram a vossa
conversa aqui na biblioteca. – Bom… Isso diz-se muito
facilmente… Ele nem sequer me mandou sentar… Estava sentado na poltrona,
agarrado ao seu balão de cognac, a cheirá-lo profundamente como de
costume, enquanto me dizia que a minha parte da herança seriam os seus dois
carros, um Mercedes e um Bentley. “Não mereces mais nada”, disse-me ele, “mas
como és filho da minha irmã, vou ainda dar-te um livro da minha biblioteca. É
um livro valioso! Vê lá o que fazes com ele!” – Levantou-se da poltrona
– continuou o Luís Miguel – foi a uma estante aqui ao fundo e regressou com
um livro que me passou para as mãos. Vi que era uma espécie de atlas, com
mapas antigos. Perguntei-lhe o que é que recebiam os meus primos… “Não é da
tua conta!”, foi a resposta dele. “Cada um dos teus primos terá a parte que
merece. O Gaspar, pela sua fidelidade e dedicação, terá um quarto dos meus
bens. O resto será entregue a uma instituição de caridade.” E tomou um gole
de cognac, que saboreou na boca enquanto olhava para o meu espanto! E
mandou-me embora. – De que é que acha que o
seu tio morreu? – perguntou o inspector. – Não faço ideia, mas pelo
aspecto diria que de envenenamento. A cara dele faz-me lembrar umas cabeças
que vi num museu da Colômbia, de homens alvejados pelos índios do Amazonas
com setas com curare… Acompanhando o Luís Miguel
até à porta, o inspector notou que aquele evitou tornar a olhar para o corpo
do tio. Chamou a Carla e encaminhou-se com ela até ao mesmo recanto da
biblioteca. Ao passar ao lado da poltrona onde estava o corpo do tio, a Carla
pareceu estremecer. Ao sentarem-se no recanto, em frente um do outro, o
inspector notou a intensa palidez que lhe tomara o rosto. – Conte-me o que se passou
quando você e o seu tio, ontem depois do jantar, tiveram a vossa conversa
aqui na biblioteca. – Foi uma conversa rápida,
apenas alguns minutos – respondeu a Carla, após uns segundos em que,
nitidamente, procurava controlar as suas emoções. – O tio Aparício disse-me
apenas que, quando ele falecesse, eu receberia um terço dos seus bens. Além
disso ia dar-me um valioso livro da sua biblioteca. Deixou-me ali de pé
enquanto foi buscar o livro, deu-mo e mandou-me embora. – Já olhou para o livro? –
perguntou o inspector. – Sim, quando cheguei ao
meu quarto. É uma edição antiga da “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto, do
século XVII. Calculo que vale uma fortuna. – O seu tio bebeu do balão
de cognac enquanto você esteve com ele? – Não – respondeu Carla,
após uma pequena pausa. – Nem sequer pegou nele. – Sabe o que recebem da
herança os seus primos? – Não. Ele não me disse e
eu também não perguntei – respondeu a Carla, baixando a cabeça. – De que é que acha que o
seu tio morreu? – perguntou o inspector. Levantando a cabeça num
gesto sobressaltado, Carla respondeu: – Parece-me óbvio que ele
foi envenenado… O inspector levou a Carla
até à porta da biblioteca e mandou entrar o Teobaldo. Este, ao ver o corpo do
tio, quedou-se estático e pálido, começando a tremer convulsivamente ao fim
de alguns segundos. Pegando-lhe por um braço, levou-o até ao mesmo recanto da
sala, de onde, sentado na cadeira onde os primos também se tinham sentado,
não podia ver o cadáver. – Acalme-se e diga-me tudo
o que aconteceu na sua conversa de ontem à noite com o seu tio, aqui na
biblioteca… Muito a custo, gaguejando
e até soluçando, Teobaldo lá respondeu à pergunta: – O t-t-tio Aparício
chamou-me para me dizer que me p-p-pagaria uma pensão até eu acabar os
estudos, mas que daí em diante teria q-q-que me g-g-governar sozinho. Depois
foi b-buscar um livro e deu-mo, dizendo “Este livro é para ti. Se um dia
tiveres necessidade p-p-poderás vendê-lo, o seu valor p-p-permitir-te-á
v-viver vários anos.” – Já olhou para o livro? – Er… Não… Ainda não…
G-G-Guardei-o na maleta que trouxe ontem. Ao levá-lo para fora da
sala, o inspector fez o possível para que o Teobaldo não passasse perto do
cadáver do tio, nem que tivesse a possibilidade de olhar para ele. …………………………………. Regressando à biblioteca,
fechou a porta e perguntou ao médico-legista: – Então, doutor… Que tem
para me dizer? – É a primeira vez que
vejo um caso destes… E olhe que já tenho muitos anos disto! Não fosse a minha
curiosidade profissional e os benefícios da internet, estaria aqui à nora…
Pelo menos até completar uma série de testes laboratoriais… – Vá lá, vá lá, doutor… – Este homem morreu de
paragem respiratória provocada por envenenamento. Mas antes de morrer passou
pelas passas do inferno! O esgar da boca – de toda a cara! – os vómitos, as
mãos contraídas a agarrar desesperadamente os braços da poltrona, a posição
das pernas… Tudo aponta para um sofrimento inaudito, ainda que não tenha
durado muito tempo! – Pode dizer-me a que
horas ocorreu o óbito? – Por aquilo que vi, há
dez horas atrás – respondeu o médico-legista, olhando para o magnífico grand-father
clock que estava por trás da poltrona, que mostrava 9h15 – mas garantias
só depois de uma autópsia! – Portanto às onze e um
