Publicação: “Público”

Data: 1 de Junho de 2003

 

 

Campeonato Nacional 2002-03

Taça de Portugal 2002-03

 

 

 

 

CAMPEONATO NACIONAL E TAÇA DE PORTUGAL 2002-03

 

PROVA Nº 9

 

MISTÉRIO NA CASA DOS BIGODES

Autor: Paulo

 

Finalmente chegara o relatório da análise de DNA, que indicava que os cabelos encontrados no taco de basebol pertenciam a Antonino Bigodes.

Narciso Morais não conseguiu esconder um sorriso de satisfação. Tudo batia certo.

Enquanto se preparava para concluir o seu relatório, relembrou todo o caso.

A primeira vez que tomara contacto com os personagens do caso tivera a sensação de entrar num mundo de loucos. Seis irmãos rezingões, já a caminho dos 60 anos, de relações cortadas uns com os outros, como Narciso Morais tivera oportunidade de confirmar com segurança junto de quem conhecia a família, odiando-se mutuamente, e vivendo todos na mesma casa com um serviçal ainda mais idoso, com tanto tempo de casa como eles, e que servia de portador de mensagens entre os irmãos desavindos.

A porta da casa fora-lhe aberta pelo criado, Adélio Barbas, que o conduzira imediatamente à biblioteca, local onde ocorrera o delito, e onde os seis irmãos se encontravam de pé, uns ao lado dos outros. Ao lado deles, colocou-se Adélio, formando um grupo de criaturas, todas muito semelhantes, em rugas, em altura, quantidade de cabelo e idade.

O serviçal apresentara-lhe os seis irmãos. Do mais velho para o mais novo: Antonino, Teodósio, Gervásio, Umbelino, Sizenando e Timóteo.

Rapidamente, Narciso Morais fora posto a par do ocorrido. Havia um colar de diamantes, herança familiar, que Antonino reclamava como seu, contrariando cada um dos irmãos, que pretendiam ser cada um deles o proprietário. Antonino tão seguro se achava da propriedade que fizera em seu nome um seguro contra roubos. Naquele dia logo após o almoço, refeição que faziam gala de realizar em comum, apesar de nunca dirigirem palavra uns aos outros, rebentara a discussão. Antonino afirmara que iria vender o colar, recebendo em troca uma forte contestação dos irmãos, que, de forma nunca vista, se tinham unido contra ele. Antonino levantara-se da mesa, fora ao cofre buscar a jóia, dentro da sua caixa negra, abrira o estojo para que todos os irmãos a vissem, e afirmara que para ter a certeza que os irmãos não a roubariam ficaria com ela na sua posse até às nove horas, momento em que deveria chegar o possível comprador.

Antonino abandonara a sala de jantar, no rés-do-chão, e dirigira-se para uma sala do primeiro andar, que servia de biblioteca. Umbelino fora atrás dele, postando-se numa pequena saleta que dava acesso à biblioteca, e jurando que por aquela porta o colar não sairia. Deixara a porta que dava para o corredor aberta.

Teodósio seguira os dois irmãos e recolhera-se ao seu quarto, que ficava ao lado da biblioteca, onde permanecera até à hora em que o roubo fora descoberto, resmungando que o irmão iria ver com quantos paus se fazia uma canoa. Do seu posto, Umbelino conseguia controlar a porta do quarto, e afirmou que o irmão não saíra.

Timóteo e Sizenando tinham-se postado do lado de fora da casa, tostando ao sol de Junho. Controlavam a varanda da biblioteca, única abertura para o exterior, embora a uma distância segura um do outro, e que fosse suficiente para não entrarem em discussão. A posição dos dois foi confirmada pelo Teodósio que algumas vezes se acercara da varanda, que era comum à biblioteca, e espreitara para baixo. Os dois confirmaram as idas do irmão à varanda, mas afirmaram que este não se aproximara da porta que dava acesso à biblioteca e que se encontrava aberta. Gervásio sentara-se no corredor, frente à porta de acesso à saleta, de onde nunca saíra, e de onde controlava Umbelino e Teodósio. Afirmou que Umbelino não entrara na biblioteca, nem Teodósio saíra do quarto.

Tratando da arrumação da sala de jantar e da cozinha, ficou Adélio, que era homem para todo o serviço, desde cozinheiro a arrumador de quartos, pois o dinheiro da família não dava para contratar mais ninguém.

