Publicação: “Público” Data: 4 de Maio de 2003 Campeonato Nacional
2002-03 Taça de Portugal 2002-03
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CAMPEONATO
NACIONAL E TAÇA DE PORTUGAL 2002-03 PROVA Nº 8 UM CRIME MAIS QUE PERFEITO Autor: Vilnosa Fora um dia de
trabalho exaustivo, com a sala de espera repleta de pacientes aguardando a sua
vez de serem atendidos. Se bem que habituado a situações deste género, o
certo é que, naquele fim de tarde, o Dr. Hipócryta
não conseguia disfarçar o cansaço e a saturação de tantas horas de consultas
e de casos mais ou menos complicados; a voz ligeiramente arrastada, os gestos
lentos e as olheiras fundas denunciavam um estado de espírito e uma condição
física muito próximos da saturação. Mas...”noblesse oblige”! E aquele
simpático e discreto casal de “ex-toxicodependentes” (como a si próprios se
referiam o José e a Salette Boavida) ali estava à
sua frente a solicitar dois certificados de robustez física, indispensáveis
para a frequência de um curso de formação. Assunto fácil, de
rápido atendimento, pois não se tratava do habitual pedido de receitas para
“serenais”, “paxilfares” ou quaisquer outros
produtos similares... O Dr. Hipócryta passou o primeiro certificado, que assinou e
autenticou com a vinheta obrigatória. E preparava-se para redigir o segundo
(onde, inclusivamente, já colara a respectiva vinheta)
quando, pelo intercomunicador, a voz da recepcionista
se fez ouvir, aflita e ansiosa: uma das pacientes, ainda na sala, sentira-se
desfalecer e carecia de observação imediata! Chamada pelo
doutor, dona Lúcia abriu a porta do gabinete e completou a sua informação com
alguns pormenores acerca da identidade da senhora em causa. O médico levanta-se
da cadeira e, tão discretamente quanto possível, guarda a folha das vinhetas
autocolantes na gaveta superior direita da secretária. Pede desculpa ao casal
pela imprevista mas inevitável interrupção e sai imediatamente, acompanhado
pela recepcionista. O caso, felizmente,
não era grave. O Dr. Hipócryta começou por tomar o
pulso da doente mas, fiel aos seus hábitos de rigor, pediu à dona Lúcia que
lhe trouxesse o esfignomanómetro. Observada e
medicada, a senhora recuperou rapidamente; mas, como medida de precaução
imposta pelo médico, foi conduzida para outra dependência a fim de repousar
por mais algum tempo. O Dr. regressou, entretanto, ao seu gabinete, onde só encontrou
o José Boavida, que se apressou a esclarecer: “A minha mulher pede desculpa
de ter saído, mas estava na hora de ir buscar o garoto ao infantário...” “Tudo bem” –
respondeu, enquanto concluía a redacção do segundo
certificado – “e aqui tem o seu papel! Oxalá que sejam admitidos ao curso e o
terminem com êxito!” Seguiu-se uma
rápida consulta a um velho conhecido, sem que tenha sido necessária qualquer
medicação. Na sala de espera já não se encontrava mais ninguém. Faltava
apenas rever a doente que, num outro compartimento, se mantinha em repouso e
prescrever uma receita que as circunstâncias aconselhavam. E foi nessa altura
que o Dr. Hipócryta sofreu a grande surpresa do
dia: ao procurar a folha das vinhetas que, apressadamente, guardara na gaveta
da secretária, verificou o inacreditável: essa folha já lá não estava! Ainda sem admitir a
pior das hipóteses, chamou a recepcionista: “Dona Lúcia!
