PÚBLICO – POLICIÁRIO

 

Publicação: “Público”

Coordenação: Luís Pessoa

 

Data: 7 de Abril de 2002

 

Campeonato Nacional

Taça de Portugal

2001-2002

 

Regulamentos

 

Prova nº 1

Prova nº 2

Prova nº 3

Prova nº 4

Prova nº 5

Prova nº 6

Prova nº 7

Prova nº 8

Prova nº 9

Prova nº 10

Prova nº 11

Prova nº 12

 

Resultados

 

 

CAMPEONATO NACIONAL 2001/2002

 

PROVA Nº 9

 

MUITAS BALAS PARA UM HOMEM SÓ

Autor: Paulo

 

O aspecto do corpo assustava. O peito e o rosto estavam empastados de sangue. Tinham sido demasiados tiros para um homem só. Embora habituado a cenários pouco atraentes, Narciso Morais não conseguiu evitar uma náusea e sentiu enorme relutância em olhar o cadáver. Teófilo Vasques encontrava-se sentado na confortável cadeira de braços, recostado para trás e a cabeça pendente sobre o ombro direito. A cadeira estava por detrás de uma secretária, mesmo em frente da porta, para quem entrasse. Na parede do lado esquerdo uma larga janela, com portadas de madeira e cortinados brancos dava para um bem tratado jardim. As paredes encontravam-se adornadas com quadros, ou estantes onde imensas lombadas de livros bem encadernados davam um aspecto de grande sobriedade ao compartimento, que funcionava como biblioteca e local de trabalho do falecido industrial. O chão, em madeira bem tratada estava marcado por inúmeras pegadas de lama, que provinham da cozinha, atravessavam o comprido corredor até ao pequeno escritório, assim como cápsulas de bala, espalhadas pelo aposento. Apenas as zonas junto às paredes e janela estavam limpas. Em frente à mesa, encontrava-se uma arma, que o experiente e sabedor olhar de Narciso Morais não teve dificuldade em identificar como uma Walther PP. Em cima da secretária, viam-se alguns papéis salpicados de sangue, assim como dois “bibelots”, de aspecto sóbrio.

Quando abandonou o pequeno escritório, Narciso Morais suspirou de alívio. Dirigiu-se para a enorme sala de jantar, onde ouviu, à vez, as primeiras declarações das pessoas presentes no momento do crime.

Firmino, o jardineiro e homem para toda a obra, foi o primeiro a falar:

– Eu andava a tratar do jardim, que este Maio vai chuvoso e ainda se podem plantar muitas flores. Estava mesmo por debaixo da janela do escritório, quando ouvi perfeitamente oito tiros, todos seguidos. Fiquei uns segundos pasmado, mas logo percebi de onde vinha o barulho. Como a janela é um pouco alta, pois a frente da casa corresponde ao primeiro andar, enquanto, por causa da inclinação do terreno, do outro lado é rés-do-chão, não consegui ver nada. Então corri pela cozinha. Abri a porta, nem respondi à Cremilde e corri para o escritório, deixando tudo cheio de lama, por causa da chuva da manhã – olhava para as botas –, mas agora já as limpei.

Narciso Morais, prestou atenção às botas que, ainda um pouco sujas por cima, já estavam suficientemente limpas para não deixarem rasto.

Cremilde, mulher de idade indefinida que poderia ir dos quarenta e poucos aos cinquenta e muitos, falou de seguida:

– Estava na cozinha a fazer uns bolos e tinha a televisão ligada. Estava a ver a telenovela, que tinha começado naquele momento, eram três horas, quando ouvi uns ruídos, mas não percebi muito bem o que eram. Agora sei que foram tiros. Só vi o Firmino a entrar espavorido pela cozinha, que parecia trazer o demónio atrás dele, e a deixar tudo sujo. Corri atrás dele até ao escritório e quando vi aquele horror, acho que desatei a gritar.

Bernardo Vasques, viúvo e irmão do falecido, com quem partilhava a casa, ainda mal refeito do choque, declarou:

 – Eu estava no meu quarto, sentado ao sol, no sofá. Estava de auscultadores nos ouvidos a ouvir música. Ia ouvindo e dormitando. Sou um apaixonado pela música do século XIX e estava a ouvir Wagner. Talvez a “Cavalgada das Valquírias” me tenha impedido de ouvir os tiros. Só me apercebi de alguns gritos aflitos cá baixo. Então tirei os auscultadores e desci. Eu já tinha dito ao meu irmão que deveria fazer desaparecer aquela arma, que ele mantinha sempre pronta a disparar. Nunca percebi do que é que ele tinha medo, mas parece que afinal tinha razão.

Vi o que se passava e fui abrir a porta da frente, que estava fechada, onde alguém não parava de tocar a campainha. Vi que era o doutor Natálio.

A outra pessoa que estava para ser ouvida era Natálio Vilares, advogado da vítima, homem dos seus cinquenta anos, vestido como um manequim e de sapatos brilhantes:

– O senhor Teófilo mandou chamar-me pois queria alterar o seu testamento, e deserdar completamente a família. Dos beneficiários do testamento anterior, só ficavam os criados e eu próprio, que já o sirvo, ou melhor, servia há muitos anos. Tinha-me mandado estar cá às três horas. Devido a um furo, atrasei-me. Estava a sair do carro, passavam um ou dois minutos das três, quando saiu o Jorge, que me disse ir levantar uma encomenda aos correios, para o pai. Entrei pelo portão, que estava aberto, e quando me dirigia para a porta ouvi os tiros. Não os contei. Como não percebi na altura, o que poderia ser, dirigi-me para a porta da frente. Toquei. Mas ninguém veio abrir, embora se ouvisse um grande alarido dentro da casa. Eu tenho uma chave da casa, que em tempos o senhor Teófilo me deu, mas hoje não a trouxe. Finalmente ouvi a chave rodar e o senhor Bernardo abriu-me a porta.

