| Publicação: “Público” Data: 22 de Junho de 2003 Campeonato Nacional
  2002-03 Taça de Portugal 2002-03 
 | CAMPEONATO
  NACIONAL E TAÇA DE PORTUGAL 2002-03 PROVA Nº 10 DO ESQUELETO DA DEDUÇÃO AO ESCLARECIMENTO DO DELITO Autor: M. Constantino A sombra do mal não
  se afigurava poder atingir a moradia de Teodoro São Pedro. Não obstante,
  aguardava, gulosa, uma oportunidade. Oportunidade um tanto inesperada, de que
  viria a ser testemunha. Situada no conjunto
  de uma dúzia de vivendas de luxo, numa zona privilegiada da cidade, três
  pisos, voltada a nascente por onde três portas serviam o rés-do-chão, amplo
  salão de exposições e venda de arte antiga e moderna, onde só os escolhidos
  tinham entrada, sendo que a central, rematada em arco, dava acesso aos
  andares superiores e à rua larga, rodeada de um bem tratado jardim a norte e
  a sul, este ladeado por um arruamento empedrado entre a entrada e a garagem
  ao fundo, onde se situavam igualmente uma estufa e a indispensável piscina. Teodoro, ex-colega
  da Universidade, inseparável nas festas e aventuras estudantis, não concluíra
  o curso. Deixara-o a pouco mais de meio, quando a morte lhe levara
  simultaneamente os pais num fatal desastre de viação. O desgosto, que era
  real, foi mitigado pela copiosa fortuna e um negócio de arte em crescente.
  Confesso que, se o meu ex-colega não tinha grande vocação para a ciência de
  Direito, revelar-se-ia um habilidoso profissional na ciência negocial,
  quintuplicando a prosperidade paterna em menos de duas dezenas de anos. As
  dificuldades dimanavam em criar o irmão, Paulo António, dez anos mais novo,
  então uma criança franzina que desde o início da curadoria se revelara um
  rebelde, acaso resultado de uma geração símbolo do século – que não da
  educação recebida –, sem freios, caprichoso, sabendo explorar ardilosamente
  as fraquezas compreensíveis do irmão, na prática pai e mãe adoptivos... um “pai-mãe”
  exemplar, homem de coração, cérebro e músculos, razões acrescidas para
  desculpar o débil “filho”, porventura para além do que a normalidade
  exigiria. Cerca de 40 anos,
  viajado, livre e rico – também conquistou invejas, amigos e inimigos, é
  evidente –, o coração deu o tal sinal: apaixonou-se irremediavelmente. E não
  admira que estivesse disposto a mudar a sua existência: Serena Glória era,
  realmente, a visão de um anjo terreno! Vinte e oito anos, alta, delgada,
  cabelos louros caídos sobre os ombros, olhos cinzentos esverdeados num rosto
  belo, de boca apetitosa onde bailava um sorriso cativante e meigo. Aceitara primeiro
  o cerco, depois a corte, posteriormente o noivado; e não tardaram a aprazar o
  casamento! Sem a menor dúvida, amavam-se. Surge, então, não a
  sombra do mal, mas o próprio drama. Em momento oportuno, Teodoro anunciou o
  consórcio. Com ele, também Paulo se tornaria responsável directo
  por um novo rumo na vida. Cederia parte substancial dos seus negócios,
  adquiriria morada a contento para o irmão, obrigar-se-ia com uma pensão
  generosa para reforço do que lhe coubera em inventário orfanológico, já de si
  acrescido. Paulo ouviu-o pálido e em silêncio. Subitamente, em fúria, soltou
  estridente gargalhada... “Casar? Eu sair?” Olhos em fogo, boca aberta, numa
  gargalhada terrífica, verdadeiros uivos, caiu de joelhos, depois o corpo
  hirto, num gargalhar incessante e horrível de se ouvir. Nem Teodoro, nem
  Edmundo, o velho criado que logo acorreu, conseguiram dar-lhe movimento.
