Publicação: “Público” Data: 2 de Março de 2003 Campeonato Nacional
2002-03 Taça de Portugal 2002-03
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CAMPEONATO
NACIONAL E TAÇA DE PORTUGAL 2002-03 PROVA Nº 6 A MORTE DE SOFIA Autor: Severina Vindo a Portugal
para umas curtas férias, após o seu casamento com Rosa Maria, Afonso Mesquita
pensou levar a mulher à aldeia e apresentá-la às primas Júlia, Joana e Sofia
– último ramo da família Mesquita a viver na Casa Nova. Afonso não voltara à
sua terra há mais de uma dezena de anos, desde que emigrara com os pais para
França – logo que morreu D. Marcelina Mesquita, por não resistir ao desgosto
pelo suicídio do filho mais velho. Quando Afonso
anunciou a visita, a prima Júlia, amiga de viver sem sobressaltos, ficou
pensativa após desligar o telefone. Mas Joana Coutinho e Sofia ficaram
satisfeitas com a visita, só lamentando que estivesse tempo chuvoso. No entanto, Sofia,
a prima mais nova, residente na Casa Nova, porque quando ficara órfã fora adoptada pelo pai de Júlia e Joana, apareceu enforcada na
manhã seguinte à chegada do jovem casal: foi o jardineiro que deu com ela,
pendurada pelo pescoço, no velho lagar nas traseiras da residência. Avisaram-se as
autoridades. O agente Ferreira, destacado para tomar conta da ocorrência,
antes de tudo foi olhar o corpo, verificando que no chão do lagar, apesar da
fraca visibilidade e do dia enevoado, se notavam pegadas do jardineiro, que
entrara e saíra. Bento Coutinho, marido de Joana, opusera-se a que entrassem
ali até aparecer a polícia e o médico. Chegado o médico
legista, com o auxílio de candeeiro e escadote – arrumado a um canto – cerca
das 10 horas foi retirado o cadáver, debaixo de chuva. Perante os sinais
presentes, aparentava ter morrido enforcada, não se registando indícios de
resistência à morte por enforcamento. Confirmado o óbito, num breve exame foi
estimada a hora da morte entre as 22 e as 2 da madrugada. Pela atitude dos
familiares, aceitava-se que Sofia tivesse subido a guarda alta do tanque,
onde se pisava a uva no antigo lagar, armasse o laço na corda que suspendera
e pusesse termo à vida... Afonso não se
conformava. Sofia era quase da sua idade – brincaram juntos! Na véspera,
dera-lhe as melhores boas vindas – estava contente e bem-disposta, sem nada
que parecesse desgostá-la. E agora estava morta, da pior maneira... Afonso não podia
pensar em partir, como tencionava. Levado o corpo, o
agente Ferreira, já provido de lâmpadas, voltou ao lagar – agora só local de
arrumações –, onde antes pouco vira. Apesar de existir instalação eléctrica, em bom estado, não encontrara lâmpadas no
lagar, nem qualquer tipo de luz... Nem havia pelo chão sequer uma vulgar
lanterna que Sofia pudesse ter levado consigo, para iluminar a noite e
ficasse abandonada... No solo de terra batida – já espezinhado de pegadas
enlameadas quando se apeou o corpo – não foi possível recolher o que quer que
fosse que se chamasse rasto. O agente iniciou um
inquérito junto dos criados. Soube que na véspera calhara ser dia de folga
dos empregados da Casa Nova. Apenas a cozinheira e uma ajudante prepararam as
refeições e as serviram. E cerca das 21h00, depois de arrumada a cozinha,
foram para suas casas. Só raramente havia empregados internos. Mesmo sendo natural
da aldeia, o agente Ferreira residia na vila, pelo que conversou com Afonso
para tomar conhecimento do parentesco daquela família, como se davam entre
si, descendo ao pormenor de querer saber como acontecera a morte de António
Manuel, de que ouvira falar. O relato principiou por ali. Foi num fim de
Verão. Ainda crianças, Sofia e Afonso deixaram de brincar no jardim e
entraram na casa. Acabavam de atravessar a saleta de passagem, onde o Dr.
António Manuel dormitava no “maple” – a curar mais
uma ressaca dos excessos de álcool da noite anterior. Preparavam-se para
iniciar um “puzzle” quando soou um tiro – impressionante por ser dentro da
casa e na saleta ao lado... O que os assustou! D. Marcelina, que logo
apareceu, começara a gritar, cheia de aflição; e agarrara-se ao filho quando
a prima Júlia se juntou à mãe, seguida dos empregados. Foi então que a prima
viu os miúdos, muito admirada, pois não contava que estivessem em casa e sim
no jardim; mandando que alguém os fosse levar a casa dos pais de Afonso.
