PÚBLICO – POLICIÁRIO

 

Publicação: “Público”

Coordenação: Luís Pessoa

 

Data: 25 de Julho de 2005

 

Campeonato Nacional

Taça de Portugal

2004-2005

 

Regulamentos

 

Prova nº 1

Prova nº 2

Prova nº 3

Prova nº 4

Prova nº 5

Prova nº 6

Prova nº 7

Prova nº 8

Prova nº 9

Prova nº 10

 

Resultados

 

 

CAMPEONATO NACIONAL 2004/2005

 

SOLUÇÃO DA PROVA Nº 10

 

O MORTO ERA UM DOS PONTEIROS DO RELÓGIO

Autor: Zé da Vila

 

– Então, esse crime? – Pergunta Zé da Vila.

– Olha, já tenho um bom lote de dados; mas estou baralhado…

– Pois! Se fossem laranjas, peras… disso percebo! De crimes, nunca vi um morto…

– Deixa! A chave do problema está… espera, espera! A chave! É isso mesmo… Repara: o portão estava fechado à chave e a chave estava no bolso de R.! Não “vejo” o morto deixar o seu matador sair, fechar o portão e ir deitar-se na eira! Também não vejo o assassino fechar o portão à chave e ir colocar esta no bolso do morto, ou usar a que estava em cima da cadeira. Como sairia? Pelo portão (encimado por espigões aguçados) ou pela cerca? Em voo? Não! Tem de haver outra maneira!

Ponho de parte o pessoal da vivenda (irmão e as outras três visitas), com álibis mútuos. Ao Matias e ao Mariano, não os vejo encontrar uma chave, que fosse, exactamente, a do “Quintal”. Então… Que dizes do Serafim? Será que um homem que durante oito anos tem as chaves de uma propriedade (da qual é o principal obreiro) não poderia possuir duplicados, para ocasional perda das que lhe foram entregues? É uma prevenção natural…

– Tens razão! Eu próprio tenho três grupos das chaves de que preciso.

– Claro! O mariola do Serafim é mesmo um homem de palavra… e acção! Deve ter ouvido o telefonema da filha. Saiu do quarto, para procurar as chaves (nem ligou ao almoço!). Entra no quarto, abre a telefonia e… sai pela janela! Espera pelo Ricardo, oculto na casa de banho da propriedade. Não é difícil concluir que o apanha de costas e… não está com meias medidas – ferra-lhe duas facadas! Enquanto o homem morre, olha para o portão, entreaberto, e corre a fechá-lo, antes que a filha chegue. O Ricardo está morto.

Repara, Zé. A pergunta que eu queria fazer ao médico – se calculara o tempo entre a agressão e a morte – já não faz sentido. É que, atingido na espinal-medula, o derrame entra na circulação sanguínea (até aos pulmões e cérebro), produzindo a morte. A facada no coração pode ou não ter causado a morte. Deixo as dúvidas em relação a qual das facadas a causou. Não parece ter sido instantânea, mas ocorreu no período em que o assassino foi fechar o portão. O que me interessa, de qualquer modo, é que, atingida a espinal-medula, a vítima ficou paralisada. Não iria entrar na eira, por vontade própria! Aliás, que iria lá fazer? Para ser morto? Isto responde às hipóteses: a), b) e c). Resta-nos a última – d): foi levado para a eira, depois de morto, nos braços musculados de Serafim, que o larga, sem se curvar – deixa-o, literalmente, cair! Isso explica a fractura post mortem do braço e o facto de estar fortemente enterrado na terra argilosa, amolecida pela chuva abundantíssima.

Eis as respostas às interrogações: quem e como? Falta-nos o porquê? E este porquê responde a três factos distintos! Não o porquê do assassínio, que salta à vista (dadas as circunstâncias), mas o porquê da ausência de rastos do criminoso, do rasto da vítima a entrar na eira, da vítima estar descalça! Isto não nasceu por acaso. O criminoso tinha que desaparecer, sem deixar indícios identificativos da sua passagem.

Serafim descalça o morto e calça os sapatos deste. Faz um rasto, portanto, normal: nem fundo (pelo carregamento de um corpo, pois já não o carregava), nem vacilante (de quem vai ferido). Deixa os sapatos junto da vítima e calça os seus, que, provavelmente, levava na mão. Vai buscar a mangueira, liga-a e abre a torneira. Rega todo o outro terreno que pisou, apagando os rastos próprios e indícios do crime – o que não é difícil de conseguir, em terra encharcada pela chuva. A eira já está com bastante água e algumas poças; quem observar, não distingue a água da chuva da água da torneira! Volta a colocar a mangueira no lugar, fecha o portão à chave (com a sua chave), de que se desfaz, juntamente com a arma do crime. Regressa a casa, ao quarto, entrando como saiu, ao som do rádio!

– Jogo limpo, como vês, Zé!

– Parece correcto. Nem li nada parecido naqueles livros do Carr, que tu me trazes. Vais prender o Serafim?

– Não. Isso é para o Afonso. Tem de fazer umas pesquisas, para encontrar as chaves e a arma do crime, porque, sem esse material e sem o homem ter sido visto na rua, àquela hora (o que é provável, considerando que a chuva deve ter retido as pessoas em casa), se ele teimar em negar, vai haver dificuldades…

– Não me digas! Então é um crime, desses perfeitos?

– Não! Ainda temos a tal arma secreta. Quando examinei os sapatos de Ricardo, notei duas ordens de impressões digitais. Aposto que umas são do Serafim e outras do Ricardo. Vocês, por cá, acaso andam de luvas?

– Pois é, no trabalho agrícola ainda não se pensou em luvas! Mas, olha lá! Que história é aquela dos ponteiros de um relógio? Estou intrigado…

-Ora, amigo Zé da Vila. A um pobre inspector de polícia, também é concedido um momento para ser poeta… imaginar… ver coisas que não são; porque, às vezes, não vê as que são! E o corpo é uma imagem em ângulo, num círculo (a eira). Era de pensar num relógio…

 

 

© DANIEL FALCÃO