Publicação: “Público” Data: 16 de Março de 2003 Campeonato Nacional
2002-03 Taça de Portugal 2002-03
|
CAMPEONATO
NACIONAL E TAÇA DE PORTUGAL 2002-03 PROVA Nº 7 O MISTÉRIO DO VOLUME Nº 5 Autor: Dic Roland Em rigor, não se
trata verdadeiramente de um crime, na mais arrepiante acepção
do termo. É, contudo, um acto doloso e, como tal,
merecedor de punição. O caso foi-nos relatado pela própria vítima, o
engenheiro e professor aposentado Salústio Zacarias (nosso amigo e vizinho na
pacata vila de Santo André), durante o jantar que partilhávamos num
restaurante local e no próprio dia em que a lamentável ocorrência foi detectada. Aproveitando uma
curta ausência em Lisboa (o que acontece raramente), alguém lhe assaltou a
casa para roubar – imagine-se!... – um volume da
Enciclopédia Verbo, Século XXI, comprada há pouco tempo. O assalto aconteceu
entre as 16 horas de sexta-feira e as 17 de domingo, isto é, no período
compreendido entre a hora em que Zacarias se ausentou e aquela em que, dois
dias mais tarde, regressou a Santo André. Recolhida a bagagem, tirou o casaco, vestiu
o roupão e foi trabalhar para o escritório. E aí, mal se sentou à secretária,
logo notou que, na estante da parede fronteira, uma clareira se abria na
prateleira da Enciclopédia! A sua paixão pelos livros e a mania (talvez
excessiva) de os arrumar criteriosamente fizeram-no saltar da cadeira para
procurar o volume em falta. Mas, por muito que
procurasse, o livro não foi encontrado! Ainda quis admitir que, contra os
seus hábitos, o tivesse levado para o quarto ou para a sala de jantar, se bem
que tal procedimento lhe parecesse improvável. Após uma busca infrutífera,
acabou por se convencer de que o volume fora mesmo retirado abusivamente. Acompanhámos o
nosso amigo a casa, na estulta pretensão de descobrir o livro num recanto
qualquer, esquecido ou ignorado pelo inconsolável Zacarias. Temos uma certa
vaidade no nosso “hobby” de investigador, e pensámos
que o problema seria fácil de resolver... Puro engano! Tratava-se,
precisamente, do volume quinto da obra já referida, com entradas
compreendidas entre “Bourbon” e “Carlota Joaquina de Bourbon”. Decidi tomar a
peito este assunto e pedi que me fossem dados todos os pormenores susceptíveis de fazer alguma luz sobre o mistério. Salústio Zacarias,
sempre prestável para amigos e vizinhos, recebera em sua casa, na sexta-feira
da semana anterior, três jovens estudantes que lhe foram pedir apoio na
resolução de uns problemas de matemática, incluídos num trabalho de casa.
Terminada a “lição”, que teve lugar no escritório, os estudantes aproveitaram
a oportunidade para consultar algumas obras patentes nas estantes, ao que o
professor simpaticamente não se opôs. A Enciclopédia, com os seus 25 volumes
já publicados, foi das obras mais manuseadas durante cerca de meia hora, mas
sempre na presença do anfitrião. E este garante que, depois da saída dos
jovens, ainda ficou alguns minutos no escritório e não notou qualquer falta
nas prateleiras. “Eu também saí
pouco depois” – disse ele – “pois já estava um tanto atrasado na minha saída
para Lisboa. E agora me lembro: já me despedira até quarta-feira (dia em que
pensava regressar) e preparava-me para arrancar, quando o Fernando, que
apareceu a correr, veio pedir-me que o deixasse voltar ao escritório, onde
esquecera o telemóvel. Saí do carro e fui abrir a porta. Fernando entrou e
regressou logo a seguir, com o telemóvel na mão.” “E não traria
também o livro debaixo do braço, encoberto com o casaco?” – perguntámos. “Impossível” –
respondeu. – “Fazia muito calor e todos eles estavam em camisa, sem mangas. E
um volume daqueles não se esconde nos bolsos das calças... Ainda o vi entrar
em casa, que é igual à minha e geminada com ela.” “E os outros?” “Os outros,
entretanto, foram-se embora. O Flávio, para o Clube
de Ténis, aqui próximo; é um apaixonado jogador de bridge
mas ainda está na fase de aprendizagem. E até levava, numa pasta de cabedal
que trazia consigo, dois tratados de Culbertson e Albarran recentemente adquiridos, para mostrar aos seus
parceiros habituais. Pelo menos foi isso que nos disse... O Francisco, que me
parece o mais pacato de todos, foi logo para casa, a poucos metros da minha.