Narciso Morais decidiu dar uma volta pela casa. Subiu ao andar de cima, onde havia vários quartos.

O da vítima estava perfeitamente arrumado e limpo. Olhou, procurando algum pormenor que lhe chamasse a atenção, mas nada viu.

O quarto de Bernardo Vasques era semelhante ao do irmão, só que o do falecido dava para a frente da casa. Lá estavam os auscultadores em cima do sofá, ligados à aparelhagem. Narciso abriu o compartimento do CD e lá estava um disco a confirmar o que Bernardo dissera.

O outro quarto era o de Jorge. Via-se que ali havia alguém mais desarrumado. Havia roupas, livros e discos espalhados. A janela estava aberta e Narciso foi até lá. Olhou para baixo e reparou que ficava mesmo por cima da janela do escritório de Teófilo.

Saiu do quarto. Olhou as escadas que conduziam às águas furtadas onde ficava o quarto de Cremilde, mas a audição de algumas vozes agitadas em baixo, fê-lo descer. Era Jorge que chegara. Aparentava ter pouco mais de 25 anos e o aspecto de quem nada fazia.

Quando se acalmou, pôde dizer:

– Eram quase três horas quando o meu pai me pediu para ir buscar uns discos novos à estação dos correios. Peguei no carro e ao sair cruzei-me com o doutor Natálio, que costuma deixar sempre o carro na estrada. Disse-lhe onde ia e ele referiu-me que estava atrasado porque o meu pai lhe pedira para estar cá às três. Disse-lhe para não ligar a isso, porque olhei para o relógio e eram só três horas e três minutos. Fui buscar a encomenda e depois fui até ao Centro Comercial. Lanchei lá e cheguei neste momento.

Ouvida toda a gente, Narciso Morais ainda queria observar melhor alguns pormenores. Deixou a enorme sala e percorreu o impecável corredor, onde quase parecia haver um repelente de pó, que dava acesso à porta da frente. Estava apenas no trinco. Abriu a pesada porta de madeira e saiu. Uma escadaria de alguns degraus conduzia a um empedrado, que se prolongava por algumas dezenas de metros até ao portão da propriedade, que dava acesso à estrada. Desceu as escadas e virou à esquerda, dobrando a esquina, entrando na zona ajardinada. Daquele lado da casa não havia portas. Apenas algumas janelas, entre as quais a do quarto de Bernardo Vasques. Observando o terreno enlameado debaixo das janelas, não detectou qualquer pegada. Subiu a ligeira inclinação do terreno que o levava às traseiras, onde se localizava a porta da cozinha. Eram notórias as pegadas que se dirigiam à zona empedrada junto à porta, vindas do outro lado da casa. Nas traseiras, no rés-do-chão, apenas a cozinha tinha janelas. No primeiro andar, via-se apenas uma varanda, talvez para poupar os habitantes ao rigor da nortada.

Narciso Morais dobrou a esquina, procurando a origem das pegadas e encontrou-se debaixo da janela do compartimento onde ocorrera o crime. A janela estava fechada, assim como todas as outras ao lado. Debaixo das outras janelas, não eram visíveis pegadas. Junto do canteiro, onde Firmino estava quando ouviu o tiro, estavam abandonadas umas luvas a cerca de um metro uma da outra. Narciso Morais recolheu-as com cuidado, guardando-as num saco preparado para esse tipo de serviço.

Olhou mais uma vez a janela do escritório fatídico que se desenhava por cima da sua cabeça.

Voltou à porta da cozinha, limpou os pés sujos de lama e entrou para comunicar a sua partida.

Mais tarde, Narciso Morais veio a saber que Firmino trabalhava em casa de Teófilo, mas dormia fora. Bernardo e o filho da vítima viviam pendurados no falecido. Bernardo tinha dívidas de jogo e Jorge gastava todo o dinheiro que lhe passasse pelas mãos. Segundo Cremilde, o patrão preparava-se para pôr os dois na rua. Natálio Vilares também não estava muito bem de finanças, necessitando urgentemente de dinheiro para cobrir os prejuízos de um negócio imobiliário que tinha corrido mal. Soube, também, que a vítima normalmente guardava a arma no quarto.

A autópsia e análise balística, demonstraram que a vítima tinha levado oito tiros de calibre 7,65 mm, disparados pela arma encontrada no chão.

Foi também provado que as luvas encontradas tinham segurado uma arma que disparara recentemente, provavelmente a do crime e que pertenciam a Firmino, que afirmou não as ter usado naquele dia. Afirmou que havia cerca de uma semana que as não usava, nem tinha necessitado delas.

Perante o exposto, Narciso Morais não teve dúvidas sobre o sucedido…

– Quem foi que cometeu o crime? Exponha o raciocínio que o levou a essa conclusão.

 

SOLUÇÃO

 

 

© DANIEL FALCÃO