Acabou por ser Bento quem os levou, por ter chegado
na ocasião. José Mesquita
aumentara a fortuna no Ultramar, de onde regressou pouco antes da guerra
colonial, em Angola. Remodelou a velha casa na aldeia e instalou-se: com a
esposa, a filha Júlia e o enteado António Manuel – nascido do primeiro
casamento de D. Marcelina; Joana, três anos mais nova que a irmã, nasceu
assim que regressaram à metrópole. José Mesquita
faleceu num acidente de caça, no princípio do ano em que vieram a morrer o
Dr. António Manuel – que já deixara os estudos, em Coimbra, sem a
licenciatura – e D. Marcelina, por não resistir à morte do filho. Joana e Júlia, tão
diferentes na aparência, eram muito unidas por uma afeição fraterna que
sempre as ligara. Júlia não casara. Adorava o ambiente que desfrutava, o meio
que frequentava e a família a que pertencia. Sofrera com a morte do pai e,
ainda mais, com a perda da mãe. Bem constituída, respirava saúde; enquanto
Joana, mais frágil e espiritual, era elegante de corpo e de presença –
concentrando-se a sua beleza nos olhos, negros e rasgados. A morte do velho
Mesquita abalara Joana; sentiu a sua falta, mais que ninguém. Mas o exemplo
dele ensina-lhe a fazer o que pensava ser o seu dever, percebendo o perigo em
que a família poderia cair sem o pulso firme de José Mesquita. Assim, após a
morte do pai, casou com Bento Coutinho, alto funcionário dos serviços
camarários da vila. Pessoa de confiança
de José Mesquita, Bento Coutinho continuou a ser o consultor e administrador
dos bens da família, como até aí, não tardando a partilhar o cargo com a
mulher. Por desejo desta, mas que supervisionava! Disposição do agrado de
Júlia, que confiava no casal para a boa continuidade da família; mas com
total desacordo de António Manuel, seu meio-irmão, que se propunha tornar o
chefe da família. Com a concordância da mãe! Joana não
fraquejou. Passou a ter atenta acção na resolução
dos interesses familiares, sem atender às exigências de António Manuel em se
tornar administrador. Para o que não tinha carácter, nem competência. E seria
desastroso até para ele! O agente Ferreira
ouviu, então, as declarações dos familiares, sem tomar em consideração as
queixas, pelas “delongas num caso evidente de desequilíbrio momentâneo, que
tanta vez sucede... E como já sucedera na família...”. E reteve o
essencial sobre o último dia de Sofia: Afonso e Rosa Maria
dormiram no segundo andar, no quarto de hóspedes. Não desceram durante a
noite. Bento Coutinho e
Joana dedicaram grande parte do dia aos mais novos. Júlia só ficara de tarde.
Foram momentos muito agradáveis, relatos de experiências, conversando e rindo
com satisfação. Como seria inevitável, Sofia e Afonso lembraram a infância
ali vivida e a morte do Dr. António Manuel, que não podiam esquecer... Depois do jantar,
Júlia esteve com Sofia, antes de se despedirem para dormir. Ocasião em que
voltaram a estar juntos a dar as “boas noites” a Rosa Maria e Afonso, pois
estes queriam partir durante a manhã. Não notou a que horas Sofia se separou,
mas ela recolhera-se depois do cunhado sair. Joana fora para o
escritório, recuperar o expediente parado durante o dia. Não sabia a que
horas se deitara, nem dera pelo marido voltar, por não dormirem no mesmo
quarto. Bento Coutinho, depois
do jantar e de se despedir dos primos, saíra por ter jogo marcado com uma
roda de amigos; voltara, como sempre em dias de jogo, cerca das duas da
madrugada. Saiu e regressou pela porta principal. Não vira ninguém. Joana
ainda tinha luz no escritório quando entrou em casa. O agente Ferreira
já ouvira dizer que não dormiam juntos, pelo que não estranhou. “Eram pessoas
antiquadas, ciosas dos seus privilégios: uma gente estranha”, pensava o
agente. Afonso era diferente. Falara-lhe abertamente da família, mas via,
agora, que não tocara num pormenor pelo qual sentia curiosidade. E foi-lhe
perguntar: havia uma arma na mão de António Manuel, quando passaram pela
saleta, ou não? Ao que Afonso respondeu que Sofia estranhara o Dr. António
ter uma arma a cair da mão e não ter visto nenhuma ao passar pela saleta! E
ainda na véspera voltara a repetir... Mas Afonso não se lembrava...
Interessava-lhe mais que terminassem as formalidades da morte de Sofia,
arrependido de não ter partido como tencionava! Também o agente
Ferreira sentiu alívio ao conhecer o resultado da autópsia, de onde extraiu o
que mais lhe interessava: Sofia era uma
pessoa saudável. A causa da morte foi enforcamento, com sérias lesões nas
vias respiratórias. Mas, ainda com vida, sofrera forte pancada no occipital,
com objecto suficientemente pesado para lhe causar
inconsciência, de que não recuperara. Anexo ao relatório,
foi-lhe entregue um pedacinho de papel rasgado, achado na palma da mão de
Sofia. Era um pedaço
manuscrito, a que faltava a maior parte – que lhe fora arrancada do punho
fechado, pedaço a pedaço, na convicção de nada restar –, mas se conservou
reservado e só a flacidez do corpo libertou. Nesse pedacinho de papel macio,
podia ler-se: “...no lagar”. E o agente Ferreira
soube que fizera bem em iniciar o inquérito, pois agora havia um bom
caminho... Haverá, de facto?
Esperam-se os esclarecidos relatórios dos nossos eficientes “detectives amadores”, como preciosa ajuda para encontrar
as respostas. |
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DANIEL FALCÃO |
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