  Desvairado, o irmão mais velho correu escada abaixo, meteu-se no carro e
  disparou em busca de um médico... ainda sentiu que
  batera em algo, mas não parou para ver; foi Edmundo quem assomou à varanda e
  viu o jardineiro ser projectado e chamou o 112.
  Vinte minutos após, saía o 112 e o médico a quem Teodoro autenticamente
  arrastara e a quem explicara o ocorrido e que injectou
  no doente um sedativo, surpreendentemente, ineficaz. O corpo rígido
  continuava a gargalhar, agora roucamente. Aconselhava-se o transporte para o
  hospital. Edmundo, a relíquia viva mas ainda forte daquela casa, que servira
  pais e filhos, não escondia a dor pelo seu “menino”, durante anos alvo do seu
  carinho e veneração, meteu-se na ambulância sem ser convidado. As observações
  individuais e colectivas, primeiro nos serviços de
  Urgência, depois no quarto, não obtiveram um diagnóstico tranquilo: “Paulo
  sofria de paralisia dos membros inferiores”; não se verificavam lesões
  orgânicas aparentes, possível origem histérica. Aguardar sem entrar em
  pânico, o homem não está em perigo de vida – eram as expressões obtidas da
  medicina. Teodoro movimentou
  influências. O doente foi colocado numa casa de saúde conceituada e cara.
  Foi-lhe aplicada toda a terapêutica física, psíquica e psiquiátrica até à inatendibilidade da hipnose. Podia transportar-se numa
  cadeira de rodas, depois de nela colocado sem reacção
  nem ânimo. Vivia como que na distância... falava
  pouco e, com o irmão, o mínimo. Mais de três meses
  depois, a conselho médico, foi transferido para casa – a mudança para o
  ambiente familiar poderia ser benéfica. Foram transferidos todos os seus
  pertences do quarto do 2º andar, onde se situava a parte habitacional, para o
  quarto do 1º andar, onde se criara, entre o quarto ao lado da cozinha, de
  Edmundo, que para ele estava sempre disponível e a escada que ligava ao piso
  superior. O 1º andar, para além do referido, constava da cozinha ao fundo, com
  uma janela para norte e outra para poente, ao centro a ampla sala de estar,
  elegantemente mobilada, à qual se seguia um pequeno salão ou ante-sala, por onde se descia ao rés-do-chão, com duas
  portas, uma de cada lado, para a varanda descoberta. Ainda do lado norte, com
  os vidros de correr para a mesma varanda e uma porta para a sala de estar, um
  esplêndido bar com sofás e pequenas mesas dispersas. Do lado oposto era o
  gabinete de Teodoro, com uma porta para a varanda, outra para a sala central
  e uma terceira para a biblioteca, ao lado seguia-se uma sala caixa-forte, de
  porta de aço, pequenas frestas protegidas igualmente de aço, com o espólio
  artístico mais valioso. Tempos depois, o
  “pai-irmão”, que não desistira, voltou a falar no projectado
  enlace. O casamento iria realizar-se dentro de um mês. Paulo poderia ficar em
  casa enquanto decorresse a lua-de-mel, pois sairiam do país pelo período de
  um ano. Quando voltassem, cumprir-se-ia o decidido. Desta vez não houve
  qualquer espécie de atitude. Dias depois, Serena
  Glória, a noiva, acompanhada da irmã Adriana, foi apresentada ao doente. Os
  olhos sorridentes, o beijo de ternura na fronte, obtiveram um largo sorriso
  de Paulo. Convidou-as a sentarem-se perto de si e sem tirar os olhos da
  mulher, falou como há muito não fazia. Nem mais: Paulo apaixonara-se à
  primeira vista pela noiva do irmão. Facto que não me passou despercebido
  quando na manhã seguinte cheguei com o notário, para ultimar e passar à
  prática jurídica as decisões do noivo: cedência de quotas, pensões, escritura
  antenupcial. Estava ainda na cama, olhos brilhantes, entregue às mãos do
  velho criado que, depois de lhe servir o pequeno-almoço, procedia às
  massagens do rosto com um creme cheiroso, depois de o barbear. Edmundo trouxe
  a cadeira de rodas. O doente não quis sair da cama, aguardaria a descida de
  Serena, que, na véspera, prometera visitá-lo. A cadeira voltou ao local
  habitual, junto da janela. Todos os sintomas de paixão se lhe estampavam no
  rosto. Deixámo-lo a sonhar acordado e Edmundo saíu
  comigo para se dirigir ao próprio quarto. Antes foi à cozinha fazer café, a
  pedido do patrão, que nos deixou servido na sala de estar. Havia algo a
  ajustar nos balanços, na visão do notário. Concordámos. Teodoro entrou no seu
  escritório para estudar o assunto, deixando a porta apenas encostada, como de
  costume. Fausto, o sócio que ficaria com as quotas, levou a pasta da papelada
  para a biblioteca e fechou a porta. Em conversa com o notário, amigo de longa
  data, dirigimo-nos à varanda, ficando encostados ao umbral de uma das portas.