É filho da D. Zulmira, a senhora que faz o serviço de limpeza no meu
apartamento, às terças, quintas e sábados. Todos eles são adultos e
trabalhadores estudantes, frequentando, num curso nocturno,
o 11º ano.” A solução do
problema não parecia fácil. Uma casa desabitada durante dois dias, portas e
janelas bem fechadas, sem qualquer vestígio de arrombamento, e um volumoso
livro desaparecido como por encanto!... Havia, contudo, um
ponto vulnerável: a D. Zulmira, mãe de Francisco, estivera lá no sábado,
entre as dez e as treze horas! Nesse mesmo sábado, à hora do jantar, o
engenheiro telefonou de Lisboa a informá-la de que voltaria para Santo André
no dia seguinte (e não na quarta, como previra), não fosse ela facilitar, e
adiasse a limpeza para mais tarde... Era a única pessoa,
além do proprietário, que dispunha de uma chave da casa, pelo que se tornava
indispensável ouvi-la. “Foi até o filho que atendeu o meu telefonema” –
esclareceu Salústio Zacarias. Dona Zulmira não
tardou a comparecer quando, cerca das 22 horas, foi chamada pelo telefone. Que, sim senhor, estivera ali na véspera, das 10 às 13 horas! Durante
esse período ninguém apareceu, a não ser o filho Francisco para lhe dizer que
não almoçava em casa. Foi ele, até, que ajudou a mãe a recolher a roupa do
estendal, no terraço contíguo ao escritório, nas traseiras. E dona Zulmira fez
questão de acrescentar: “Olhe, senhor engenheiro, ainda bem que o meu rapaz
apareceu! Quando quis abrir a porta do terraço, a chave não estava na
fechadura, do lado de dentro, como é costume. Foi ele que a descobriu na
secretária, junto do candeeiro!”. “E depois de tirar
a roupa, não se terá esquecido de fechar a porta?” “Seria a primeira
vez, senhor engenheiro! As portas e as janelas do rés-do-chão, em todas as
casas onde trabalho, são sempre a minha grande preocupação...” Acerca do estranho
desaparecimento do volume, respondeu: “Tem graça! Eu também reparei na falta
do livro, quando limpava o pó, já quase no fim do serviço. E agora me lembro:
naquele espaço vazio estava uma folha de papel, dobrada, que me caiu ao chão
e que apanhei para guardar aqui, na papeleira. Olhe: ainda aqui está!”. E,
dizendo isto, estendeu a mão para a papeleira, sobre a secretária, e tirou de
lá uma folha branca, dobrada em quatro partes. Agarrámos ambos no
papel, sem grandes esperanças de que nos desse alguma pista. Havia nele,
porém, três linhas dactilografadas na primeira metade da página, que nos
apressámos a ler: Descalça vai para a fonte Leonor pela verdura, Vai formosa e não segura. E mais abaixo, na
outra metade da página, do lado direito, mais três linhas do seguinte teor:
Descuidada deste mal, Se vai ver na fonte pura; Vai formosa e não segura. Não há dúvida –
concluímos – o papel pertence a um dos rapazes, a quem o professor de
Português exigira a elaboração de um pequeno trabalho sobre literatura das
épocas medieval ou clássica! O assunto fora
acaloradamente discutido durante aquela hora de convívio com o engenheiro,
após a resolução do problema de matemática. E daí as consultas aos livros
disponíveis, na pequena mas bem fornecida biblioteca do professor. Era, pois,
necessário averiguar quais os temas escolhidos por cada um, mas essa
investigação só poderia ser feita no dia imediato, segunda-feira, quando
Salústio Zacarias se fizesse encontrado, como por acaso, com Flávio, no café
que ambos frequentavam. Depois... era só perder
algum tempo em qualquer biblioteca, para se chegar a uma conclusão tão
aproximada quanto possível... E Flávio, de facto,
forneceu de bom grado a informação habilmente pedida. O tema escolhido por
Francisco foi: “O teatro e a poesia lírica em Camões”. Fernando optou por
outro, de âmbito mais vasto: “As jóias líricas da poesia
clássica”. E ele próprio preferiu escrever sobre “As cantigas de amigo, de
amor, e de escárnio e maldizer”. Na posse destes
preciosos elementos, recorremos à tal biblioteca, fizemos a consulta que se
impunha e saímos de lá com a convicção de termos desvendado o mistério. Pergunta-se, para
concluir: Que obra consultámos? Quem foi o autor da proeza? E como agiu, para
alcançar o seu objectivo? |
|||||||||||||||||||||||
©
DANIEL FALCÃO |
|