Quando, há pouco, veio aqui buscar o aparelho da tensão arterial, procurou-o
nesta gaveta?” “Eu... eu... sim, sr. doutor,
abri-a, de facto; mas fechei-a logo a seguir, porque vi o aparelho sobre
aquela cadeira...” “E, ao abrir a
gaveta, não viu lá, por cima de toda a papelada, uma folha de vinhetas,
dobrada em quatro partes?...” “Ah! Sim! Ainda lhe
peguei, mas voltei a metê-la na gaveta, sr. doutor. Mas porque me pergunta isso?...” “Porque a folha
desapareceu, dona Lúcia!” – replicou, já nervoso, o
Dr. Hipócryta – “e é preciso encontrá-la
urgentemente! Se a senhora, como diz, a deixou na mesma gaveta, só duas pessoas
podem ter sido as autoras desta ‘proeza’: o casal Boavida, que aqui deixei
quando fui assistir à doente, na sala de espera.” Consciente dos
graves problemas que as vinhetas, “em mãos erradas”, poderiam ocasionar, o
médico não hesitou e, pelo telefone, pediu ao posto da polícia mais próximo a
presença de um agente capaz de tomar conta da ocorrência. Foi então que a recepcionista, muito embaraçada, pediu para ser ouvida em
particular. E, perante a crescente estupefacção do
médico, confessou o que se segue. De facto, teve nas
mãos a folha desaparecida e não resistiu a tirar dela uma vinheta, na
esperança de que a sua falta não fosse notada. Há já alguns dias que
premeditava esta maldosa operação, mas nunca tivera nem uma boa oportunidade,
nem a suficiente coragem. Nesse dia, porém,
vira o dr. arrecadar a
folha naquela gaveta, já abarrotada de papéis, e percebeu que ela ficara bem
fácil de encontrar, pois era o último dos documentos ali arrecadados, e já
com alguma dificuldade. Essa vinheta destinava-se a ser usada numa receita
que ela própria preencheria, por ter vergonha de a pedir ao médico, apesar de
trabalhar diariamente com ele. Razão de tamanho
acanhamento: o marido de Lúcia, alguns anos mais velho do que ela, atravessava uma fase crítica da sua vida sexual e
pretendia socorrer-se do milagroso Viagra para
recuperar a normalidade... Não queria, contudo, que essa deficiência, que
considerava temporária, fosse conhecida fora do ambiente estritamente
familiar; daí o ter convencido sua mulher a cometer o pequeno roubo (a que se
juntaria, obviamente, um impresso de receita), para tentar adquirir o
medicamento com a máxima discrição. Mas o
desaparecimento da famigerada folha alterou por completo os planos de Lúcia,
que, segundo disse, considerou não dever esconder o motivo que a levou a
subtrair uma daquelas vinhetas; garantiu, no entanto, que deixou a folha no
mesmo local, se bem que, devido à pressa e ao nervosismo, não a tenha dobrado
em quatro partes, atirando-a atabalhoadamente para dentro da gaveta. Por último, e já
com as lágrimas nos olhos, pediu desculpa e devolveu a vinheta. Quanto ao
casal Boavida, disse que ainda lá estavam ambos quando foi ao gabinete; tanto
o José como a Salette, a viram pegar na folha, mas
garante que não se aperceberam do roubo, porque o gesto foi executado com
rapidez e com as mãos encobertas pela secretária. Dois agentes da
polícia (um dos quais graduado) compareceram pouco depois e não tardaram a
agir com a maior eficiência. Ainda nessa noite conseguiram averiguar o
seguinte: – A Salette Boavida só chegou ao infantário meia hora depois
de ter saído do consultório; – Essa demora,
pouco habitual, explicou-a com o facto de ter perdido muito tempo na
farmácia, onde fora comprar aspirinas e um maço de algodão; – A farmácia
confirmou esta compra e disse não ter aviado, nessa tarde, qualquer outra
receita passada pelo Dr. Hipócryta. Convidados a
comparecer no consultório nessa mesma noite, José e Salette
confirmaram ter visto a recepcionista mexer na
gaveta e tirar de lá uma folha de papel, mas não souberam dizer de que papel
se tratava. Exibiram, nessa altura, os certificados que ainda tinham em seu
poder. As investigações
prosseguiram no dia imediato, incidindo sobretudo na análise de todas as
receitas do Dr. Hipócryta, apresentadas nas
farmácias da área. Ao fim da tarde, de
novo no consultório, o graduado da polícia expôs uma tese que, durante a
noite, germinara no seu espírito e que, no seu entender, talvez fosse o
caminho certo para revelar o misterioso responsável pelo desaparecimento das
vinhetas... E por aqui nos
ficamos, cabendo agora aos prezados leitores substituírem-se ao investigador
policial na solução deste caso. |
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©
DANIEL FALCÃO |
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