  Parara de chuviscar. No troço do jardim
  à nossa esquerda, Leocádio, com as botas metidas na lama, plantava novas
  flores... de quando em vez arrastava a perna e
  dirigia-se à estufa para trazer novo lote. Contei que naquele dia aziago, Teodoro,
  desesperado para ir buscar um médico para o irmão, atropelara acidentalmente
  o jardineiro, sem se aperceber do mal. Pagara despesas hospitalares,
  indemnizações que eu próprio calculara com largueza, desfizera-se em
  desculpas, mas não evitara que o homem ficasse aleijado e, provavelmente,
  ainda não digerira uma íntima irritação contra o patrão. Havia muito poucos
  minutos que ali estávamos. Subitamente ouvimos, partindo do interior, o som
  seco de um tiro. Sem perguntarmos a nós próprios o porquê da localização do
  tiro, dirigimo-nos ao escritório de Teodoro, cuja porta fora fechada à chave.
  Também Fausto saiu da biblioteca, juntando-se-nos. Chamámos, batemos e, não
  obtendo resposta, deslocámo-nos pela biblioteca e franqueámos a  porta que dava
  acesso ao gabinete de Teodoro, a qual, apesar de estar sempre apenas no
  trinco, ninguém tinha o hábito de utilizar, incluindo o próprio dono da casa.
  Encontrámos Teodoro meio recostado na cadeira, com um esgar de admiração
  estampado no rosto. Estava morto. Fora atingido por uma bala certeira no
  coração, disparada a curta distância, atendendo aos leves vestígios causados
  pela pólvora queimada. Instintivamente procurámos a arma, que não
  encontrámos. Pisei algures uma cápsula deflagrada que coloquei no tampo da
  secretária. Era o único ocupante do gabinete e estava fora de questão a
  hipótese de suicídio. Tínhamos de chamar a polícia. De comum acordo,
  voltámos à biblioteca. O auscultador do telefone estava fora do descanso e
  dele saíam palavras desconexas. Fausto esclareceu que falava com um cliente
  quando ouviu o tiro e largou o auscultador sem se lembrar de desligar,
  confirmação que obtive sem grandes explicações. Liguei então à polícia. Sentámo-nos em
  silêncio, cada um interrogando-se sobre a identidade do assassino. Ouvimos
  bater discretamente à porta. Edmundo indagava se poderia subir para ajudar
  Gene – Eugénia, a criada. Estivera na casa de banho do seu quarto e não
  ouvira o tiro. Mostrou-se perturbado – ou seria aliviado? – com os acontecimentos. Pedi-lhe que trouxesse mais um
  pouco de café. Sobre a morte, nada de alarmes, deveria manter silêncio. Saíu relutante e fechou a porta. Espreitei, vi-o entrar
  na cozinha e fechei de novo a porta. Havia um assassino na casa. Quem? No
  silêncio, que só as máquinas cerebrais em intensos raciocínios parecia
  quebrar, algo se movimentava na sala em direcção à
  porta que se abriu com estrondo diante da cadeira de rodas de Paulo António,
  ainda calçando as botas de lã com que dormia. – Que se passa
  aqui? Ouvi um tiro, onde está o Teodoro? – gritou. Apontei a porta do
  gabinete e segui-o. Manobrou a cadeira de rodas de modo a ficar de frente
  para o morto. Sem um único comentário, olhos turvos cravados no irmão que o
  criara e dele fizera um homem, quiçá sem grande valor, mas um homem, como que
  a reter todos os detalhes da cena. Um momento depois, atravessou as portas e
  entrou no seu quarto. Sentimo-nos, pelo menos no que me respeita, que passara
  por ali um vento frio, desagradável, que atingira os nervos. Na porta do
