PÚBLICO – POLICIÁRIO

 

Publicação: “Público”

Coordenação: Luís Pessoa

 

Data: 24 de Fevereiro de 2002

 

Campeonato Nacional

Taça de Portugal

2001-2002

 

Regulamentos

 

Prova nº 1

Prova nº 2

Prova nº 3

Prova nº 4

Prova nº 5

Prova nº 6

Prova nº 7

Prova nº 8

Prova nº 9

Prova nº 10

Prova nº 11

Prova nº 12

 

Resultados

 

 

CAMPEONATO NACIONAL 2001/2002

 

PROVA Nº 7

 

O OCUPANTE DO QUARTO 205

Autor: Natércia Leite

 

Naquele dia sombrio e invernoso já a Alice passara algumas vezes nos corredores do segundo piso. Desempenhava as suas funções sem enfado e uma tanto automaticamente. Pessoas iam e vinham. Ouviam-se vozes dispersas e passos perdiam-se nas espessas alcatifas.

A Alice parou em frente do 205. O corredor estava vazio e a curiosidade era incontrolável… À porta estava um par de sapatos pretos e na maçaneta da porta colocado um dístico: NÃO INCOMODE.

Pouco passava das vinte e uma horas.

Por momentos encostou o ouvido na madeira da porta. Nada ouviu. Não devia meter-se no pelouro da Carlota, que era quem atendia o ocupante do 205: o Duarte. Este tinha uma maneira de ser muito peculiar e era muito cioso da sua privacidade.

Por vezes, madrugada bem alta, tinha a Carlota de o ajudar a deitar-se. Bebia pouco, suportando mal o álcool e entusiasmava-se até à exaustão, estando horas seguidas ao piano, improvisando, perdida a noção do tempo. As suas actuações eram fabulosas e a voz, grave e melodiosa.

Teria o dístico ficado esquecido? E os sapatos?... Parecia que ninguém notara ainda a ausência do artista… Ou não seria assim?

Atrevida, bateu com os nós dos dedos. Silêncio. A Alice esteve quase, quase, a experimentar a maçaneta. Resolveu foi, sem alardes, chamara a Carlota. O Duarte era bastante distraído com as chaves, devido à mudança de fatos. Ora a porta estava no trinco, ora chaveada. O dístico tornava-se importante, pois dormia de dia.

Sob o aspecto de hotel de categoria – esmerado serviço de quartos e restaurante, os lucros mais chorudos provinham da cave à prova de som, conhecida dos frequentadores por “Gaiola Dourada”, onde o jogo era levado muito a sério. O “Canário”, esse era o Duarte, Alex de nome artístico. A natureza dotara-o de atributos que agradavam a todos. Diziam-no femeeiro, mas era inexacto. Não esboça gesto ou palavra para seduzir quem quer que fosse.

A sedução era ELE! Atraente, desprendido e simpático, lidava com as mulheres com naturalidade. No entanto, achava-as atrevidas e por vezes um tanto loucas nos seus arrebatamentos. Não tinha consciência do seu magnetismo pessoal. Acreditava que atraía pelos seus méritos de pianista e vocalista.

Solange alternava com ele para descansos breves. Era o toque imprescindível da feminilidade.

Claro que, subjacente, havia um caudal de invejas, ciúmes e animosidades de toda a espécie.

 

O quarto 205. A ocorrência. O alarme. A morte

A Alice trouxe a Carlota, já alertada. A essa hora já o Duarte costumava estar lá em baixo, jantando e preparando-se para a primeira actuação. Poderia estar ainda a dormir, é certo…

Decidida, a Carlota rodou com força a maçaneta: a porta estava fechada à chave! A Alice bem viu como se franziram os sobrolhos da Carlota que, por instantes, se quedou cismática.

Dera-lhe ordem de não sair dali, pois ia, numa corrida, buscar a outra chave que estava na recepção. Por certo voou! Em poucos minutos estava a procurar meter a chave na fechadura, o que conseguiu, abrindo de imediato a porta. Estava lá dentro uma luz difusa…

No pequeno vestíbulo, à esquerda, ficava a casa de banho. Em frente, o quarto. O silêncio era pesado. Carlota e Alice entraram e acenderam as luzes do vestíbulo e do quarto. Descreveriam mais tarde quanto se lhes deparou:

1 – A janela, de dois batentes, estava fechada, os cortinados leves e brancos corridos e fechados, unindo-se ao centro os reposteiros abertos;

2 – O Alex Duarte Canário estava na cama, deitado de costas, esticado;

3 – A roupa da cama tapava o corpo até ao pescoço e a dobra branca do lençol estava direita sobre a colcha de ramagens;

4 – O Duarte, que costumava dormir sem almofada, tinha os olhos fechados e parecia ainda dormir; não fora a grande palidez do rosto e um acentuado ricto de dor;

5 – Tinha a cabeça descaída para a esquerda e viram no ouvido direito um leve fio de sangue escorrendo ao longo da face…

Entretanto, pelo telefone, Carlota pedira socorro. Juraram mais tarde que apenas tinham aberto a porta e acendido as luzes, não tendo tocado em nada, como o frouxo do gerente lhes vociferara pelo telefone, até ir ter com elas. Quando chegou viu tanto como as jovens. O melhor mesmo era chamar o patrão, dono daquele mundo de jogo e emoções fortes… Remetia assim toda a responsabilidade para os ombros do outro, esquivando-se a tão desgraçada ocorrência.