Como de costume, pelas quatro horas fora servir o lanche. Timóteo e Sizenando nunca lanchavam absolutamente nada. Antonino não dispensava um chá com bolacha torrada, servido num belo bule de porcelana, um dos poucos valores herdados que ainda restavam naquela casa. Gervásio bebia sempre leite com café, que tenha de ser servido directamente na chávena. Teodósio também bebia chá, só que o bule onde era servido tinha de ser do serviço inglês. Umbelino apenas bebia uma bica. Umbelino e Gervásio confirmaram que Adélio levara o bule a Teodósio e depois se retirara. Mais tarde regressara para o recolher. Gervásio confirmara que Umbelino bebera o seu café como de costume.

Umbelino confirmara que Adélio servira o chá a Antonino e depois saíra fechando a porta. Olhara pela porta que ficara aberta e em cima da mesa estava o estojo do colar. Quando Adélio voltara mais tarde para recolher o bule e a chávena, vira o estojo no mesmo sítio. Acrescentava que vira todos os movimentos de Antonino e Adélio.

Depois do lanche, Adélio, a pedido de Antonino, saíra de casa para lhe ir comprar cigarros que entretanto tinham acabado. Narciso Morais confirmara que Adélio comprara os cigarros.

Os cigarros eram uma das manias do Antonino, que tinha o hábito de colocar dois de cada vez na boca. Essa era uma das bizarrias do mais velho dos Bigodes. A outra era gatinhar debaixo das mesas, antes de se sentar, em busca de microfones escondidos. Havia outros irmãos com manias. Gervásio coleccionava moscas mortas; Teodósio armazenava caixinhas com terra de cemitério; Umbelino dormia sempre com um lençol roxo; Sizenando destruía todos os isqueiros que visse, criando-lhe esse hábito, por vezes, situações embaraçosas; Timóteo coleccionava fósforos queimados, mergulhados em álcool. Naquela casa só a Adélio não eram conhecidas manias extravagantes.

Quando Adélio regressara com os cigarros, assim que abrira a porta da biblioteca, gritara que Antonino estava caído no chão, situação que foi também visualizada por Umbelino. Ao ver Umbelino levantar-se, Gervásio acorrera e vira também o irmão mais velho no chão. Ouvindo o burburinho, surgira Teodósio e pouco depois Timóteo e Sizenando. Acorreram ao irmão que estava desmaiado. Perante o auxílio de Adélio, que se debruçou sobre Antonino, este acordou. Imediatamente todos repararam no estojo aberto e na ausência do colar. Antonino referiu estar sentado na cadeira, calmamente recostado, olhando para a varanda, quando recebeu uma pancada na nuca. Não se lembrava de mais nada.

Imediatamente começaram acusações recíprocas de roubo, que acabaram na obrigatoriedade de todos se despirem, incluindo Adélio, para provarem que não estavam na posse do colar. Como o colar não aparecesse, deixaram Adélio descerem ao rés-do-chão para telefonar à polícia.

Era esta a historia que tinham contado a Narciso Morais.

Farto de olhar para aquele grupo de loucos, Narciso Morais mandou que todos fossem para a sala de jantar, enquanto eles e os colegas investigavam. Durante o tempo que os seus colegas faziam uma busca minuciosa a todo o compartimento, assim como ao quarto de Teodósio, que resultou infrutífera e que durou cerca de quatro horas, Narciso Morais fizera uma observação cuidadosa da sala.

A arma usada na agressão fora um taco de basebol, que estranhamente fazia parte da decoração da biblioteca. Tinha dois cabelos presos e encontrava-se caído atrás da cadeira.

Para melhor pensar, Narciso Morais sentara-se na cadeira em que Antonino fora agredido. Olhara em frente e vira a porta da varanda. Ao seu lado esquerdo, ficava a única porta de entrada na biblioteca. Recostara-se no alto espaldar, que subia dois palmos acima da sua cabeça, e mirara as estantes cheias de livros encadernados. Quadros não havia, provavelmente teriam já sido vendidos. Em cima da mesa continuava o estojo que guardara o colar.

Já no rés-do-chão, despedira-se daquela estranha família, tendo sido acompanhado à porta pelo velho serviçal Barbas, e pelo Bigodes mais velho. O clima de tensão que deixara para trás de si fora bem perceptível. Enquanto se encaminhava para a saída, baixara os olhos para a nuca de Antonino onde era bem visível um hematoma, já bem perto da cova-do-ladrão, confirmando a existência de uma pancada violenta.

Saíra daquela casa com um suspiro de alívio, transportando os dois cabelos retirados do taco para posterior análise. Alguém se encarregaria de solicitar amostras do cabelo de Antonino para comparação. Não era trabalho seu. Ficaria apenas à espera do resultado para poder terminar o relatório que já estava quase todo escrito na sua mente.

Perante estes dados propõe-se que seja feita uma descrição de como ocorreu o misterioso roubo e quem o cometeu.

 

© DANIEL FALCÃO