  rés-do-chão, alguém tocava a campainha. Devia ser a polícia – pensei. Desci a
  escada limpa. Leocádio entregou-me, embrulhada num lenço sujo, uma pistola
  que alguém atirara para o jardim, pela janela da cozinha. Não reconhecera
  quem, nem ouvira qualquer tiro... apenas achava que
  atirar fora uma arma nova era um desperdício. De facto, a arma que tinha nas
  mãos, uma pequena semiautomática Beretta 959 BS,
  calibre 6,35, de seis balas, uma arma leve, mais própria para uma senhora,
  era, nem mais nem menos, a arma que desaparecera do gabinete de Teodoro há
  algum tempo. Reconheci-a. Eu próprio a registara. Com cuidado para não apagar
  quaisquer marcas nela existentes, verifiquei que
  fora detonada recentemente e uma única vez. Antes de subir as escadas,
  pensativo, indaguei a mim próprio se o papel do jardineiro naquele caso se
  resumiria a ter encontrado a arma do crime. Algo de muito
  positivo começava a aflorar-me ao espírito. Sem voltar à biblioteca percorri
  a sala de entrada e depois a sala de estar, olhando, atento, o sobrado. Logo
  a partir daquela primeira sala, aqui e ali sem sequência, pareceu-me
  observar, indistintas, quase apagadas, possíveis pegadas húmidas, rumo à
  cozinha, onde entrei. Sentado, com o rosto tapado pelos braços, pousados
  sobre a mesa, o criado era uma figura de desespero. Mostrei-lhe a arma e
  acusei-o de crime. Negou. Não matara o senhor, apesar de se sentir revoltado
  com o procedimento do patrão, o modo como queria resolver a vida do “seu
  menino”, a desumana atitude para com Leocádio. Quando servira os cafés na
  sala deixara o armário, de onde tirara as chávenas, aberto, não voltara a
  fechá-lo pois fora para o seu quarto, por uma necessidade urgente. Quando
  viera buscar a segunda dose, a porta do armário estava fechada e, ao abri-la,
  encontrara a arma. Assustado pela sua posse sem justificação, atirara-a para
  o jardim... Tinha a cabeça
  cheia de pensamento confusos, quando me reuni aos outros. E a polícia parecia
  não ter pressa em chegar! Esbocei mentalmente um esqueleto da situação a
  partir do qual extraí possíveis e razoáveis expectativas para a solução da
  morte do meu amigo. Expectativas que achei por bem transmitir às autoridades
  encarregadas do caso, logo que obtive a confirmação, conforme deduzira, que
  não existiam impressões digitais na porta e na arma, realmente a agente
  material do crime, e não se encontrara a chave daquela em qualquer lado ou em
  poder da vítima. A prova real de que o confiante criminoso se não desfizera
  dela foi verificada pelo inspector-chefe Goucha,
  que dirigia a investigação. Que alívio! Só então subi ao
  segundo andar. Encontrei as três mulheres em ruidosa cavaqueira sobre
  casamentos e viagens de núpcias. Não ouviram o tiro, nem suspeitavam da
  tragédia que se desenrolara a seus pés. É-me impossível não
  lastimar, com imensa tristeza, a morte de um amigo e o sofrimento observado
  na poderosa beleza física de Serena Glória, cujas linhas do corpo encantador
  tremiam, agitadas por violenta tormenta interior... Quererão os nossos
  leitores, com justificações adequadas, produzir os seus relatórios sobre o
  esclarecimento do delito, quer em relação ao assassino, quer em relação à
  eliminação dos suspeitos? | |||||||||||||||||||||||
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  DANIEL FALCÃO |  | |||||||||||||||||||||||