Motivos? Esses não faltariam. O Duarte era jogador no pano verde e na vida. Conseguia atear paixões de diferentes tipos, tendo criado à sua volta um denso clima. Verdade, verdade é que o Duarte era vítima sob diversos prismas.

 

Factos concretos. Pormenores

O Duarte não costumava dormir com almofada. Mas estava ali uma, atirada ao acaso, amarrotada, complemento talvez da roupa da cama, num dos lados os bordos chamuscados, no outro ténues vestígios de sangue. As chaves do quarto 205 estavam sobre a mesa-de-cabeceira.

O “smoking” amarrotado fora posto num cabide alto, de madeira, perto da janela. A camisa branca por cima e duas meias pretas no chão. O roupeiro de parede, uma cadeira, “maple”, etc., nada traziam de novo ao caso. Havia também uma mesa rectangular com revistas espalhadas por cima, onde Alex comia. A casa de banho estava impecável, brilhante de limpeza.

Na véspera, o Duarte recolhera-se tardíssimo, vacilante e de péssimo humor. Tivera de ser ajudado para chegar ao 205, mas pusera toda a gente a andar, fechando a porta com estrondo.

Já o tinham ameaçado várias vezes, a ponto de não ligar. E relevava… a vida tornava-se num renhido jogo, no qual todos queriam ganhar! Mas uma arma carregada (como se verificou) apontada à sua cabeça pela histérica mulher do gerente, isso ultrapassava as marcas!

Os hábitos do Duarte, como Alex, variavam pouco. Recolhia-se manhã alta, sapatos no corredor e dístico na maçaneta da porta. Despia-se de qualquer maneira, fechava os reposteiros e o sono envolvia-o logo. Quando acordava, tocava três vezes para chamar Carlota. Ela vinha com a chave (podia a porta estar ou não só no trinco, mas sabia que ele tinha o cuidado, no caso de se fechar à chave, de não a deixar na fechadura). Após chamar a jovem, já ela trazia, como usualmente, um copo de água com uma aspirina. Depois o Duarte pedia uma refeição leve. Saísse ou não, já tomava o jantar lá em baixo, antes da primeira actuação.

Quando chegava a Carlota com o tabuleiro, já ele tinha tomado banho, feito a barba, estando de roupão vestido. Esse roupão que estava ali, no fundo da cama. Quanto aos reposteiros, abria-os ela, se estavam fechados, ou o Duarte ao levantar-se, para entrar a luz.

Naquela fatídica manhã, sentara-se à mesa a comer o que pedira: sumo de laranja, ovos mexidos com presunto, torradas, compota e um café forte. Comera devagar e calado, enquanto ela fazia a cama, trocava a roupa e lavava a casa de banho. Levantara-se depois o Duarte, dizendo-lhe que ia dormir um pouco mais.

Apressara-se ela a dar um jeito aqui e ali, levar a roupa que mudou e o tabuleiro. E fazer o que ele pedira: pôr os sapatos pretos lá fora e o dístico. A última coisa que fizera fora correr os cortinados e fechar os reposteiros. Lembrava-se de ter deixado a porta no trinco.

Espanto. Surpresa. Incredulidade.

Ao levantarem a roupa da cama, no destapar do corpo, depararam com algo inesperado! Toalhas turcas brancas estavam dobradas sobre o ventre (como se fossem compressas). Via-se uma mancha alastrada de sangue, no cimo dos turcos e o lençol de cima estava manchado. As toalhas estavam ensopadas, rente ao corpo. Um objecto cortante tinha penetrado o ventre do pianista.

Perante o horror do que se via, o dono do hotel chamou imediatamente a polícia, tendo o caso ficado entregue à secção de homicídios.

Seguiram-se os trâmites habituais nestes casos e tiraram-se conclusões:

1 – Não foram encontradas as armas do crime.

2 – As impressões digitais foram insuficientes para poderem tirar-se conclusões.

3 – O Duarte ingerira sedativos, indutores do sono.

4 – Na autópsia, além do pormenor citado anteriormente, perante os restos dos alimentos, o tempo de digestão, a rigidez cadavérica, os ferimentos já mencionados, etc., apurou-se mais ou menos a hora da morte.

5 – Às 15h30, um hóspede identificado, enganando-se no caminho, reparou nos sapatos pretos e no dístico à porta do 205.

6 – Antes das 17 horas, mas depois das 16, houve quem visse Solange a falar e chorar à porta desse quarto, o que evidentemente despertou a atenção, perante o insólito do facto.

7 – O gerente, procurando falar com Alex sobre os acontecimentos da véspera, perguntara à Carlota pelo Duarte, tendo ela respondido que devia estar ainda a dormir, tendo em conta a noitada, o cansaço e o sono sempre em atraso.

8 – A mulher do gerente, nessa noite, na maior exaltação, na sala de jogo, brigara com o pianista e ameaçara-o de morte, chegando a apontar-lhe uma pequena arma. Gerara-se confusão e o marido, ao tentar separá-la dos outros, ainda levara um valente soco perdido, tendo-lhe partido os óculos.

Pergunta-se:

– O que provocou a morte do Duarte?

– Quem pretendeu matar o Duarte?

Fala-se em sapatos pretos, roupas, chaves, horas. Na sua solução, não os esqueça.

 

SOLUÇÃO

 

 

© DANIEL FALCÃO