quarto… O jantar terminou às dez e meia… E as conversas com os sobrinhos
foram apenas de alguns minutos… Humm… – Hein?! – exclamou o
médico-legista. – Que tipo de veneno
poderá ter provocado uma morte assim, actuando para aí numa meia hora? – Alguma vez comeu fugu,
inspector? – respondeu o médico, de mau humor. – Aconselho-o a nunca o fazer! – Fugu? Que diabo é isso? – Uma iguaria japonesa,
feita com um peixe chamado peixe-balão, ou baiacu, que existe nas costas do
Japão mas também noutros sítios, como na América do Sul. Acontece que nas
gónadas e no fígado desses peixes se acumula uma toxina tremenda, a
tetrodotoxina… Se o sashimi for feito sem os conhecimentos necessários… Bom…
É uma morte assim como a deste tipo! Se tiver sorte, poderá ainda viver um
par de horas, se não… Uma meia hora chega! – Ah! – Acrescentou o
médico. – E ou me engano muito, ou o balão de cognac de onde ele bebeu
ainda tem restos do veneno! – Confio na sua
experiência, doutor… E baseado na sua conclusão e no que fiquei a saber com
os interrogatórios que fiz, penso que já sei o que aconteceu… E quem foi o
assassino… O inspector saiu da
biblioteca, foi até à sala de jantar, onde estavam, compungidos, Gaspar e os
três sobrinhos do Aparício Saavedra. Chamando os dois agentes que tinham
vindo com ele, deu-lhes instruções em surdina… Os agentes saíram da sala e
subiram ao primeiro andar da moradia… …………………………………. E você, Leitor? Quais são
as suas conclusões? A última parte do texto
vai desvendar o caso. Não continue a leitura sem tirar as suas próprias
conclusões! …………………………………. – Ora bem… – disse o
inspector Francisco Campos, após uma pausa de alguns minutos, dirigindo-se
aos quatro. – Presumo que três de vocês quererão saber quem foi que matou o
Aparício Saavedra, envenenando o cognac que ele tomou na biblioteca… Os quatro, Luís Miguel,
Carla, Teobaldo e Gaspar, olharam uns para os outros, mas nada disseram. – Comecemos pelo Gaspar…
Ele não foi o assassino. Nada tinha a ganhar em o matar, pelo contrário.
Acostumado como ele estava a servi-lo como mordomo, tinha a sua vida
garantida e razoável enquanto o patrão vivesse… E se estão a pensar na parte
da herança que o Aparício Saavedra lhe deixou, desenganem-se… Condenado pelo
seu assassínio não receberia um cêntimo… Já agora, Gaspar, quando se despediu
dele, ontem à noite, o senhor Saavedra estava em sofrimento, sim, mas não por
causa das conversas com os sobrinhos. Era o veneno que já começara a fazer
sentir o seu efeito. – O Teobaldo também não
foi – continuou. – Manifestamente, nunca teria a coragem de o fazer… Além
disso, tendo sido o último a ter a conversa com o tio, o veneno não poderia
ter começado a fazer-se sentir dois ou três minutos mais tarde, quando o
Gaspar lhe foi perguntar se precisava de mais alguma coisa. Nesse momento os agentes
desceram do primeiro andar. Um deles, dirigindo-se ao inspector, deu-lhe
discretamente um pequeno saco de plástico com qualquer coisa dentro, enquanto
lhe sussurrava ao ouvido. O inspector, de costas para os quatro, olhou para o
objecto dentro do saco de plástico e sorriu-se. – O Luís Miguel é um claro
candidato a assassino… Não só pela sua experiência de vida, mas também como
vingança pelo desprezo com que o tio o tratou, em vida e relativamente à
herança… Mas era preciso que tivesse sabido da decisão testamentária em
relação a si bem antes do jantar, para poder preparar o envenenamento, e tal
não foi o caso, obviamente. Mais importante do que isso, no entanto, foi o
facto de ter sido o primeiro a ter a conversa final com o tio… Vocês conhecem
o ritual de bebida dele. Se o envenenamento do cognac tivesse sido
feito pelo Luís Miguel, nunca teria passado despercebido ao Aparício Saavedra
ao saborear o primeiro gole logo antes de o mandar embora… – E falta aqui a Carla,
não é?... Pois é… Deve-lhe ter sido muito difícil aceitar que o seu tio até
lhe tinha uma certa afeição, mas que nem por isso deixava de lhe exigir mais
que a qualquer dos seus primos, nem de a tratar com menos dureza. Pelo sim,
pelo não, decidiu que o melhor seria que ele morresse, agora que tinha
refeito as suas disposições testamentárias… Acreditava que ele lhe iria
deixar uma parte substancial da herança, mas não podia confiar em que ele não
viesse mais tarde a reduzir a sua parte. Ao ver o balão de cognac
poisado na mesinha, percebeu que a primeira parte do ritual de bebida do seu
tio já tinha ocorrido… Era a sua oportunidade, única… Foi só aproveitar o
meio minuto em que ele se afastou para ir buscar o livro que lhe ofereceu
para despejar o veneno no balão… O segundo trago de cognac seria
grande e rápido… Mas foi uma enorme imprudência da sua parte ter guardado o
frasquinho em que trouxe o veneno junto aos seus perfumes… Talvez para se
livrar dele num local mais discreto e seguro, não? E o inspector Francisco
Campos exibiu o saco de plástico que lhe tinha sido entregue pelos agentes. |
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DANIEL FALCÃO |
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